Análise:
Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit / 2014 / Bélgica, Itália, França) dir. Jean-Pierre
e Luc Dardenne
por
Lucas Wagner
Depois de enfrentar um
severo episódio depressivo que a levou a ser afastada do trabalho, Sandra
(Marion Cotillard) percebe que o pessoal de seu serviço fez uma votação para
decidir entre sua continuidade na empresa ou um bônus de 1.000 euros no salário
de cada um. Obviamente perdendo para o bônus, Sandra conta com a ajuda do
marido para, em um final de semana, convencer seus colegas de trabalho a
dispensar os 1.000 euros para que ela continue no emprego que tanto necessita.
E é nessa história tão pequena em amplitude que os irmãos Jean-Pierre e Luc
Dardenne criam uma narrativa delicada e sutil que consegue dizer muito sobre a
natureza humana através de atitudes prosaicas.
Descartando o uso de
trilha sonora musical e optando por longos planos que centram-se nos seus
atores, nem mesmo procurando alguma abordagem visual que torne a narrativa mais
complexa, os Dardenne alcançam certo naturalismo no projeto ao atentar para
seus personagens se comportando de forma perfeitamente comum, enfrentando
dificuldades cotidianas raramente vistas no Cinema, desde a dificuldade de
cortar uma torta enquanto se fala ao telefone até o inconveniente de chegar em
uma casa e perceber que tem que voltar mais tarde, já que o dono não está. E é
justamente por esse naturalismo que os cineastas impedem que seu filme se torne
por demais enfadonho, pois, mesmo já sendo naturalmente episódico, a obra
consegue maior dinamismo ao mostrar Sandra enfrentando pequenos e variados problemas
para entrar em contato com seus colegas; além disso, os irmãos demonstram habilidade
em inserir elementos ao longo da projeção que são um tanto inesperados e tornam
a narrativa mais imprevisível.
E não é pela falta de
recursos visuais mais rebuscados que a direção decai, já que os diretores não
apenas apresentam segurança em sua trama enxuta e objetiva, mas conseguem ser
sutis na manipulação visual do projeto, algo percebido, por exemplo, na
residência de Sandra, repleta de detalhes coloridos e felizes característicos
de uma casa com crianças pequenas, mas que entram em direto choque com o rosto
sempre deprimido da mulher, causando uma sensação estranha no espectador mais
atento. Os irmãos ainda investem em planos significativos onde conseguem criar tensão
a partir de um quadro fechado do rosto da protagonista durante vários segundos
em uma importante cena no final, ou mesmo planos que são sensíveis ao filmar a
alegria esporádica de personagens que parecem sempre tristes, como nas duas
cenas envolvendo o rádio do carro.
Mas é a partir da
atenção dos diretores dedicada às reações dos colegas de Sandra a seu pedido
que Dois Dias, Uma Noite consegue se
tornar um sincero estudo da natureza humana. As reações são severamente
variadas, mas os Dardenne não se contentam em apenas mostrar os colegas como ou
anjos ou demônios, mas conseguem estabelecê-los como pessoas complexas,
multifacetadas, que, mesmo quando agem de forma extremamente rude e arrogante,
parecem evidenciar camadas a mais em sua atitude. Ninguém ali quer ferir
Sandra, e muitos se sentem incomodados com “terem” que optar pelo bônus. Ora,
pouco tempo antes nem existia tal bônus, o que torna ao menos sintomático que
de repente tantos funcionários se vejam imprescindivelmente necessitados dele.
A vergonha em não conseguir deixar passar a oportunidade de um lucro a mais,
mesmo que isso resulte em perdas ainda mais severas para Sandra, é evidente,
mas a ganância é também real, ao ponto de um deles chegar a pedir que a
protagonista “tente ver da perspectiva dele”.
Não há pessoas boas ou
ruins dentre aqueles colegas, apenas indivíduos que, muitas vezes, tem o
oportunismo natural que grita contra o bom senso ou empatia por outro ser
humano, por mais que sintam certa culpa. E nesse sentido, não apenas a
abordagem dos Dardenne é essencial, como também a performance de todos os
atores secundários, responsáveis por conferirem dimensão àquelas pessoas em
seus poucos minutos em tela. Assim, mesmo um aperto de mão dado às pressas é um
sintoma do evidente desconforto de certo personagem, ao mesmo tempo em que a
mulher deste (perdoem-me, não sei o nome dos atores e não me lembro do dos
personagens) consegue um sutil momento de irônico humor quando, com toda sua
postura rígida e aversiva à Sandra, sendo completamente arrogante a ela (mesmo
que de forma indiscretamente indireta), oferece alguma bebida à protagonista
quando não a vê mais como ameaça.
E para que este estudo
funcione, é essencial que possamos simpatizar com Sandra, algo efetivado em uma
sublime performance de Marion Cottilard, talvez no que é um de seus melhores
papéis. Com uma postura levemente encurvada como sinal de uma pessoa que está a
sucumbir ao seu próprio peso, Cottilard compõe Sandra com uma expressão
constantemente fatigada, triste, com as pálpebras parcialmente fechadas, e
consegue ser bem sucedida ao demonstrar a dimensão da dor da mulher na sua luta
por não chorar, o que evidencia um medo profundo de que esse comportamento a
leve novamente à depressão. Ao mesmo tempo, é tocante perceber como a mulher
vai ganhando certa “vida” a partir de cada esforço bem sucedido em sua
empreitada, enquanto é notável que cada “fracasso” venha como um golpe muito
mais pesado do que seria para uma pessoa “não-depressiva”, e é fascinante como
Cottilard consegue expressar todas essas múltiplas facetas, fazendo um uso
constante, por exemplo, de recursos como sua voz, que surge entrecortada e
carente de ar em diversos momentos, evidenciando a extrema dificuldade da
mulher com o que lhe é exigido, uma dificuldade que vai diminuindo com a
prática, em mais um sinal da maturidade profissional de Cottilard.
Com um final
inteligente ao deixar clara a visão dos Dardenne diante do ser humano ao mesmo
tempo em que permitem uma perfeita conclusão ao arco dramático de Sandra, Dois Dias, Uma Noite é um filme feito
por pessoas maduras para pessoas maduras. Logo, não espera-se que seja
apreciado por todos.
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