Análise:
RoboCop (RoboCop / 2014 / EUA) dir.
José Padilha
por
Lucas Wagner
Uma ficção científica
de alta qualidade sabe usar das possibilidades futuristas que explora não
apenas com um fim em si mesmo, mas também para criar um simulacro investigando
as consequências que os elementos imaginados para aquele universo teriam sobre
aspectos sociais, econômicos, psicológicos e filosóficos. Grandes autores do
gênero, como Arthur C. Clarke, Isaac Asimov e Phillip K. Dick, compreendiam
isso como ninguém, e nessa refilmagem do clássico RoboCop, de 1987, o cineasta brasileiro José Padilha acerta ao não
enxergar seu projeto apenas como um blockbuster
que abre suas portas à Hollywood, mas sim como a possibilidade de
desenvolver temas complexos e promover discussões importantes.
Não que não funcione
como um exímio arrasa-quarteirão. Com folga no sentido financeiro, Padilha teve
o conforto de trazer colaboradores habituais para o projeto, podendo assim
trabalhar com mais tranquilidade. Assim, volta a trabalhar com o diretor de fotografia
Lula Carvalho, construindo uma estética similar à de seus projetos anteriores,
aqui alterando entre uma paleta granulada para filmar sequências em família ou
nas ruas, e outras mais “plásticas”, acinzentadas, para filmar o mundo executivo/político/científico.
Trazendo também o sempre brilhante montador Daniel Rezende (aqui trabalhando
junto com Peter McNulty), Padilha consegue criar sequências de ação notáveis,
enérgicas e cruas como de costume, ao mesmo tempo em que nunca as torna
confusas. Contribuindo para esses momentos agitados, a trilha sonora do
excelente Pedro Bromfman imprime energia e intensidade à obra, ao mesmo tempo
em que contrapõe temas mais modernos, beirando o estilo “Hans Zimmer”, com
outros que evocam a trilha original do longa de 87. Ainda no quesito técnico, os
efeitos visuais se mostram competentes ao quase nunca trair sua natureza
virtual e ainda criar designs interessantes
e bonitos para os robôs aqui vistos.
Mas como já dito, a
visão de Padilha para o filme é muito mais crítica, e assim é curioso observar
como o cineasta consegue trabalhar temas que já lhe chamaram a atenção
anteriormente. Dessa forma, assim como em Tropa
de Elite 1 e 2, a corrupção da polícia e das grandes organizações são
evocados sem reservas, enquanto até mesmo questões mais intimistas voltam a ser
exploradas pelo diretor, como a tristeza em que vive Clara Murphy (Abbie
Cornish) pelo estresse constante de ser mulher de um policial, assim como vivia
a esposa de Nascimento nos longas citados. A mídia também é vista com desprezo
através do personagem de Samuel L. Jackson, como um apresentador de TV tão
exagerado em seu patriotismo, moralismo e falso cinismo como o repugnante
Fortunato de Tropa de Elite 2, ambos
movidos por interesses menos louváveis do que aparentam. E, como não poderia
deixar de ser no caso do diretor do maravilhoso Ônibus 174 (seu melhor filme), RoboCop
ainda trás discussões envolvendo indivíduos completamente à mercê de
instituições mais poderosas.
Os objetivos mais
críticos de Padilha ficam claros desde a sequência inicial, quando mostra que
seu maior tópico de discussão é na situação (ainda) imaginária envolvendo o uso
de forças armadas guiadas por inteligência artificial em contraponto à boa e
velha humana. Se isso já cria uma questão interessante a ser imaginada para um
futuro que não parece muito distante, Padilha demonstra ser mais ambicioso (e
corajoso) ao logo apresentar os EUA em toda a sua arrogância de buscar passar a
impressão de que, com suas constantes invasões a outros países, estão na
verdade fazendo um bem e visando a proteção mundial. Na verdade, os EUA são
comprovadamente movidos substancialmente pela Indústria Bélica, que movimenta
bilhões e bilhões de dólares na produção e comercialização de novos armamentos.
O que, é claro, a tornaria sedenta para alcançar um mercado aparentemente
infindável ao trocar soldados humanos por androides, e logo voltando seus olhos
para as possibilidades de trocar a polícia do próprio país por robôs. O que
cria um conflito mais intenso, pois o que faria o policial tomar decisões mais
moralmente ambíguas no contexto diário? Onde estaria o elemento “humano” que faria com
que sentisse que fosse errado atirar numa criança? O que é uma questão
válida ainda mais se observarmos os níveis crescentes que a violência policial
vem alcançando todos os dias.
Se mostrando ainda mais ambicioso, Padilha desmascara a
hipocrisia da população norte-americana aqui analisada. A priori, a maioria é contra o uso de robôs nas forças policiais, o
que obriga a organização OmniCorp à buscar trabalhar na possibilidade de um
robô-humano. No momento em que RoboCop vai ser apresentado à população, no
entanto, um erro de funcionamento lhe apaga as emoções e ele age simplesmente
como uma máquina que combate o crime, e, ironicamente, é com isso que a população se fascina,
demonstrando que a insistência no “elemento humano” nada mais era do que uma
fachada para encobrir o verdadeiro fascínio das pessoas com a violência. Outra
complexa mudança de perspectiva é trabalhada no terceiro ato, quando uma
organização muda suas atitudes frente à uma ação de RoboCop/Alex Murphy de
acordo com o termômetro da opnião pública.
O longa ainda se dedica à explorações mais filosóficas
ao questionar sobre a verdadeira natureza de RoboCop. Ao mesmo tempo em que é
um humano, é também uma máquina, e onde é que entram os sentimentos, as
emoções, aquilo que caracteriza o ser humano? Algo que fica bem claro é
o modo como Alex Murphy é manipulado como um objeto pela OmniCorp, com sua
fisiologia sendo constantemente mudada, alterando, assim, determinados
comportamentos controlados por processos internos, o que até gera uma discussão
sobre ética científica. Mas em certos momentos, apesar de controlado, Murphy é
arrebatado por sentimentos que incomodam seus supervisores, fugindo do
protocolo ao agir de acordo com seus próprios anseios. Assim, Padilha parece
indagar sobre a verdadeira natureza humana e até onde a própria biologia pode
controlar o indivíduo.
Nesse contexto, Padilha aproveita muito bem a
oportunidade para explorar o que a temática tem a oferecer. Imaginando o futuro
dos estudos das neurociências nos implantes para amputados, agora acoplando
partes mecânicas para membros ausentes, é interessante ver como o diretor é
eficiente ao mostrar um paciente, agora com mãos eletrônicas, reaprendendo a
tocar violão e, no processo, sentindo uma emoção profunda, que atrapalha o
funcionamento de suas mãos, sendo então advertido pelo médico que “não deve
sentir tão profundamente”, ao que o paciente retruca, sabiamente, que “para
tocar, precisa sentir”. A dialética relação entre a razão e a emoção é aqui
evocada (sutilmente) por Padilha, demonstrando inteligência ao trabalhar um
tema tão caro às mais clássicas ficções científicas. E se tal temática é bem
sucedida, muito se deve também à performance admirável de Gary Oldman como o
Dr. Norton, numa atuação complexa que consegue evidenciar o fascínio que o
cientista sente frente ao que estuda e à como pode manipular diversas variáveis
através da neurologia, ao mesmo tempo em que se mostra encantado (e até
incomodado) pela gama de sentimentos humanos que surge no tratamento de seus
pacientes.
Aliás, RoboCop tem
a sorte de contar com um excelente elenco secundário, desde ao trabalho um
tanto histriônico de Samuel L. Jackson, até o charme comprado (evidente também
no figurino colorido) que Jay Baruchel imprime ao seu diretor de marketing Tom Pope, passando ainda pelo
pragmático e rígido militar interpretado por Jackie Earle Haley. Em contraponto
à performance de Oldman, Michael Keatton cria Raymond Sellars, presidente da OmniCorp,
através de um trabalho igualmente complexo que vai evidenciando a profunda psicopatia
do personagem, sempre bom e frio estrategista para avaliar os impactos de suas
considerações. E se a linda Abbie Cornish fica presa à uma personagem que só
chora, pelo menos a atriz consegue despertar certa pena no espectador. Já no
caso do protagonista, Joel Kinnaman faz o que pode para transformar Alex Murphy
numa figura mais complexa, conseguindo sucesso apenas relativo, e esse "apenas" não é por culpa sua, mas
mais pelo roteiro que, em toda sua ambição, nem sempre consegue balancear tão
bem todos os seus elementos.
E assim, RoboCop não
é uma obra perfeita, e parte disso se refere ao ritmo sempre exageradamente
desenfreado que parece estar se tornando regra para blockbusters, algo que comentei em meu texto sobre Círculo de Fogo. Assim como no filme de Guillermo
Del Toro, RoboCop parece pedir por
mais calma para poder desenvolver alguns de seus temas, mas acaba que no fim
isso incomoda muito pouco. O que incomoda um tanto mais é quando Padilha se
empolga além da conta e investe em close-ups
dolorosamente mal feitos, ou ainda quando cria, num flashback no início do filme, uma longa sequência de tiroteio com
nenhum objetivo a mais a não ser mostrar ação.
Mas, no fim das contas, RoboCop de José Padilha é um longa exemplar que não busca apenas
repetir os sucessos do filme original, mas trabalha para produzir suas próprias
temáticas e desenvolver-se por si só, o que já é admirável, ainda mais quando
os esforços são tão bem sucedidos como aqui.
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