sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014


Análise:

RoboCop (RoboCop  / 2014 / EUA) dir. José Padilha

por Lucas Wagner

Uma ficção científica de alta qualidade sabe usar das possibilidades futuristas que explora não apenas com um fim em si mesmo, mas também para criar um simulacro investigando as consequências que os elementos imaginados para aquele universo teriam sobre aspectos sociais, econômicos, psicológicos e filosóficos. Grandes autores do gênero, como Arthur C. Clarke, Isaac Asimov e Phillip K. Dick, compreendiam isso como ninguém, e nessa refilmagem do clássico RoboCop, de 1987, o cineasta brasileiro José Padilha acerta ao não enxergar seu projeto apenas como um blockbuster que abre suas portas à Hollywood, mas sim como a possibilidade de desenvolver temas complexos e promover discussões importantes.

Não que não funcione como um exímio arrasa-quarteirão. Com folga no sentido financeiro, Padilha teve o conforto de trazer colaboradores habituais para o projeto, podendo assim trabalhar com mais tranquilidade. Assim, volta a trabalhar com o diretor de fotografia Lula Carvalho, construindo uma estética similar à de seus projetos anteriores, aqui alterando entre uma paleta granulada para filmar sequências em família ou nas ruas, e outras mais “plásticas”, acinzentadas, para filmar o mundo executivo/político/científico. Trazendo também o sempre brilhante montador Daniel Rezende (aqui trabalhando junto com Peter McNulty), Padilha consegue criar sequências de ação notáveis, enérgicas e cruas como de costume, ao mesmo tempo em que nunca as torna confusas. Contribuindo para esses momentos agitados, a trilha sonora do excelente Pedro Bromfman imprime energia e intensidade à obra, ao mesmo tempo em que contrapõe temas mais modernos, beirando o estilo “Hans Zimmer”, com outros que evocam a trilha original do longa de 87. Ainda no quesito técnico, os efeitos visuais se mostram competentes ao quase nunca trair sua natureza virtual e ainda criar designs interessantes e bonitos para os robôs aqui vistos.

Mas como já dito, a visão de Padilha para o filme é muito mais crítica, e assim é curioso observar como o cineasta consegue trabalhar temas que já lhe chamaram a atenção anteriormente. Dessa forma, assim como em Tropa de Elite 1 e 2, a corrupção da polícia e das grandes organizações são evocados sem reservas, enquanto até mesmo questões mais intimistas voltam a ser exploradas pelo diretor, como a tristeza em que vive Clara Murphy (Abbie Cornish) pelo estresse constante de ser mulher de um policial, assim como vivia a esposa de Nascimento nos longas citados. A mídia também é vista com desprezo através do personagem de Samuel L. Jackson, como um apresentador de TV tão exagerado em seu patriotismo, moralismo e falso cinismo como o repugnante Fortunato de Tropa de Elite 2, ambos movidos por interesses menos louváveis do que aparentam. E, como não poderia deixar de ser no caso do diretor do maravilhoso Ônibus 174 (seu melhor filme), RoboCop ainda trás discussões envolvendo indivíduos completamente à mercê de instituições mais poderosas.

Os objetivos mais críticos de Padilha ficam claros desde a sequência inicial, quando mostra que seu maior tópico de discussão é na situação (ainda) imaginária envolvendo o uso de forças armadas guiadas por inteligência artificial em contraponto à boa e velha humana. Se isso já cria uma questão interessante a ser imaginada para um futuro que não parece muito distante, Padilha demonstra ser mais ambicioso (e corajoso) ao logo apresentar os EUA em toda a sua arrogância de buscar passar a impressão de que, com suas constantes invasões a outros países, estão na verdade fazendo um bem e visando a proteção mundial. Na verdade, os EUA são comprovadamente movidos substancialmente pela Indústria Bélica, que movimenta bilhões e bilhões de dólares na produção e comercialização de novos armamentos. O que, é claro, a tornaria sedenta para alcançar um mercado aparentemente infindável ao trocar soldados humanos por androides, e logo voltando seus olhos para as possibilidades de trocar a polícia do próprio país por robôs. O que cria um conflito mais intenso, pois o que faria o policial tomar decisões mais moralmente ambíguas no contexto diário? Onde estaria o elemento “humano” que faria com que sentisse que fosse errado atirar numa criança? O que é uma questão válida ainda mais se observarmos os níveis crescentes que a violência policial vem alcançando todos os dias.

Se mostrando ainda mais ambicioso, Padilha desmascara a hipocrisia da população norte-americana aqui analisada. A priori, a maioria é contra o uso de robôs nas forças policiais, o que obriga a organização OmniCorp à buscar trabalhar na possibilidade de um robô-humano. No momento em que RoboCop vai ser apresentado à população, no entanto, um erro de funcionamento lhe apaga as emoções e ele age simplesmente como uma máquina que combate o crime, e, ironicamente, é com isso que a população se fascina, demonstrando que a insistência no “elemento humano” nada mais era do que uma fachada para encobrir o verdadeiro fascínio das pessoas com a violência. Outra complexa mudança de perspectiva é trabalhada no terceiro ato, quando uma organização muda suas atitudes frente à uma ação de RoboCop/Alex Murphy de acordo com o termômetro da opnião pública.

O longa ainda se dedica à explorações mais filosóficas ao questionar sobre a verdadeira natureza de RoboCop. Ao mesmo tempo em que é um humano, é também uma máquina, e onde é que entram os sentimentos, as emoções, aquilo que caracteriza o ser humano? Algo que fica bem claro é o modo como Alex Murphy é manipulado como um objeto pela OmniCorp, com sua fisiologia sendo constantemente mudada, alterando, assim, determinados comportamentos controlados por processos internos, o que até gera uma discussão sobre ética científica. Mas em certos momentos, apesar de controlado, Murphy é arrebatado por sentimentos que incomodam seus supervisores, fugindo do protocolo ao agir de acordo com seus próprios anseios. Assim, Padilha parece indagar sobre a verdadeira natureza humana e até onde a própria biologia pode controlar o indivíduo.

Nesse contexto, Padilha aproveita muito bem a oportunidade para explorar o que a temática tem a oferecer. Imaginando o futuro dos estudos das neurociências nos implantes para amputados, agora acoplando partes mecânicas para membros ausentes, é interessante ver como o diretor é eficiente ao mostrar um paciente, agora com mãos eletrônicas, reaprendendo a tocar violão e, no processo, sentindo uma emoção profunda, que atrapalha o funcionamento de suas mãos, sendo então advertido pelo médico que “não deve sentir tão profundamente”, ao que o paciente retruca, sabiamente, que “para tocar, precisa sentir”. A dialética relação entre a razão e a emoção é aqui evocada (sutilmente) por Padilha, demonstrando inteligência ao trabalhar um tema tão caro às mais clássicas ficções científicas. E se tal temática é bem sucedida, muito se deve também à performance admirável de Gary Oldman como o Dr. Norton, numa atuação complexa que consegue evidenciar o fascínio que o cientista sente frente ao que estuda e à como pode manipular diversas variáveis através da neurologia, ao mesmo tempo em que se mostra encantado (e até incomodado) pela gama de sentimentos humanos que surge no tratamento de seus pacientes.

Aliás, RoboCop tem a sorte de contar com um excelente elenco secundário, desde ao trabalho um tanto histriônico de Samuel L. Jackson, até o charme comprado (evidente também no figurino colorido) que Jay Baruchel imprime ao seu diretor de marketing Tom Pope, passando ainda pelo pragmático e rígido militar interpretado por Jackie Earle Haley. Em contraponto à performance de Oldman, Michael Keatton cria Raymond Sellars, presidente da OmniCorp, através de um trabalho igualmente complexo que vai evidenciando a profunda psicopatia do personagem, sempre bom e frio estrategista para avaliar os impactos de suas considerações. E se a linda Abbie Cornish fica presa à uma personagem que só chora, pelo menos a atriz consegue despertar certa pena no espectador. Já no caso do protagonista, Joel Kinnaman faz o que pode para transformar Alex Murphy numa figura mais complexa, conseguindo sucesso apenas relativo, e esse "apenas" não é por culpa sua, mas mais pelo roteiro que, em toda sua ambição, nem sempre consegue balancear tão bem todos os seus elementos.

E assim, RoboCop não é uma obra perfeita, e parte disso se refere ao ritmo sempre exageradamente desenfreado que parece estar se tornando regra para blockbusters, algo que comentei em meu texto sobre Círculo de Fogo. Assim como no filme de Guillermo Del Toro, RoboCop parece pedir por mais calma para poder desenvolver alguns de seus temas, mas acaba que no fim isso incomoda muito pouco. O que incomoda um tanto mais é quando Padilha se empolga além da conta e investe em close-ups dolorosamente mal feitos, ou ainda quando cria, num flashback no início do filme, uma longa sequência de tiroteio com nenhum objetivo a mais a não ser mostrar ação.

Mas, no fim das contas, RoboCop de José Padilha é um longa exemplar que não busca apenas repetir os sucessos do filme original, mas trabalha para produzir suas próprias temáticas e desenvolver-se por si só, o que já é admirável, ainda mais quando os esforços são tão bem sucedidos como aqui.

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