sexta-feira, 26 de dezembro de 2014


Análise:

A Lancheira (Dabba / 2014 / Índia, França, Alemanha) dir. Ritesh Batra

por Lucas Wagner

Andando pelas movimentadas ruas de Mumbai, Saajan Fernandes (Irrfan Khan) esbarra em uma banca onde um homem pinta a imagem da mesma praça todos os dias, mas alterando-a de leve de acordo com o que mais chamou sua atenção naquele ambiente naquele dia. Em um desses dias, o que capturou seu olhar foi o próprio Fernandes. Quem diria...

E por toda a trama de A Lancheira o sentimento que se mantém é um que corresponde com “Quem diria”, assim como dizemos sempre, ao olhar para nossa própria história. E quem diria que o quase infalível sistema de entrega de almoços de Mumbai um dia iria cometer um erro estúpido e entregar a comida errada para o cara errado, iniciando assim uma doce história de amor. Pois ao tentar chamar a atenção de seu distraído marido, a jovem Ila (Nimrat Kaur) capricha na cozinha, mas quem acaba recebendo o almoço é Fernandes, um homem viúvo prestes a se aposentar depois de trabalhar 35 anos na mesma empresa, e se encanta com a comida de Ila. Por educação, a solitária mulher envia uma carta de agradecimento com o próximo almoço, e recebe uma resposta de Fernandes. Assim começa, por acaso, a bonita interação dos dois.

Parte do que faz A Lancheira uma experiência emocionalmente tão eficiente refere-se à empatia que sentimos com os dois personagens, já que tem suas personalidades apresentadas e desenvolvidas de um modo sutil e nada melodramático para que possamos compreender como a interação dos dois vai enriquecer suas vidas.

Ila desde o início é apresentada como uma mulher carente de atenção do marido, e seus esforços na cozinha (ajudada pela divertida vizinha do andar de cima) representam uma tentativa de conseguir algum reconhecimento de sua própria existência. Com olhar sempre distante e sonhador, a bela atriz Nimrat Kaur permite que possamos enxergar Ila em sua tridimensionalidade, tornando seu comportamento de ser firme com a filha, por exemplo, um reflexo de um esforço excessivo para cumprir sua função como mãe, mas que se desmancha por completo na crescente tristeza de descobrir estar se tornando um fantasma.

Simultaneamente, o sempre competente Irrfan Khan (que também produz o filme) compõe Fernandes como um indivíduo apático, com um olhar duro que esconde uma característica similar com o de Ila: é distante. Só que aqui essa característica não evidencia uma tristeza “óbvia” como a de Ila, que está vendo a vida escorregar de si sem poder fazer muita coisa, mas é sim uma evidência de um homem que parou de procurar respostas, já que a vida já escorregou por entre seus dedos. A característica pétrea das rugas de seu rosto serve como elemento a mais desse quadro, e o apego que Fernandes parece ter com aspectos pragmáticos de seu cotidiano representa bem a psicologia de um sujeito desligado.

A troca de cartas injeta vida nos dois sujeitos. São solitários que acabam encontrando, por uma estranha coincidência, um conforto em outro ser humano quando parecia que isso já não era tão possível. Aliás, se não fossem tão solitários, é bem possível que não se apegassem tanto a essa chance do acaso. O que, no fundo, não importa, pois o que realmente merece atenção é a capacidade do filme de permitir que os momentos lúdicos promovidos nessa troca de sentimentos alcancem um aspecto notavelmente dinâmico, tranquilo, confortável. Elementos do cotidiano que geralmente passam despercebidos a olhos dormentes começam a se destacar, e desde detalhes fortuitos do dia-a-dia até sentimentos profundos e um tanto calados, começam a fluir entre os dois, e é bacana como o diretor e roteirista Ritesh Batra explora esse frescor de forma visual, iniciando seu filme com um plano aberto com prédios escondidos por névoas, passando por chuvas e tempo frio, até chegar a dias ensolarados e mais quentes quanto mais Ila e Fernandes interagem.

Em seu primeiro trabalho enquanto cineasta, Batra consegue um equilíbrio delicado em seu projeto, permitindo que este flua com naturalidade. Alguns dos elementos de sua direção, no entanto, revelam algum amadorismo, e seus raccords visuais e sonoros, se evidenciam uma acertada tentativa de conferir maior fluidez ao projeto, acabam não funcionando por virem de forma pouco natural, forçada. Assim também é um tanto quanto incompreensível que o diretor faça uso recorrente da melancólica trilha sonora de Max Ritcher mesmo nos momentos mais claramente doces/alegres do projeto.

Em contrapartida, o cineasta é competente no uso da trilha incidental (ou seja, não original do filme) para colorir sentimentos de determinados momentos, quando sons diegéticos (com origem no ambiente) perdem essa característica e se tornam parte do filme, ultrapassando ambientes para representar o sentimento dos personagens naquele momento, e é interessante que este som seja quebrado de forma brusca diante da chegada de uma pessoa interrompendo os pensamentos de algum personagem. É sutil também, e convenhamos, bonitinho, o momento em que Ila “força” uma coincidência musical em seu ambiente para que possa colocar esse elemento na carta para Fernandes, por saber que deixaria o homem deliciado. E falando em Fernandes, o diretor tem no design de produção da casa deste uma ferramenta que eficientemente reforça a ideia de sua solidão.

E se enquanto roteirista ele acabe por pecar quando força uma subtrama desnecessária no trabalho de Fernandes para criar alguma tensão a mais no projeto, ou mesmo acabe errando em alguns óbvios simbolismos, como a da pequena vizinha de Fernandes, que no início fechava a janela ao vê-lo olhar para sua família, e depois o recebe com um aceno de mão alegre, ainda o cineasta/roteirista consegue primar pela maturidade no desenrolar da projeção, transformando A Lancheira não apenas em um “feel good movie” mas sim em um complexo estudo de personagens e situações, não descartando variáveis complicadoras no contexto, e como as histórias de vida dos personagens, sua bagagem, não poderia deixar de interferir no relacionamento dos dois. Ainda, tal maturidade se encontra no sutil humor do projeto, como a coincidência envolvendo couve flores ou o colega de Fernandes que fica curioso pelo modo estranho que este se apega tanto ao almoço (me refiro ao colega que senta-se ao seu lado durante o serviço sem dizer palavra nenhuma).

Durante a projeção escutamos mais de uma vez a frase “Às vezes o trem errado pode nos levar à estação certa”. E, sim, A Lancheira é um doce filme que explora com maturidade e maestria um tema tão fascinante como o Acaso, e como este pode construir as mais belas e complexas situações, mas também como a vida é composta de encontros e desencontros. Se os encontros aparecem por acaso, os desencontros muitas vezes acabam por ser culpa de nós mesmos, e assim, o filme ganha em uma conclusão aberta, com pontas que podem ou não se unir.

Pode ser que Ila e Fernandes agiram certo sem querer, e foi só o tempo que errou. Mas é por acaso que essa fala de Renato Russo caiba tão bem aqui.

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