domingo, 16 de fevereiro de 2014


Análise:

12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave / 2013 / EUA, Reino Unido) dir. Steve McQueen

por Lucas Wagner

Com três filmes no currículo, o britânico Steve McQueen vem criando obras complexas com olhar aprofundado sobre seus personagens, sendo ainda mais hábil ao explorar o universo infernal que os engloba. Em Hunger era a greve de fome do presídio Maze Prison, na Irlanda do Norte, e toda a miséria que o caracterizava, enquanto Shame é um perturbador estudo de personagem de um homem viciado em sexo, vivendo numa Londres impessoal e fria. Então, a óbvia preocupação que tive ao ver o Oscar homenageando com tantas indicações esse seu 12 Anos de Escravidão, era a de que o cineasta tivesse rejeitado sua abordagem visceral e se rendido ao melodrama fácil e simplista que tanto agrada a Academia. Felizmente, o resultado não poderia ser mais distante do temido.

Escrito por John Ridley a partir da história real de Solomon Northup, o longa enxerga a escravidão a partir de um ponto pouco explorado no Cinema: o dos negros livres do Norte dos EUA que eram sequestrados, suas identidades roubadas, para se tornar escravos no Sul. Assim, logo no início a obra explora as crueldades cometidas contra Solomon ao ser enganado e passar por um tremendo processo de despersonalização, que inclui um homem branco o agredindo e forçando-o a repetir a sua falsa nova identidade, incluindo novo nome e lugar de nascimento. Dessa forma, a violência gráfica que McQueen se utiliza ao longo do filme é essencial por permitir que o grau de desumanização seja sentido na íntegra pelo espectador, e que os absurdos dos abusos físicos que os brancos cometiam contra os negros sejam explícitos, devidamente notados.

Adotando um tom contemplativo, McQueen cria em 12 Anos de Escravidão uma obra que não tem pressa em contar sua história, preferindo descrever o funcionamento e a experiência daquele universo ao invés de investir em uma trama fechada específica. McQueen então não apenas se dedica a cenas de fortes punições físicas, como ainda investe em momentos reflexivos nos quais filma a natureza ao redor, cujas belas imagens contrastam com o horror vivenciado pelos escravos (trabalho fenomenal do diretor de fotografia Sean Bobbit, tanto nas filmagens externas como ainda ao envolver em sombras muitos ambientes internos), sendo mais curioso ainda a frequência com que o cineasta investe em planos que filmam o céu encoberto por árvores, numa representação de uma prisão ao ar livre, algo ainda notado pela mata fechada que circunda os limites da propriedade de Edwin Epps (Michael Fassbender). Com menos diálogos do que o comum nos dias de hoje, o diretor se dedica mais a filmar o dia-a-dia dos escravos, que pareciam encontrar muito raramente pequenos prazeres como ao cantar enquanto trabalham ou em criar pequenos objetos artísticos, e é sintomático que numa cena uma escrava faça bonecos com sabugos de milho enquanto, não muito longe, alguns de seus companheiros são açoitados, mal percebidos pela moça sorridente envolvida em seu passatempo e já tão acostumada à horrível visão ao seu lado. Mais cruel de tudo é enxergar como no filme qualquer resposta que um negro dê que contenha pelo menos um pouco de sua fome pela vida e desejo de não mais ser feito de animal venha seguida de uma punição tão violenta e absurda (filmada em suas dimensões) que permite que o próprio espectador compreenda a mudez daqueles indivíduos.

Investindo em longos planos estáticos para filmar a violência que os negros sofriam, McQueen é extremamente bem sucedido ao levar o espectador a um estado de angústia extrema, muito maior do que pelo mero sangue. O cineasta ainda se permite planos-sequências e planos longos que passeiam pelo ambiente, não apenas com objetivos estilísticos mas ainda de criar uma sensação de continuidade nas sequências que podem deixar o espectador aflito por uma noção de que tais momentos estão se estendendo demais, algo principalmente observável numa sequência particularmente pesada envolvendo os personagens de Chiwetel Ejiofor, Fassbender, Sarah Paulson e Lupita Nyong’o. Sempre fugindo do melodrama, o diretor busca sons diegéticos (do ambiente) da natureza durante boa parte do tempo, mas nunca ignorando a maravilhosa trilha sonora composta por Hans Zimmer, com seus tons fortes que trazem algo de selvagem para a obra, mas também com os tons melancólicos tão sabiamente usados por McQueen em momentos-chave para acentuar o drama, nunca criá-lo.  

12 Anos de Escravidão apresenta um interessantíssimo trabalho de escalação do elenco pela diretora de casting Francine Maisler e por McQueen, pois não hesitam em escalar atores brancos de enorme sucesso para interpretar homens violentos e implacáveis, decisão corajosa ao invés de se decidirem por desconhecidos que facilitariam a experiência do espectador ao assistir ao filme. Aliás, o longa se torna ainda mais complexo na sua análise do homem branco. Longe de cair na ignorância de tratá-los homogeneamente como monstros (ainda mais porque a escravidão, nessa época, se restringia ao Sul), o filme acerta ao criar diversos tipos de homens brancos, mesmo entre os sulistas, desde aqueles que concordavam vigorosamente com a escravidão até aqueles que eram contra. Mais sintomático, no entanto, é notar que mesmo aqueles tão mais humanos e contrários à escravidão, como os personagens de Brad Pitt e Benedict Cumberbatch (este que, mesmo contrário, mantinha escravos), se viam receosos e com medo quando chegava a hora de ajudar um negro, sendo que seus esforços iam apenas até certo ponto, e para ir além era preciso uma grande coragem, além de uma declaração verbal do perigo que corriam ao realizar tal ajuda, deixando o negro ajudado ciente do sacrifício que era feito por eles.

É claro que há todos esses tipos e há aquele de Edwin Epps, numa terceira parceria do ator Michael Fassbender com McQueen. Interpretado por Fassbender com uma fúria maníaca que deixa claro todas as evidências psicopatológicas do personagem, Epps apresenta um comportamento de verdadeira opressão em relação aos seus escravos (simples animais, segundo ele), não hesitando em puni-los de forma brutal, justificando suas ações (como se ele precisasse disso) com uma Bíblia na mão. Porém, Epps possui uma complexa paixão pela escrava Patsey (Nyong’o), que ultrapassa em muito a comum relação de prazer carnal entre amo e serva, pois Epps está sempre favorecendo-a e parece buscá-la com fúria apaixonada, ao mesmo tempo em que, como fica demonstrado quando a agride quando faz sexo com ela, se vê em claro conflito emocional, já que seus profundos sentimentos são depositados em “algo” que para ele não é humano, e o ódio que pode demonstrar em relação a ela não é mais que uma máscara para o ódio em relação a si mesmo. Aqui, o belo roteiro de John Ridley é genial ao explorar as contradições do “espírito” humano em relação a suas vontades e ao que realmente lhe é socialmente permitido, e como isso se evidencia em ambíguos comportamentos, principalmente no contexto da relação entre patrão e escrava.

Falando em “espírito” humano, 12 Anos de Escravidão é, acima de tudo que foi escrito nesse texto, um retrato da destruição de tudo o que compunha a “alma” do negro livre feito de escravo, Solomon. Sujeito alegre e realizado em sua família (apesar de certas dificuldades financeiras), Solomon se completa na sua Arte: tocar violino. Dono de uma personalidade forte que luta pelos seus direitos, o protagonista se choca com uma realidade diferente ao ser sequestrado, pois a partir desse momento não pode dar voz a sua própria existência, pois deve manter sua identidade em segredo, por motivos de segurança. Assim, quando lhe atentam para isso, ele, com voz forte, afirma que não se calará, que “prefere viver, não sobreviver”. Essa noção vai mudando, e Solomon é obrigado a ir abdicando cada vez mais de si, de tudo o que o tornava uma pessoa única e valiosa, para poder apenas sobreviver, lutando sempre para não cair no desespero. E se vai encontrando dificuldades em aceitar esse caminho, a ponto de, a princípio, ser capaz de agredir um de seus senhores brancos que estava sendo excessivamente abusivo contra ele, aos poucos o protagonista vai perdendo sua voz, perdendo totalmente sua identidade, e por isso cenas como o interminável plano que mostra Solomon com uma corda no pescoço e a ponta dos pés no chão tem tanta importância, pois assim McQueen força no próprio espectador o sentimento de vergonha, humilhação e dor que o personagem está sentindo como consequência de sua revolta. Todo esse processo culmina num sentimento de angustiante vazio, a ponto de Solomon enxergar o seu amado violino como não sendo mais uma parte de sua personalidade e, num momento de abissal desamparo, o destrói, como se só soubesse responder à sua situação com o ódio.

E assim, Solomon vai chocando mais e mais contra paredes e, se ousa tentar escapar, é surpreendido por mais uma cena de violência traumatizante. A desumanização do personagem chega a tanto que ele se rebaixa, em certo momento, a trair a confiança de um “colega” simplesmente para salvar seu próprio pescoço, algo que, convenhamos, seu “colega” faria do mesmo jeito. E são apenas em minúsculos momentos que o protagonista permite-se certo alívio, e por isso mesmo é que é tão comovente o longo plano que McQueen se utiliza para mostrar Solomon em meio de um grupo de negros cantando, enquanto o protagonista começa calado e aos poucos começa a cantar desesperado, como que num grito de ajuda, algo que o ator Chiwetel Ejiofor é genial ao retratar na gradual entrega do personagem ao canto alto e sofrido. Aliás, Ejiofor é um ator sempre brilhante (vide seus papéis em Coisas Belas e Sujas, Melinda e Melinda, O Gângster, etc) que só agora está sendo devidamente reconhecido, e sua composição de Solomon é linda, repleto de um sofrimento palpável através do grito sempre entalado na garganta de um personagem forte, mas que quando muito se expressa, depois de tanta repressão, é mais através de lágrimas do que de algo mais alto e potente.

Pois é profundamente triste ver Solomon se entregando à raiva por não ter nem como escrever, não encontrando via nenhuma para canalização de seu desamparo, algo que o asfixia, o tortura e, muito mais do que seus impiedosos senhores brancos são capazes, o transforma em um mero fantasma. E é assim que, ao final desse maravilhoso filme, percebemos não ter acompanhado uma visão simplista da escravidão, onde toda a repugnância se resume à dor física, mas que fomos obrigados a encarar algo muito pior, que certamente machucava muito mais aqueles seres humanos submetidos à selvageria de sua própria espécie: a dor existencial.

--Outras análises minhas de filmes dirigidos por Steve McQueen:
   
   -- Shame


  

Nenhum comentário:

Postar um comentário