Análise:
A Lancheira (Dabba /
2014 / Índia, França, Alemanha) dir. Ritesh Batra
por
Lucas Wagner
Andando pelas
movimentadas ruas de Mumbai, Saajan Fernandes (Irrfan Khan) esbarra em uma
banca onde um homem pinta a imagem da mesma praça todos os dias, mas
alterando-a de leve de acordo com o que mais chamou sua atenção naquele
ambiente naquele dia. Em um desses dias, o que capturou seu olhar foi o próprio
Fernandes. Quem diria...
E por toda a trama de A Lancheira o sentimento que se mantém é
um que corresponde com “Quem diria”, assim como dizemos sempre, ao olhar para
nossa própria história. E quem diria que o quase infalível sistema de entrega
de almoços de Mumbai um dia iria cometer um erro estúpido e entregar a comida
errada para o cara errado, iniciando assim uma doce história de amor. Pois ao
tentar chamar a atenção de seu distraído marido, a jovem Ila (Nimrat Kaur)
capricha na cozinha, mas quem acaba recebendo o almoço é Fernandes, um homem
viúvo prestes a se aposentar depois de trabalhar 35 anos na mesma empresa, e se
encanta com a comida de Ila. Por educação, a solitária mulher envia uma carta
de agradecimento com o próximo almoço, e recebe uma resposta de Fernandes.
Assim começa, por acaso, a bonita interação dos dois.
Parte do que faz A Lancheira uma experiência
emocionalmente tão eficiente refere-se à empatia que sentimos com os dois
personagens, já que tem suas personalidades apresentadas e desenvolvidas de um
modo sutil e nada melodramático para que possamos compreender como a interação
dos dois vai enriquecer suas vidas.
Ila desde o início é
apresentada como uma mulher carente de atenção do marido, e seus esforços na
cozinha (ajudada pela divertida vizinha do andar de cima) representam uma
tentativa de conseguir algum reconhecimento de sua própria existência. Com
olhar sempre distante e sonhador, a bela atriz Nimrat Kaur permite que possamos
enxergar Ila em sua tridimensionalidade, tornando seu comportamento de ser
firme com a filha, por exemplo, um reflexo de um esforço excessivo para cumprir
sua função como mãe, mas que se desmancha por completo na crescente tristeza de
descobrir estar se tornando um fantasma.
Simultaneamente, o
sempre competente Irrfan Khan (que também produz o filme) compõe Fernandes como
um indivíduo apático, com um olhar duro que esconde uma característica similar
com o de Ila: é distante. Só que aqui essa característica não evidencia uma
tristeza “óbvia” como a de Ila, que está vendo a vida escorregar de si sem
poder fazer muita coisa, mas é sim uma evidência de um homem que parou de
procurar respostas, já que a vida já escorregou por entre seus dedos. A
característica pétrea das rugas de seu rosto serve como elemento a mais desse
quadro, e o apego que Fernandes parece ter com aspectos pragmáticos de seu
cotidiano representa bem a psicologia de um sujeito desligado.
A troca de cartas
injeta vida nos dois sujeitos. São solitários que acabam encontrando, por uma
estranha coincidência, um conforto em outro ser humano quando parecia que isso
já não era tão possível. Aliás, se não fossem tão solitários, é bem possível
que não se apegassem tanto a essa chance do acaso. O que, no fundo, não
importa, pois o que realmente merece atenção é a capacidade do filme de
permitir que os momentos lúdicos promovidos nessa troca de sentimentos alcancem
um aspecto notavelmente dinâmico, tranquilo, confortável. Elementos do cotidiano
que geralmente passam despercebidos a olhos dormentes começam a se destacar, e
desde detalhes fortuitos do dia-a-dia até sentimentos profundos e um tanto
calados, começam a fluir entre os dois, e é bacana como o diretor e roteirista
Ritesh Batra explora esse frescor de forma visual, iniciando seu filme com um
plano aberto com prédios escondidos por névoas, passando por chuvas e tempo
frio, até chegar a dias ensolarados e mais quentes quanto mais Ila e Fernandes
interagem.
Em seu primeiro
trabalho enquanto cineasta, Batra consegue um equilíbrio delicado em seu
projeto, permitindo que este flua com naturalidade. Alguns dos elementos de sua
direção, no entanto, revelam algum amadorismo, e seus raccords visuais e sonoros, se evidenciam uma acertada tentativa de
conferir maior fluidez ao projeto, acabam não funcionando por virem de forma
pouco natural, forçada. Assim também é um tanto quanto incompreensível que o
diretor faça uso recorrente da melancólica trilha sonora de Max Ritcher mesmo
nos momentos mais claramente doces/alegres do projeto.
Em contrapartida, o
cineasta é competente no uso da trilha incidental (ou seja, não original do
filme) para colorir sentimentos de determinados momentos, quando sons
diegéticos (com origem no ambiente) perdem essa característica e se tornam
parte do filme, ultrapassando ambientes para representar o sentimento dos
personagens naquele momento, e é interessante que este som seja quebrado de
forma brusca diante da chegada de uma pessoa interrompendo os pensamentos de algum
personagem. É sutil também, e convenhamos, bonitinho, o momento em que Ila
“força” uma coincidência musical em seu ambiente para que possa colocar esse
elemento na carta para Fernandes, por saber que deixaria o homem deliciado. E
falando em Fernandes, o diretor tem no design
de produção da casa deste uma ferramenta que eficientemente reforça a ideia
de sua solidão.
E se enquanto
roteirista ele acabe por pecar quando força uma subtrama desnecessária no
trabalho de Fernandes para criar alguma tensão a mais no projeto, ou mesmo
acabe errando em alguns óbvios simbolismos, como a da pequena vizinha de
Fernandes, que no início fechava a janela ao vê-lo olhar para sua família, e
depois o recebe com um aceno de mão alegre, ainda o cineasta/roteirista consegue
primar pela maturidade no desenrolar da projeção, transformando A Lancheira não apenas em um “feel good
movie” mas sim em um complexo estudo de personagens e situações, não
descartando variáveis complicadoras no contexto, e como as histórias de vida
dos personagens, sua bagagem, não poderia deixar de interferir no
relacionamento dos dois. Ainda, tal maturidade se encontra no sutil humor do
projeto, como a coincidência envolvendo couve flores ou o colega de Fernandes
que fica curioso pelo modo estranho que este se apega tanto ao almoço (me
refiro ao colega que senta-se ao seu lado durante o serviço sem dizer palavra
nenhuma).
Durante a projeção
escutamos mais de uma vez a frase “Às vezes o trem errado pode nos levar à
estação certa”. E, sim, A Lancheira é
um doce filme que explora com maturidade e maestria um tema tão fascinante como
o Acaso, e como este pode construir as mais belas e complexas situações, mas
também como a vida é composta de encontros e desencontros. Se os encontros
aparecem por acaso, os desencontros muitas vezes acabam por ser culpa de nós
mesmos, e assim, o filme ganha em uma conclusão aberta, com pontas que podem ou
não se unir.
Pode ser que Ila e
Fernandes agiram certo sem querer, e foi só o tempo que errou. Mas é por acaso
que essa fala de Renato Russo caiba tão bem aqui.
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