Crítica filme "Holy Motors" (Holy Motors / 2012 / França) dir. Leos Carax
por Lucas Wagner
Talvez o melhor tipo de filme que tenha seja
aquele que ainda te deixa pensando nele durante muito tempo, descobrindo coisas
novas e empolgantes que enriquecem a visão que você teve no momento em que
assistiu. Filmes assim podem não ser 100% compreensíveis quando o vemos uma
primeira vez, e ainda podem ter elementos que continuam misteriosos até mesmo
na décima vez, mas eles são fascinantes por nos envolver tanto emocionalmente
quanto intelectualmente, tornando o exercício de estudar o longa um enorme
prazer. E Holy Motors, de Leos Carax
é um exemplo sensacional. Um filme intrigante, bizarro e envolvente que tem um
poder quase magnético que nos leva a desejar desvendar seus segredos.
O roteiro do próprio Carax acompanha Oscar
(Denis Lavant), um ator que, num percurso de 24 horas, deve interpretar
diversos personagens diferentes, percorrendo a cidade em sua limusine branca
(perceberam ai já uma ligação com Cosmópolis?).
Durante essas 24 horas, Oscar vai se transformar em diversos sujeitos
diferentes, se passando por assassinos, doentes mentais, idosos, etc.
Acima de tudo, Holy Motors é uma reflexão sobre o a profissão de um ator. Oscar é
um sujeito que se entrega de forma desgastante aos papéis que representa,
mudando de personalidade muitas vezes em um espaço curto de tempo. Mas, fora a
atuação, Oscar é uma pessoa introspectiva e com uma séria tendência para o
alcoolismo, além de parecer observar com tristeza os rumos que a Arte do Cinema
vem tomando nos dias de hoje. Sua vida parece ser uma mistura de diversas
outras, onde fica difícil traçar uma personalidade própria. Assim, foi genial
que Carax tenha desenvolvido seu roteiro com o ator atravessando a cidade
dentro de uma limusine (serviria se fosse outro carro qualquer também), numa
representação perfeita da transitoriedade da vida de um ator, que deve o tempo
todo se entregar a ser uma pessoa diferente, “entrando em corpos” diferentes,
de uma forma extremamente desgastante, a ponto de ir deixando que seu “verdadeiro
eu” seja engolido, ficando por baixo de diversas outras camadas. Assim, é lindo
o momento em que Oscar (que, por sinal, é um nome genial, já que se refere a
uma das maiores ambições de um ator) vai representar uma cena em que é um
senhor moribundo, e ai Carax mistura ficção com realidade ao colocá-lo
confundindo, como que num delírio, as diversas personalidades que assumiu
naquele mesmo dia, numa clara confusão de quem ele realmente é. E como não
ficar impressionado com a inteligência de Carax no momento em que Oscar vê uma
determinada pessoa (importante para ele) morta, e dá um grito, enquanto corre e
mergulha dentro da limusine, como que guardando toda aquela emoção forte para
ser usada em uma atuação? Lindo isso.
Nesse sentido, Carax é feliz demais ao contar
com um ator tão genial quanto Denis Lavant, que entrega uma performance
impecável à Oscar. Sempre com uma fisionomia séria e cansada, Lavant consegue
pular com perfeição para as diversas figuras que deve interpretar, sempre
conferindo características novas e empolgantes, como a voz grossa e fria do
assassino, a loucura e “hiperatividade” de Merde, ou a corcunda da velha
senhora. Mais ainda, ele é brilhante ao retratar o verdadeiro Oscar como uma
figura mais sem graça, tristonha, meio que perdido nos rumos de sua vida.
Sempre com uma respiração cansada, Oscar é um sujeito que parece realizar o
trabalho mecanicamente, mas sem nunca saber quem realmente é (assim como o
personagem de Pattinson em Cosmópolis).
Mas há camadas ainda mais profundas em Holy Motors que valem a pena explorar. Não
consegui conter a sensação de que talvez as metáforas tão cuidadosamente
estruturadas por Carax não se referem-se apenas ao trabalho de ator, mas talvez
à própria humanidade como um todo. Vivemos em um mundo onde o tempo é sempre
curto, sempre estamos atrasados para um compromisso novo, sem poder parar para
relaxar, refletir e realmente aproveitar a vida. A relógio é rei nesse mundo, e
vivemos para trabalhar, e não trabalhamos para viver. Pensei nisso pelo fato de
Carax ter colocado Oscar basicamente como um homem de negócios, se referindo aos
seus trabalhos como ator como “encontros” ou “reuniões”; ele sempre tem uma
pasta à mão para olhar e obter detalhes precisos sobre seus serviços. E é
interessante que Carax possa levantar um questionamento como que talvez todos
nós sejamos atores, assumindo diferentes personalidades no nosso dia a dia
dependendo do ambiente e de com quem estamos. Colocamos diversas máscaras,
escondendo nós mesmos do mundo exterior, com medo de transmitir uma imagem
ruim, desagradável, mas sempre atuando para,
de acordo com cada pessoa diferente, conseguir os resultados que esperamos, nem
que esses sejam apenas que possamos pensar que essa pessoa gostou de nós.
Vivemos em uma época em que o importante é transmitir uma mensagem. No próprio
facebook, quando postamos alguma coisa, ou pelo menos quando curtimos algo,
estamos tentando mandar uma mensagem para as outras pessoas; pintar um auto-retrato
nosso. Assim, é fascinante que em certo momento, enquanto caminha por um
cemitério como um de seus papéis, Oscar passa por diversas lápides onde, ao invés
de estar escrito palavras de consolo e gratidão, está escrito: “Visite meu site”.
Até na morte estamos atuando para conseguir deixar determinada impressão – que seria
alcançada ao investigar os tais sites - nesse tempo que passamos aqui (e o
escrito na lápide também funciona como uma observação do diretor quanto à nossa
necessidade de atenção). O perigoso disso tudo é que a gente pode acabar
ficando como Oscar, sem saber exatamente quem somos, já que nos escondemos sob
tantas personalidades diferentes que entramos numa tremenda crise de
identidade. (Lembro ainda que, em determinado momento, uma personagem sai de um
carro e, sem motivo aparente, coloca uma máscara, numa clara representação do
que acabei de dizer).
Ainda, o diretor nos leva a pensar em como
estamos sempre desligados do mundo real, anestesiados por uma realidade
transmitida pela televisão, sem ter a decência de olhar a beleza do mundo ao
nosso redor. Isso fica claro no momento em que a chofer de Oscar diz para ele
ver como Paris está bonita de noite e, ao invés de olhar pela janela, ele
prefere olhar por uma televisão que filma o lado de fora do carro. Ainda, a
questão da anestesia do real fica brilhantemente demonstrada no momento em que
um fotógrafo nem se assusta com o fato de uma pessoa ter comido os dedos de
outra, mas fica correndo atrás dessa pessoa para conseguir uma boa imagem, e
não para oferecer ajuda.
Mas Carax é capaz de ir até mais fundo em seu
roteiro fenomenal, e entrega uma sequência inesquecível em que vemos Oscar e
uma antiga paixão (também atriz) andando por dentro de um prédio antigo, que um
dia foi importante para eles. Subvertendo basicamente tudo o que estávamos
vendo até então, Carax nos entrega um número musical lindíssimo que ainda serve
para aumentar a atmosfera nostálgica desse momento. Ainda, a letra da canção e
o que estávamos acompanhando da conversa dos dois se refere a uma temática
fascinante: o passado. Ambos questionam que rumo suas vidas teriam tomado se
tivessem feito escolhas diferentes, e se essas escolhas teriam mudado muita
coisa no fim das contas. Não há como não apreciar a sensibilidade com que Carax
trabalha essa temática na letra da canção, chamada “Who Were We?”: “Quem nós
éramos? Quem nós éramos? Quando fomos quem fomos?”. De qualquer modo, não
importa o que façamos, no futuro nos questionaremos se realmente deveríamos ter
feito de determinada forma, e o que sobrará sempre será um resquício de
nostalgia, que pregará em nós como uma tatuagem.
Como se tudo isso não bastasse para que Holy Motors já fosse uma obra-prima de
valor inestimável, Carax ainda transforma seu filme em uma reflexão sobre a
própria condição deplorável do Cinema de hoje em dia. Logo em uma das primeiras
cenas vemos uma platéia dormindo em uma sala de cinema, completamente desinteressada
pelo que se passa na tela. Ainda, o diálogo entre Oscar e um determinado outro
sujeito, na limusine, funciona como uma reflexão triste sobre a basicamente
substituição da película pelo digital (e, por mais ironia que seja, o cinema em
que eu estava projetou o filme digitalmente). Mais ainda, Carax parece encarar
a enorme artificialidade que é o Cinema, o que fica lindamente ilustrado em
diversos momentos, sendo o meu favorito aquele em que Oscar interpreta uma
personagem em um filme que se passa todo em tela verde, e ele deve usar uma
roupa de captura de movimentos, e chega até, nessa mesma cena, à uma simulação
de sexo com uma mulher também com uma dessas roupas: essa simulação surge lindíssima
e trágica, pelo ato não consumado devido às roupas, mas traduzida em uma imagem
num computador como se fossem dois monstros transando.
Não que o diretor olhe o Cinema apenas com
olhos ruins. É claro que não. Ele insere diversas homenagens à clássicos
franceses e ainda parece enxergar o Cinema como um mundo de sonhos, como fica
claro na primeira cena do filme, quando vemos o próprio Carax em um quarto, que
parece perto de um aeroporto, embora ouçamos barulho de um porto, e ele caminha
até uma porta (coberta por um cenário de floresta) e insere uma chave, entrando
assim em uma sala de cinema, que surge como um ambiente surreal, com bebês nus
andando para lá e para cá, e até animais. E (SPOILER, continuem no próximo
parágrafo) é fascinante que a chave que vemos nas mãos do diretor seja a mesma
que é entregue a Oscar para voltar à sua família, como se ele estivesse
voltando para a realidade. E o fato de sua mulher ser uma macaca, e seu filho
também, estabelece uma simbologia fascinante com seu gosto por florestas (que
fica claro em uma determinada conversa dele com a chofer) e pelo próprio
cenário de floresta pelo qual Carax passa no início do longa; além disso, essa
história dos macacos pode levar a um questionamento ainda mais fascinante sobre
o que é realidade para cada um de nós.
Holy
Motors é uma obra-prima maravilhosa e extremamente curiosa. É um daqueles
filmes que, a cada visita que fazemos, desdobra-se em mais alguns segredos
fascinantes e, quanto mais maduros ficamos, mais somos capazes de
compreendê-los. Desse modo, esse novo filme de Carax já tem o necessário para
ser um grande clássico no futuro. Ele merece, isso é um fato.
Nota: 10.0/10.0
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