Crítica "Eu e Você" (Io e Te / 2012 / Itália) dir. Bernardo Bertolucci
por Lucas Wagner
Bernardo Bertolucci tem um quedinha por temas
polêmicos, como já ficou claro em filmes como Último Tango em Paris, Os Sonhadores, Beleza Roubada, etc. Muitas
vezes, cineastas assim não me atraem muito por me transmitirem a impressão de
que querem fazer carreira com base no choque que causam nos espectadores mais do
que exatamente na qualidade e complexidade do que querem transmitir. Alguns
desses cineastas, no entanto, muitas vezes trabalham os temas polêmicos de modo
a explorar melhor temas complexos ou a profundidade de seus personagens. Lars
Von Trier, Pedro Almodóvar e o próprio Bertolucci são cineastas assim, que, de
vez em quando, pecam por se focar apenas na “polemicidade” de seus projetos,
mas quando acertam, acertam bonito. Dito isso, um dos temas mais caros a
Bertolucci parece ser o incesto, e toda sua carga polêmica que já procurou
trabalhar em outros filmes seus. Assim, depois de quase 10 anos desde que realizou
o regular Os Sonhadores (filme não
muito bom – embora ver Eva Green nua seja sempre algo muito bem vindo – mas amado
pelos hipsters), o cineasta volta com
um longa mais sensível do que está acostumado a trabalhar, buscando explorar a
atormentada vida de um adolescente solitário.
O roteiro do próprio diretor centra-se na
vida de Lorenzo (Jacopo Olmi Antinori), que prefere muito mais ficar sozinho do
que ter outra pessoa por perto. Assim, para não preocupar a mãe, finge que vai
para uma excursão com a escola em um feriado, mas na verdade se esconde no
porão de seu prédio, pretendendo passar uma semana de alegre solidão. Seus
planos parecem ir por água abaixo quando sua meia-irmã, Olívia (Tea Falco) aparece
exigindo se esconder com ele, enquanto passa por um doloroso processo de
recuperação do uso de heroína.
Como se trata de um longa de Bertolucci, eu
esperava, ao ler a sinopse, quase que infinitas cenas de sexo selvagem entre
Lorenzo e sua meia-irmã, mas me surpreendi pela abordagem bem mais sutil
escolhida pelo cineasta. Um exemplo bem claro é no que se refere às formigas,
geralmente símbolo do formigamento que sentimos quando sexualmente excitados (simbologia
que Luis Buñuel também usou em alguns filmes seu, e a grande escritora Lygia Fagundes
Telles explorou em vários contos): o diretor retrata o início da paixão que
Lorenzo sente por Olívia quando o vidro em que carrega o seu formigueiro
quebra, e as formigas são liberadas, o que, não por acaso, acontece
temporalmente próximo do acesso de ciúme do jovem por um “amigo” de Olívia. Podemos
ler esse símbolo como sendo que o protagonista mantinha seus desejos sexuais
mais ou menos em “ordem” (ou pelo menos é o que ele achava) dentro de si, e que
são liberadas pelo relacionamento com a meia-irmã. Ainda, o diretor é sutil
nessa abordagem ao mostrar momentos como o que Olívia tem que passar pelo irmão que está
dormindo ao seu lado, e praticamente se esfrega nele; ou ainda temos o meu
momento favorito do filme, quando os dois dançam ao som de “Regazzo Solo,
Regazza Sola” de David Bowie, e os carinhos e apertos dos dois sugerem uma
sensualidade bem maior do que a usualmente existente entre irmãos (e se
prestarmos atenção na letra da música, fica ainda mais evidente o talento de
Bertolucci, já que a letra cola perfeitamente com o que os dois estão vivendo).
Como o roteiro é focado mais no amadurecimento sexual e emocional de Lorenzo, o
diretor busca trabalhar isso tudo da perspectiva de um adolescente de 14 anos,
onde poucas coisas e poucos gestos, muitas vezes adquirem significados bem
maiores em suas jovens “mentes” (o que me lembrou o maravilhoso Moonrise Kingdom, de Wes Anderson).
Bertolucci se mostra ainda inteligente ao
retratar o isolamento voluntário do protagonista. Este muitas vezes coloca seus
fones de ouvido para evitar ter que interagir com outras pessoas, e o diretor é
genial ao, numa das primeiras cenas, criar um plano onde Lorenzo aparece à
direita (ponto mais forte da tela), escutando música com seus fones de ouvido,
e uma outra pessoa está passeando com um cachorro, se localizando no canto
esquerdo da tela (ponto mais fraco) e ainda completamente fora de foco, já que
o diretor, inteligentemente, emprega uma profundidade de campo reduzida nesse
momento. Ainda, Bertolucci vai mergulhando mais e mais no protagonista,
desvendando aspectos de sua personalidade de modo a torná-lo mais complexo.
Lorenzo é um rapaz que opta pela solidão, e
aparentemente não sofre muito com isso. No entanto, no fundo ele anseia por
contato humano, mas não consegue, já que parece olhar as outras pessoas com uma
curiosidade quase que científica (atentem para o momento em que observa a irmã
dormindo), e, quando interage com outros, parece querer se colocar como que num
plano superior, numa clara demonstração de narcisismo (como quando tenta conversar
com um trabalhador numa loja de animais). Isso tudo é perfeitamente bem
demonstrado pela sua escolha de ter comprado o formigueiro, que permite olhar
para aqueles seres vivos (as formigas) como se ele fosse uma espécie de Deus
(outro simbolismo presente no formigueiro). E sua visão de mundo, de como os
outros o veem é maravilhosamente ilustrada na cena em que imagina um dialogo de
seus pais sobre ele, em que os vemos como que quase caricaturas, com roupas
brilhosas num ambiente irreal, enquanto procuram por um sapato e depois dançam,
ao mesmo tempo em que conversam sobre o
filho, ou seja, como se na verdade não se importassem com ele.
No entanto, tudo isso vai mudando quando seu
arco dramático se inicia de fato, e seu relacionamento com a irmã começa a
acontecer. Lorenzo é muito reprimido sexualmente, ainda sendo capaz de
apresentar sinais indubitáveis de complexo de Édipo, como fica bem claro na
conversa que tem com a mãe em um restaurante. Nessa mesma conversa, fica
evidente que seus impulsos sexuais estão quase explodindo dentro dele, embora
ele, conscientemente, não se preocupe muito com sexo. Esses impulsos sexuais
começam a se aflorar mesmo no contato com a irmã, principalmente depois que vê
as fotos sensuais que ela tirou. Mais importante ainda é que, no contato com a
irmã, os desejos sexuais e emocionais de contato humano se organizam, e o
permitem amadurecer nessas áreas. Dessa forma, o plano final do filme é
eficiente (mesmo que meio tosco) por mostrar um Lorenzo mudado, sorrindo com a
perspectiva de um futuro diferente.
Infelizmente, Olivia não é uma personagem tão
interessante como o irmão. Mesmo sofrendo com um futuro embaçado e pelo uso de
drogas, Olivia nunca deixa de ser unidimensional, algo que, felizmente, é
balanceado pela excelente atuação de Tea Falco, que confere força e
verossimilhança à personagem, o que impede que o filme seja corroído por
artificialidade. Já Jacopo Olmi Antinori está ótimo como Lorenzo, e ilustra bem
as ambiguidades do jovem. É um ator promissor.
Eu e
Você é um longa tocante e muito bem realizado, que fica ainda melhor por
contar com uma trilha sonora excepcional com musicas de David Bowie, Red Hot
Chillipeppers, The Cure, etc. No fim, esse novo excelente longa de Bertolucci
funciona ainda como uma bela sessão dupla com outro belo filme, As Vantagens de Ser Invisível, que também
funciona como um estudo de um adolescente solitário. Mas Eu e Você tem em Lorenzo um jovem mais obscuro do que o Charlie daquele
filme, o que não deixa de tornar a relação entre os dois trabalhos ainda mais
interessante. Enfim, Eu e Você é um
belo longa, e uma joia na carreira de Bertolucci, apesar de menos ambicioso do
que muitos projetos dele.
Lucas
ResponderExcluirgostei muito da sua crítica e principalmente de algumas simbologias que não tinha pensado, a do formigueiro como o formigamento. Concordo muito com a parte que esse é um Bertolucci menos Bertolucci e acho que esse é o grande ganho do filme, a grande surpresa.
Gostei muito do filme, mais até que de 'Os Sonhadores'
Muito obg!
ExcluirÉ realmente um belo filme mesmo!
Parabéns pela crítica!
ResponderExcluir"Eu e você" é realmente um um filme complexo em suas sutilezas, o que o torna um grande filme!