Análise:
Trapaça (American Hustle / 2013 / EUA) dir. David O. Russell
por
Lucas Wagner
Quando escrevi sobre o irregular
O Lado Bom da Vida, finalizei o texto
demonstrando esperança de que o projeto seguinte do diretor David O. Russell,
então intitulado American Bullshit,
demonstrasse mais cuidado por parte de seu ótimo cineasta. Com o nome
modificado, por motivos óbvios, para American
Hustle (e no Brasil chamado de Trapaça),
finalmente conferi o projeto, e fico feliz de ver o diretor novamente em boa
forma, numa obra divertida que ressalta a versatilidade temática de O. Russell,
apesar de em nenhum momento apresentar o mesmo brilhantismo de outros trabalhos
do diretor, como Três Reis, Huckabees – A Vida é Uma Comédia ou O Vencedor.
Com roteiro do próprio
David O. Russell e Eric Warren Singer, a trama se baseia (livremente) na
história real do vigarista Irving Rosenfeld (Christian Bale), cuja carreira de
trambiques apresentava um horizonte espetacular, em especial depois da entrada
de sua amante e parceira Sydney (Amy Adams). Depois de serem desmascarados pelo
agente do FBI Richie DiMaso (Bradley Cooper), os criminosos são obrigados a
colaborar numa investigação que visa prender não apenas diversos outros
golpistas, mas pôe mafiosos e políticos na mira também.
Desde o início, fica
bastante claro que os objetivos de O. Russell são de homenagens aos filmes do
deus Martin Scorsese. Empregando diversos close-ups,
câmeras lentas que exploram os corpos de seus personagens (femininos,
principalmente) e elementos do cenário, além de planos complexos e elaborados que
passeiam pelo ambiente ao som de narrações em off de múltiplos personagens (injustamente abandonada durante boa
parte da projeção), que acabam revelando seus pontos de vistas sobre os
acontecimentos da trama e seus sentimentos, Trapaça
se aproxima de obras marcantes de Scorsese, como Os Bons Companheiros, Cassino
e Caminhos Perigosos (não cito O Lobo de Wall Street por motivos
óbvios). E como se tudo isso não bastasse, Robert De Niro aparece numa ponta
excepcional como um impiedoso mafioso. O diretor ainda aproveita para preencher
seu longa com músicas que não apenas se aproximam das escolhas de Scorsese para
seus próprios filmes, mas que ainda ressaltam o absoluto bom gosto de O.
Russell ao selecionar belas músicas de Paul McCartney, Rolling Stones,
Jefferson Airplane, Bee Gees, Elton John, que ainda caem como uma luva numa
trama contada no estilo mais cool possível.
Empregando uma
fotografia (de Linus Sandgren) baseada em cores quentes e fortes, Trapaça constantemente busca uma
atmosfera leve mesmo lidando com uma trama de crimes, e isso se justifica pelo
caráter de absurdo da própria história contada, algo que o trabalho de figurino
e da maquiagem ressaltam pelas roupas escandalosas e penteados insanos de seus
personagens. O bom humor habitual da filmografia de O. Russell também encontra
seu lugar em momentos sutilmente engraçados (e por vezes mais exagerados,
embora ainda eficazes), e o diretor tem uma interessante idéia ao balancear os
conflitos afetivos dos personagens com outros problemas mais sérios, conferindo
um caráter ainda maior de sátira e ridículo àquele universo.
A maior força de Trapaça está, no entanto, em seu elenco.
Em seu segundo trabalho com o diretor, Christian Bale, interpretando Irving,
apresenta novamente sua dedicação em mais uma pesada transformação física, mas
aqui não se transformando numa múmia como em O Operário ou O Vencedor,
mas sim se tornando um homem obeso, cuja preocupação em esconder a careca da
melhor forma possível revela uma certa vaidade grotesca, assim como seu lado
vigarista, de estar sempre escondendo a verdade, algo ressaltado também por seu
constante uso de óculos escuros. Nunca duvidamos de suas habilidades golpistas,
muito embora a maior força do trabalho do ator esteja justamente tornar Irving
uma figura mais complexa no seu sincero amor por Sydney, pelo seu enteado, e
até mesmo quando engole mentiras extravagantes de sua mulher Roselyn (Jennifer
Lawrence). Mas é em sua relação com o prefeito Carmine Polito (Jeremy Renner)
que ele se torna mais tridimensional, já que desenvolve por ele um verdadeiro
afeto enquanto na verdade está trabalhando para colocá-lo na cadeia, e assim é
tocante ver Irving sofrendo por mentir cada vez mais para seu amigo, e ainda é
curioso que, em um momento chave do fim do longa, os óculos escuros sejam constantemente
retirados do rosto do protagonista. Já Bradley Cooper interpreta o agente
DiMaso de forma a criar um sujeito cuja aparência de “policial honesto em busca
de justiça” vai se desgastando quanto mais percebemos que seus objetivos são
apenas de crescer na carreira. Ainda, Cooper torna seu personagem mais complexo
ao engasgar muitas vezes ao falar, revelando uma natureza mais tímida que aos
poucos vai dando lugar à uma demonstração de energia quase maníaca, além de uma
preocupante tendência à violência (evidenciado em sua relação com seu chefe).
Ainda é bastante curioso que DiMaso seja cada vez mais visto usando óculos escuros
no decorrer da projeção.
E se o comediante Louis
CK cria Stoddard como um indivíduo inseguro e imaturo, e De Niro se diverte em
sua ponta como mafioso, enquanto Jeremy Renner acerta ao transformar Carmine
numa pessoa sensível e bondosa, e justamente por isso complexa (afinal, está
envolvido em negócios sujos), Jennifer Lawrence abraça a insanidade de Roselyn
de forma a torná-la uma figura tragicômica de uma mulher triste mas obviamente
maníaca, responsável por uma das cenas mais hilárias da obra, quando tenta
fingir que o que foi um grotesco erro seu na verdade foi um ato todo calculista
de preservação do marido (e o modo como Lawrence diz isso é engraçadíssimo). Mas
a melhor atuação da obra fica por conta da linda Amy Adams, que aqui cria
Sydney como uma mulher extremamente complexa e forte, cujas origens humildes
obrigaram-na a se tornar uma pessoa dona de si e ambígua, sempre com um
interesse por trás de suas ações, além de completamente segura de si, apesar de
em certos momentos quase surtar.
Assim, Trapaça é um filme divertido e
engraçado, com personagens complexos e interessantes, e um elenco fenomenal. É
ótimo ver O. Russell novamente em boa forma, apesar de em um filme que nunca
chega a ser uma obra prima, embora seja inegavelmente bom.
-Análises minhas de
outros filmes dirigidos por David O. Russell:
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