Análise:
12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave / 2013 / EUA, Reino Unido) dir. Steve McQueen
por
Lucas Wagner
Com três filmes no currículo,
o britânico Steve McQueen vem criando obras complexas com olhar aprofundado
sobre seus personagens, sendo ainda mais hábil ao explorar o universo infernal
que os engloba. Em Hunger era a greve
de fome do presídio Maze Prison, na Irlanda do Norte, e toda a miséria que o
caracterizava, enquanto Shame é um
perturbador estudo de personagem de um homem viciado em sexo, vivendo numa
Londres impessoal e fria. Então, a óbvia preocupação que tive ao ver o Oscar
homenageando com tantas indicações esse seu 12
Anos de Escravidão, era a de que o cineasta tivesse rejeitado sua abordagem visceral
e se rendido ao melodrama fácil e simplista que tanto agrada a Academia.
Felizmente, o resultado não poderia ser mais distante do temido.
Escrito por John Ridley
a partir da história real de Solomon Northup, o longa enxerga a escravidão a
partir de um ponto pouco explorado no Cinema: o dos negros livres do Norte dos
EUA que eram sequestrados, suas identidades roubadas, para se tornar escravos
no Sul. Assim, logo no início a obra explora as crueldades cometidas contra
Solomon ao ser enganado e passar por um tremendo processo de despersonalização,
que inclui um homem branco o agredindo e forçando-o a repetir a sua falsa nova
identidade, incluindo novo nome e lugar de nascimento. Dessa forma, a violência
gráfica que McQueen se utiliza ao longo do filme é essencial por permitir que o
grau de desumanização seja sentido na íntegra pelo espectador, e que os
absurdos dos abusos físicos que os brancos cometiam contra os negros sejam
explícitos, devidamente notados.
Adotando um tom
contemplativo, McQueen cria em 12 Anos de
Escravidão uma obra que não tem pressa em contar sua história, preferindo
descrever o funcionamento e a experiência daquele universo ao invés de investir
em uma trama fechada específica. McQueen então não apenas se dedica a cenas de
fortes punições físicas, como ainda investe em momentos reflexivos nos quais
filma a natureza ao redor, cujas belas imagens contrastam com o horror
vivenciado pelos escravos (trabalho fenomenal do diretor de fotografia Sean
Bobbit, tanto nas filmagens externas como ainda ao envolver em sombras muitos
ambientes internos), sendo mais curioso ainda a frequência com que o cineasta
investe em planos que filmam o céu encoberto por árvores, numa representação de
uma prisão ao ar livre, algo ainda notado pela mata fechada que circunda os
limites da propriedade de Edwin Epps (Michael Fassbender). Com menos diálogos
do que o comum nos dias de hoje, o diretor se dedica mais a filmar o dia-a-dia
dos escravos, que pareciam encontrar muito raramente pequenos prazeres como ao
cantar enquanto trabalham ou em criar pequenos objetos artísticos, e é
sintomático que numa cena uma escrava faça bonecos com sabugos de milho enquanto,
não muito longe, alguns de seus companheiros são açoitados, mal percebidos pela
moça sorridente envolvida em seu passatempo e já tão acostumada à horrível
visão ao seu lado. Mais cruel de tudo é enxergar como no filme qualquer
resposta que um negro dê que contenha pelo menos um pouco de sua fome pela vida
e desejo de não mais ser feito de animal venha seguida de uma punição tão
violenta e absurda (filmada em suas dimensões) que permite que o próprio
espectador compreenda a mudez daqueles indivíduos.
Investindo em longos
planos estáticos para filmar a violência que os negros sofriam, McQueen é
extremamente bem sucedido ao levar o espectador a um estado de angústia
extrema, muito maior do que pelo mero sangue. O cineasta ainda se permite
planos-sequências e planos longos que passeiam pelo ambiente, não apenas com
objetivos estilísticos mas ainda de criar uma sensação de continuidade nas
sequências que podem deixar o espectador aflito por uma noção de que tais
momentos estão se estendendo demais, algo principalmente observável numa
sequência particularmente pesada envolvendo os personagens de Chiwetel Ejiofor,
Fassbender, Sarah Paulson e Lupita Nyong’o. Sempre fugindo do melodrama, o
diretor busca sons diegéticos (do ambiente) da natureza durante boa parte do
tempo, mas nunca ignorando a maravilhosa trilha sonora composta por Hans
Zimmer, com seus tons fortes que trazem algo de selvagem para a obra, mas
também com os tons melancólicos tão sabiamente usados por McQueen em
momentos-chave para acentuar o drama,
nunca criá-lo.
12
Anos de Escravidão apresenta um interessantíssimo trabalho
de escalação do elenco pela diretora de casting
Francine Maisler e por McQueen, pois não hesitam em escalar atores brancos
de enorme sucesso para interpretar homens violentos e implacáveis, decisão
corajosa ao invés de se decidirem por desconhecidos que facilitariam a experiência
do espectador ao assistir ao filme. Aliás, o longa se torna ainda mais complexo
na sua análise do homem branco. Longe de cair na ignorância de tratá-los
homogeneamente como monstros (ainda mais porque a escravidão, nessa época, se
restringia ao Sul), o filme acerta ao criar diversos tipos de homens brancos,
mesmo entre os sulistas, desde aqueles que concordavam vigorosamente com a
escravidão até aqueles que eram contra. Mais sintomático, no entanto, é notar
que mesmo aqueles tão mais humanos e contrários à escravidão, como os
personagens de Brad Pitt e Benedict Cumberbatch (este que, mesmo contrário,
mantinha escravos), se viam receosos e com medo quando chegava a hora de ajudar
um negro, sendo que seus esforços iam apenas até certo ponto, e para ir além
era preciso uma grande coragem, além de uma declaração verbal do perigo que
corriam ao realizar tal ajuda, deixando o negro ajudado ciente do sacrifício
que era feito por eles.
É claro que há todos
esses tipos e há aquele de Edwin Epps, numa terceira parceria do ator Michael
Fassbender com McQueen. Interpretado por Fassbender com uma fúria maníaca que
deixa claro todas as evidências psicopatológicas do personagem, Epps apresenta
um comportamento de verdadeira opressão em relação aos seus escravos (simples
animais, segundo ele), não hesitando em puni-los de forma brutal, justificando
suas ações (como se ele precisasse disso) com uma Bíblia na mão. Porém, Epps
possui uma complexa paixão pela escrava Patsey (Nyong’o), que ultrapassa em
muito a comum relação de prazer carnal entre amo e serva, pois Epps está sempre
favorecendo-a e parece buscá-la com fúria apaixonada, ao mesmo tempo em que,
como fica demonstrado quando a agride quando faz sexo com ela, se vê em claro
conflito emocional, já que seus profundos sentimentos são depositados em “algo”
que para ele não é humano, e o ódio que pode demonstrar em relação a ela não é
mais que uma máscara para o ódio em relação a si mesmo. Aqui, o belo roteiro de
John Ridley é genial ao explorar as contradições do “espírito” humano em
relação a suas vontades e ao que realmente lhe é socialmente permitido, e como
isso se evidencia em ambíguos comportamentos, principalmente no contexto da
relação entre patrão e escrava.
Falando em “espírito”
humano, 12 Anos de Escravidão é,
acima de tudo que foi escrito nesse texto, um retrato da destruição de tudo o
que compunha a “alma” do negro livre feito de escravo, Solomon. Sujeito alegre
e realizado em sua família (apesar de certas dificuldades financeiras), Solomon
se completa na sua Arte: tocar violino. Dono de uma personalidade forte que
luta pelos seus direitos, o protagonista se choca com uma realidade diferente
ao ser sequestrado, pois a partir desse momento não pode dar voz a sua própria
existência, pois deve manter sua identidade em segredo, por motivos de
segurança. Assim, quando lhe atentam para isso, ele, com voz forte, afirma que
não se calará, que “prefere viver, não sobreviver”. Essa noção vai mudando, e
Solomon é obrigado a ir abdicando cada vez mais de si, de tudo o que o tornava
uma pessoa única e valiosa, para poder apenas sobreviver, lutando sempre para
não cair no desespero. E se vai encontrando dificuldades em aceitar esse caminho, a ponto de, a princípio,
ser capaz de agredir um de seus senhores brancos que estava sendo excessivamente abusivo contra ele, aos poucos o protagonista vai
perdendo sua voz, perdendo totalmente sua identidade, e por isso cenas como o
interminável plano que mostra Solomon com uma corda no pescoço e a ponta dos
pés no chão tem tanta importância, pois assim McQueen força no próprio
espectador o sentimento de vergonha, humilhação e dor que o personagem está
sentindo como consequência de sua revolta. Todo esse processo culmina num sentimento de angustiante vazio, a
ponto de Solomon enxergar o seu amado violino como não sendo mais uma parte de
sua personalidade e, num momento de abissal desamparo, o destrói, como se só
soubesse responder à sua situação com o ódio.
E assim, Solomon vai chocando
mais e mais contra paredes e, se ousa tentar escapar, é surpreendido por mais
uma cena de violência traumatizante. A desumanização do personagem chega a
tanto que ele se rebaixa, em certo momento, a trair a confiança de um “colega”
simplesmente para salvar seu próprio pescoço, algo que, convenhamos, seu “colega”
faria do mesmo jeito. E são apenas em minúsculos momentos que o protagonista
permite-se certo alívio, e por isso mesmo é que é tão comovente o longo plano
que McQueen se utiliza para mostrar Solomon em meio de um grupo de negros
cantando, enquanto o protagonista começa calado e aos poucos começa a cantar
desesperado, como que num grito de ajuda, algo que o ator Chiwetel Ejiofor é
genial ao retratar na gradual entrega do personagem ao canto alto e sofrido.
Aliás, Ejiofor é um ator sempre brilhante (vide seus papéis em Coisas Belas e Sujas, Melinda e Melinda, O Gângster, etc) que só agora está sendo devidamente reconhecido, e
sua composição de Solomon é linda, repleto de um sofrimento palpável através do
grito sempre entalado na garganta de um personagem forte, mas que quando muito
se expressa, depois de tanta repressão, é mais através de lágrimas do que de
algo mais alto e potente.
Pois é profundamente
triste ver Solomon se entregando à raiva por não ter nem como escrever, não
encontrando via nenhuma para canalização de seu desamparo, algo que o asfixia,
o tortura e, muito mais do que seus impiedosos senhores brancos são capazes, o
transforma em um mero fantasma. E é assim que, ao final desse maravilhoso
filme, percebemos não ter acompanhado uma visão simplista da escravidão, onde
toda a repugnância se resume à dor física, mas que fomos obrigados a encarar
algo muito pior, que certamente machucava muito mais aqueles seres humanos
submetidos à selvageria de sua própria espécie: a dor existencial.
--Outras análises
minhas de filmes dirigidos por Steve McQueen:
--
Shame
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