segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013



Crítica "O Lado Bom da Vida" (Silver Linings Playbook / 2012 / EUA) dir. David O. Russell

por Lucas Wagner


  Uma das piores coisas que tem é estar assistindo um filme fantástico, e, de repente, este despenca de qualidade de uma forma que desequilibra totalmente o projeto, impedindo que este seja tudo que estava caminhando para ser. Infelizmente, O Lado Bom da Vida é um desses exemplos, que acaba sendo o longa mais irregular do diretor David O. Russell, que eu considero um dos melhores cineastas norte-americanos atualmente, já que são dele dois dos filmes que coloco entre os melhores que já assisti: Três Reis e Huckabees – A Vida é Uma Comédia (sem contar que O. Russell também é responsável pelo excepcional O Vencedor e o divertido Procurando Encrenca). Assim, se esse novo filme do cineasta apresenta a mesma preocupação com o desenvolvimento psicológico de seus personagens que tanto enriqueceu seus outros trabalhos, chegando a ser um cuidadoso e divertido estudo de personagens, da metade para o final o longa se transforma numa besteira enorme, se utilizando de tudo que é clichê. Ainda assim, O Lado Bom da Vida não é um filme ruim, já que sua metade inicial o salva, e as atuações simplesmente impecáveis de todo o elenco contribuem para o longa não seja algo a se jogar no lixo (diferente de Poder Paranormal, outro que se detona a partir de certo ponto, mas que se detona tão horrivelmente que o filme fica todo ruim em retrospectiva).

  O roteiro de O. Russell acompanha Pat (Bradley Cooper), sujeito bipolar que, ao se deparar com a esposa com outro homem, espanca o cara quase até a morte, o que fez com que Pat passasse um bom tempo em um manicômio. Decidido a mudar completamente de vida e se tornar um indivíduo “normal”, Pat sai do manicômio com um objetivo principal: reconquistar a esposa. Entre trancos e barrancos, conhece a problemática Tiffany (Jennifer Lawrence), que se propõe a ajudá-lo no seu objetivo.

  Como eu disse antes, a metade inicial de O Lado Bom da Vida é uma obra-prima. Vamos conhecendo com calma o personagem Pat e seus problemas, nos aproximando cada vez mais dele. E enorme parte disso se deve à atuação maravilhosa de Bradley Cooper, ator que admiro bastante desde seu trabalho em Se Beber Não Case!. Cooper entrega sua melhor atuação num trabalho minucioso de construção do personagem, que já começa pela própria entonação que usa para dizer suas falas, já que esta surge sempre rápida e quase agressiva, revelando a desordem interna do personagem, e sua brutalidade que pouco consegue conter. Observem ainda como o ator investe (mesmo diante dessa camada de desordem que cobre Pat) em conferir-lhe uma doçura infantil, que apenas reflete mais como o personagem é disfuncional, como no momento em que, enquanto está brigando violentamente com um amigo, muda completamente de atitude quando este, no meio da briga, lhe dá um iPod de presente. Ainda, Cooper é excepcional ao nos convencer do desejo de mudança de Pat, através de técnicas de autoajuda que geralmente nos levam a rir, mas que aqui são mostradas com tanta seriedade pelo ator que não deixamos de nos comover com aquele personagem tão desesperado por salvação. Desse modo, nos aproximamos ainda mais do protagonista pelo desespero deste ao não alcançar seus objetivos, desespero esse que Cooper ilustra com brilhantismo ao deixar transparecer um sentimento de esperança frustrada em Pat, mas ainda deixando evidente que este continuará lutando.

  O. Russell sempre demonstrou sabedoria em deixar seus atores à vontade para esbanjarem seus talentos, mas o diretor e roteirista também é um escritor fenomenal, e Pat não seria um personagem tão bom se não fosse pela belíssima construção dele no roteiro. Sempre a ponto de explodir, Pat precisa extravasar sua agressividade de algum modo, mesmo que seja em questões bobas. O. Russell demonstra isso com perfeição quando Pat joga um livro pela janela (quebrando esta) apenas por ter se indignado com o final, que vai contra seus princípios de felicidade e “paz e amor” que o protagonista luta para estabelecer dentro de si. Mas o diretor/roteirista não se prende apenas a momentos divertidos como esse, já que chega até mesmo a mostrar uma cena em que Pat se descontrola completamente, chegando a agredir a mãe e o pai. Mais impressionante ainda é que O. Russell não se contenta apenas com um personagem complexo, mas busca aprofundar ao máximo em sua personalidade, buscando as razões para seu transtorno principalmente no relacionamento com o pai, relacionamento este que vem sendo ambíguo e disfuncional desde a infância do protagonista, enquanto a mãe se mostra como uma figura mais acanhada que não busca contrariar o marido, por mais que esse não seja necessariamente um homem violento.

  O Lado Bom da Vida se torna ainda mais admirável ao, assim como O Vencedor, se focar em ser um estudo de vários personagens, e não apenas de seu protagonista. E assim, Tiffany é uma figura tão ou mais fascinante quanto o próprio Pat, já que assume um nível de complexidade absurda que é enriquecida pela performance primorosa da maravilhosa Jennifer Lawrence (que fica ainda mais linda de cabelo preto, e – algo que deixa a nós, homens, muito felizes – dança em varias cenas, ficando muito tentadora diante do modo como usa as maravilhosas curvas de seu corpo). Lawrence entrega mais uma personagem de caráter forte, mas que aqui se torna mais fragilizada pelas tristes contingências de sua vida, que a levou a uma forma de comportamento sexual agressivo quase que psicopatológico em seu desespero, já que o motivo de sua tristeza vem principalmente da sua omissão sexual no passado. Mas ela é ainda mais impressionante e forte por parecer ter transformado seu comportamento patológico em um mecanismo de defesa contra olhares de desprezo por outras pessoas. E assim, Lawrence cria uma Tiffany que, mesmo agressiva e a ponto de pular em cima do pescoço de alguém, surge extremamente frágil e solitária, despertando a simpatia imediata do espectador, que é levado a torcer por ela com unhas e dentes.

  Outros personagens ganham destaque e, mesmo alguns que nem o roteiro presta muita atenção, os fabulosos atores conseguem conferir maior tridimensionalidade. Robert De Niro está sensacional como o pai de Pat, compondo um sujeito extremamente ambíguo que sofre com TOC, mas que ainda parece extremamente propenso à violência. O personagem foi escrito com maestria e vai sendo descamado à nossa frente de forma sutil, coisa que o próprio De Niro parece compreender perfeitamente e, demonstrando grande conhecimento do personagem, entrega aquela que é uma das melhores cenas do filme, numa conversa com Pat, na qual nunca sabemos quais as verdadeiras intenções do pai, embora possamos sugerir sem medo que seja um pouco de tudo que ele apresenta no seu comportamento, o que o torna absurdamente complexo. Jacki Weaver interpreta a mãe de Pat com cuidado, investindo em seu olhar para transmitir complexas emoções. Já John Ortiz revela em Ronnie um personagem mais tridimensional através do desespero contido com que o interpreta, ao passo que Julia Stiles, em pouco tempo em cena, é capaz de transformar Veronica numa mulher com motivações muito mais amplas e complexas através de poucos gestos.

  David O. Russell demonstra mais uma vez seu talento como diretor, num trabalho que se aproxima bem do que fez em O Vencedor. Com preferência por planos mais fechados nos atores (que nos aproximam destes), O. Russell sempre mantém a câmera na mão, procurando um tom de instabilidade que é ideal num filme em que todo mundo parece sofrer de alguma desordem psíquica. Além disso, o diretor revela mais sua vez sua genialidade ao sempre variar de um tom de comédia mais afiada para um tom de drama pesado, sempre sem muito preparo, algo que serve bem para demonstrar a bipolaridade do protagonista. Além disso, a montagem se revela fenomenal, já que cria cortes rápidos e confusos para ilustrar muitas vezes a confusão interna de Pat, além de os flashes que mostram o acontecimento com a esposa e o amante, serem mostrados muito rapidamente, quase como se o personagem pensasse naquilo com uma raiva absurda. Desse modo, a sequência da confusão em uma noite em que Pat não encontra a fita de seu casamento é simplesmente perfeita, já que parece nos obrigar a encarar as coisas do ponto de vista alucinado de Pat. Ainda, O. Russell revela talento para um humor que não se escancara, mas surge através de detalhes mais sutis, que, através da repetição, vão se tornando mais engraçados, como a mania de Tiffany de brotar na frente de Pat durante corridas, ou ainda na indelicadeza de Pat em repetir para Tiffany que ela é viúva. Para completar, o bom gosto musical de O. Russell acaba enriquecendo o filme com uma trilha incidental com músicas de Led Zeppelin e até mesmo Bob Dylan, entre outros nomes importantes. Além disso, a trilha original composta por Danny Elfman é perfeita ao investir em toques emocionais que nunca soam melosos, mas nostálgicos.

  Infelizmente, o filme despenca ao, da metade para o final, demonstrar que O. Russell não sabia muito bem como terminar de conduzir o longa, e comete erro atrás de erro. Isso fica claro na tentativa tosca do cineasta de ilustrar a aproximação de Pat e Tiffany através de cenas em que os dois treinam para a competição de dança, o que se revela um recurso falho e preguiçoso que basicamente joga o espectador para fora do filme por não mais termos aquela intimidade junto com os personagens (afinal, porque sentiríamos a aproximação dos dois se a dança é algo só deles na qual não podemos ter uma participação intelectual/emocional maior do que simplesmente assisti-los?). Ainda, é patético e absurdo que O. Russell torne o que era algo extra no filme em coisas principais da trama, e assim a competição de dança e as apostas do personagem de De Niro em jogos ganham uma importância enorme, numa embalagem tosca que nos leva àquela que é a cena mais vergonhosa do filme, quando todo mundo briga dentro de uma casa, numa discussão artificial e besta que nos conduz ao vergonhoso clímax, que surge encharcado de clichês e previsibilidade. Aliás, nem para a questão do relacionamento de Pat e Tiffany o filme encontra um bom desfecho, já que surge completamente sem sentido (principalmente por parte de Pat, e uma questão envolvendo a escrita de uma determinada carta*). E o que dizer quando um cineasta excepcional como O. Russell usa o clichê fétido de criar uma mini discussão entre o casal protagonista bem no final apenas para dar um draminha a mais? E ainda mais quando essa discussão surge de uma forma tão absurdamente podre e sem sentido como aqui.

  O amigo e constante colaborador de O. Russell, o ator Mark Wahlberg (que trabalhou com o diretor em Três Reis, Huckabees – A Vida é Uma Comédia e O Vencedor), pela primeira vez se negou a participar de um projeto do diretor (ele iria interpretar Pat), já que não concordava com os rumos que o roteiro tomava. Bom, acho que O. Russell deveria ter escutador o amigo e assim salvado um grande filme como esse da perdição. Agora o que posso fazer é esperar, ansioso, pelo próximo projeto do cineasta, American Bullshit, e torcer para que ele escreva seu roteiro com o cuidado que demonstrou em seus outros trabalhos.

*SPOILER: a carta a que me refiro é a que Pat escreve para Tiffany. Como assim ele “já sabia que a amava desde a primeira vez em que a viu”? Isso nem faz sentido e torna Pat um pouco menos complexo.

Um comentário:

  1. Gostei de ter encontrado o seu site e as críticas são ótimas! Assisti ao longa hoje e confesso que essa parte da carta fica mesmo muito confusa e clichê, mas o mesmo também traz grandes reflexões no quesito interior, uma vez que Pat sempre é provocado por Tiffany a aceitar o que ele é, e não tentar fantasiar algo (como: eu ainda estou casado, tivemos um desentendimento e vamos voltar), além de trazer questões sobre os nossos defeitos e qualidades.. Não se trata somente disso, também busca na bipolaridade um jeito de encontrar a felicidade.
    Gostei do longa e da maneira como você trouxe a sua visão para cá!

    ResponderExcluir