Análise:
Clube de Compras Dallas
(Dallas Buyers Club / 2013 / EUA)
dir. Jean-Marc Vallée
por Lucas Wagner
Clube
de Compras Dallas é um longa sutil que merece créditos em
especial por conseguir transitar entre uma trama com aspectos políticos e
sociais e ainda ser um belo estudo de personagem, equilibrando-se numa
abordagem sóbria e honesta promovida pelo diretor canadense Jean-Marc Vallée e
presenteado com uma performance fascinante de Matthew McConaughey, que prova
para cada alma duvidosa porque é um dos melhores atores da atualidade.
O roteiro de Craig
Borten e Melisa Wallack conta a história real do cowboy Ronald Woodproof (personagem de McConaughey), que descobriu
ser portador do vírus HIV, e aos poucos foi se engajando numa luta para
conseguir tratamentos eficazes para sua condição. Percebendo os malefícios da
droga que tomava (AZT), Woodproof se dedicou aos medicamentos alternativos de
um médico sem licença, e logo depois começou a contrabandear esses medicamentos
para os EUA.
A direção discreta de
Vallée é eficaz principalmente por fugir de arroubos emocionais, buscando
registrar de maneira quase documental (a câmera na mão, a fotografia granulada
e a praticamente ausente trilha sonora) os eventos que busca contar,
conseguindo assim transitar com tranquilidade e até certa suavidade entre as
batalhas emocionais de Woodproof e todo o contexto envolvendo a comercialização
de drogas para tratamento da AIDS. Ainda é importante ressaltar como o diretor
nunca é mesquinho o suficiente para trabalhar a transformação psicológica de
Woodproof de maneira óbvia, e assim o processo emocional que passa durante a
projeção se dá de maneira lenta e gradual (sucesso também devido à McConaughey,
como comentarei logo em seguida), e mesmo no fim do filme podemos ver traços da
personalidade mais ignorante do protagonista, muito embora este tenha sofrido
uma enorme mudança e amadurecimento.
Falar de Woodproof é
falar mesmo de Matthew McConaughey. Em uma etapa excelente de sua carreira
(vide seus papéis em Killer Joe, Poder e a Lei, Bernie, Mud, O Lobo de Wall Street e, é claro, no
seriado True Detective), McConaughey
aqui demonstra uma disciplina e dedicação até então desconhecida em sua
carreira, ao passa por uma notável transformação física, se tornando uma
criatura raquítica que rivaliza com as metamorfoses que Christian Bale tanto
gosta de fazer. Mais impressionante, no entanto, é observar a transformação
emocional de Woodproof, algo que o ator não apenas explora com entrega como
ainda demonstra inteligência e coragem ao investir numa performance que em
momento algum ameaça suavizar o protagonista. Pois Woodproof não é uma figura de
toda agradável, e no início da obra o sentimento que mais desperta é o de puro
nojo, devido às suas atitudes racistas, homofóbicas, sexistas e estupidamente
arrogantes.
O descobrimento de sua
condição é o estopim para Woodproof mudar, já que, como a AIDS naquela época
era algo visto pela população como uma doença exclusiva para homossexuais, o
protagonista logo é rechaçado pelo seu grupo de amigos, tão homofóbicos quanto
ele mesmo. E é num longo processo em que ele vai percebendo que, gostando ou
não, ele mesmo passa a ter muito mais a ver com o travesti Rayon (Jared Leto) do
que com seus antigos camaradas, e um claro sinal de amadurecimento fica
evidente quando se indigna com o desrespeito demonstrado pelo seu amigo
policial (Steve Zahn) frente à Rayon. A metamorfose que Woodproof vive se dá
num nível extremamente profundo, e isso fica bem evidente pelo fato de, se
continua fazendo piadas homofóbicas, ele passa a demonstrar carinho e cuidado
por Rayon, e em certo momento demonstra uma profunda emoção pelo amigo, quando,
em um determinado abraço, enche seus olhos de lágrimas. A performance de
McConaughey, aliás, está repleta de nuances como esta, e é notável o quanto nos
tornamos íntimos de sua figura, e assim compreendemos as complexas e resignadas
emoções que surgem no terceiro ato.
O longa ainda é
beneficiado pelo belo trabalho de Jared Leto como Rayon, numa complexa composição
na qual podemos perceber claramente como toda sua pose um tanto arrogante é na
verdade uma intrincada forma de defender uma personalidade delicada e
quebradiça. Já Jennifer Garner acerta ao transformar a Dra. Eve numa figura
tridimensional em seu claro sofrimento pela impotência de suas ações visando a
melhoria de vida de seus pacientes (e assim é curioso que o figurino dela seja
basicamente o jaleco branco, e quando não, geralmente é uma roupa que lembra o
jaleco, reforçando assim sua dedicação). Já Steve Zahn tem uma performance
totalmente ignorada pela crítica onde consegue transformar o policial Tucker
numa figura extremamente ambígua em seus sentimentos de amizade e desprezo por
Woodproof.
Clube
de Compras Dallas ainda se mostra notável ao nunca
demonizar ninguém, e se seria fácil para um roteiro mais pueril transformar em
vilões os médicos e executivos que regulam a circulação das drogas para
tratamento de AIDS, aqui estes são sempre vistos como simplesmente humanos, presos
à regras que, se até certo ponto os tornam um tanto quanto podres, em nenhum
momento são vistos como psicopatas preocupados apenas com o próprio lucro. Nesse
ponto ainda, é admirável como o longa surpreende em detalhes sutis mas que
fogem da facilidade emocional, como ao nunca mostrar Woodproof dividindo uma
garrafa ou um copo com outra pessoa, ou mesmo ao não negar o humor de certas
piadas homofóbicas, embora o filme passe longe dessa classificação.
Sendo assim, Clube de Compras Dallas pode não ser um
grande filme que promova discussões e reflexões demasiado profundas sobre seus personagens
ou mesmo seu universo. Mas é sim uma obra cuja completa naturalidade com que
trata de seus temas e pessoas permite que nos aproximemos de seus dilemas, e
assim somos envolvidos nas duas horas de duração e torcemos por aquelas figuras
tão reais.
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