Crítica Círculo de Fogo (Pacific Rim / 2013 / EUA) dir. Guillermo Del Toro
por
Lucas Wagner
Completamente apaixonado, desde criança, por
histórias envolvendo fantasia, monstros e fantasmas, o cineasta Guillermo Del
Toro construiu uma carreira realmente admirável onde, em cada filme seu, pôde
brincar na construção de universos fantásticos e fazer com que o espectador
mergulhe junto com ele em sua visão sempre inventiva, promovendo viagens
curiosas tanto em seus projetos mais voltados para o puro entretenimento (Blade II, Hellboy 1 e 2, etc) ou naqueles tematicamente mais sérios e
ambiciosos (O Labirinto do Fauno, A Espinha do Diabo, Cronos, etc). E é nesse espírito que ele
volta à cadeira de diretor (da qual esteve afastado desde 2008, quando, de lá
para cá, viu vários projetos afundarem antes mesmo de começarem a ser feitos),
construindo em Círculo de Fogo um
longa extremamente empolgante cujo universo criativo e personagens marcantes
fazem do filme uma experiência mais singular que busca servir como homenagem do
diretor para os seus amados filmes de monstros japoneses.
Com roteiro de Del Toro e Travis Beachem (da
medíocre refilmagem de Fúria de Titãs),
o longa narra os acontecimentos envolvendo a abertura de uma fenda
interdimensional no Oceano Pacífico, de onde saem monstros satânicos com
terrível poder de destruição que obrigam os humanos, como medida desesperada, a
criarem robôs gigantes para poder combate-los.
Conferindo uma energia admirável ao projeto,
Del Toro cria um longa extremamente fluído, com um ritmo que vai adquirindo
cada vez mais urgência e sensação de perigo com o decorrer da projeção,
recebendo, nesse ponto, grande ajuda da excelente trilha sonora de Ramin
Djawadi (Homem de Ferro, Protegendo o Inimigo, etc), que surge
sempre enérgica no sensacional uso que faz da guitarra elétrica e, aqui e ali,
de tons remetentes de música eletrônica. Del Toro ainda apresenta uma segurança
admirável na condução de sequências de ação realmente fantásticas e
destruidoras, levando o espectador a espasmos de empolgação nos excepcionais
duelos entre monstros e robôs, que nunca surgem repetitivos, em especial pela
sabedoria do diretor ao variar o máximo possível as ambientações desses duelos,
o que permite ainda que ele explore as possibilidades visuais que cada ambiente
oferece, seja na cidade ou ainda dentro do oceano. Aliás, essa exploração de
possibilidades visuais é um dos melhores aspectos de Círculo de Fogo, por não hesitar mesmo em mergulhar-nos em
ambientes completamente alienígenas (e, em um momento que tal descrição cabe
perfeitamente, Del Toro é sábio ao utilizar lentes que distorcem a imagem do que
estamos vendo, dando a necessária sensação de estranheza) e fazer com que seus
robôs utilizem o máximo possível de repertório de armas, mesmo aquelas
improvisadas, como quando Gipsy (o principal dos robôs) aparece batalhando com
um monstro usando um enorme navio como espada. E
assim, os efeitos visuais são geniais por nunca denunciarem completamente sua
natureza digital, apresentando cuidado admirável ao, por exemplo, conferir peso
e densidade à movimentação dos robôs, sugerindo assim a dificuldade que é movimentá-los;
ainda, o visual dos monstros surge como um espetáculo à parte, já que são
suficientemente peculiares para nos causar ainda mais medo e curiosidade por
aquelas criaturas, que surgem ainda mais ricos pela diversidade de espécies que
apresentam.
Como seria de se esperar do homem que criou
os fascinantes vampiros da Trilogia da
Escuridão (série de livros vampiresca escrita por Del Toro e Chuck Hogan),
os monstros de Círculo de Fogo não
são curiosos apenas em matéria de visual, mas são trabalhados por Del Toro (tá,
e Beachem também) de modo a serem desenvolvidos em sua natureza de maneira mais
complexa, fazendo com que cresçam como vilões quanto mais vamos aprendendo
sobre eles. Aliás, o longa está repleto de excelentes e ricas ideias
relativamente bem exploradas, envolvendo aquele universo todo (o mercado negro
é um aspecto particularmente interessante) e o próprio funcionamento dos robôs,
quando se refere à conexão interneuronal necessária entre duas pessoas, algo
que o roteiro trabalha bem na ligação dos pilotos com a máquina que isso cria e
a ligação inevitável entre eles mesmos (os pilotos), já que se encontram,
quando conectados, dentro da mente um do outro, sendo capazes de compartilhar
sentimentos profundos e extremamente particulares de cada um, o que estreita os
laços entre eles. Além das diversas outras curiosíssimas ideias, o roteiro
acerta quando flerta com temáticas mais sérias ao sugerir, por exemplo, os
privilégios que os ricos teriam sobre os pobres (o que levaria a diversos
protestos da população) dentro do contexto do filme, e ainda, mesmo que de
forma juvenil, indicar uma ligação direta entre a destruição ambiental que
causamos hoje em dia e a invasão dos monstros. O roteiro não se detém sobre
essas temáticas mais sérias durante muito tempo, mais é um ponto enriquecedor
principalmente por ressaltar o aspecto trágico desse mundo futurista.
O design
de produção faz um bom trabalho traduzindo visualmente tais ideias,
principalmente no submundo de Tóquio, embora, infelizmente, não consiga variar
muito o visual das ambientações. Mais interessante, no entanto, é notar o
cuidado dos realizadores com aspectos mais sutis que acabam enriquecendo demais
a obra, como no detalhe de azul no cabelo de Mako (Rinko Kikushi), remetendo à
experiência traumatizante de sua infância (observem a coloração do monstro em
sua lembrança), ou ainda quando um personagem secundário, que carrega sempre um
terço amarrado à mão, surge usando uma indumentária antiquada, sugerindo como a
própria religião se tornou antiquada naquele universo. Ainda, é notável a
atenção dos realizadores ao colocar Mako, num momento de adrenalina/pânico,
esquecendo-se de falar em inglês e usar sua língua materna (o japonês), como
que por reflexo, e é curioso como Del Toro parece ambientar o longa sempre no
período da noite, mudando esse lógica apenas quando percebe uma possibilidade
narrativa que, mesmo clara, surge elegante na sua sugestão de algum ponto de
esperança onde antes não existia nenhuma.
E essa surpreendente sensibilidade permite
que um excelente elenco trabalhe em prol de construir personagens realmente
admiráveis, que conseguem conquistar emocionalmente o espectador. O ótimo
Charlie Hunnam (que interpretou de maneira poderosa o complexo arco dramático
do protagonista Jax Teller no seriado Sons
of Anarchy) confere peso dramático à Raleigh, mostrando-o como um jovem
empolgado e depois como um adulto mais trágico e amargurado, mas que mantém a
jovialidade e o amor pelo que faz, ao mesmo tempo em que uma solidariedade e
sabedoria que serão essenciais em sua relação com Mako. O excelente Idris Elba
(ator que defendo veemente desde seu trabalho em Extermínio 2) tem, finalmente, espaço mais folgado para desenvolver
um personagem, e transforma Stacker numa figura complexa e fascinante,
demonstrando a sabedoria do personagem, que sabe ser gentil ao mesmo tempo que
demonstra uma bondade realmente admirável que o faz crescer tanto como líder e
ser humano, mas que revela-se em constante estado de tensão, lutando para
manter e calma e não explodir, mesmo que isso seja impossível de vez em quando.
Mas a personagem mais complexa do filme é mesmo Mako, principalmente pela
performance cheia de nuances da linda Rinko Kikushi, que sabe compor uma figura
tímida mas persistente em seus objetivos, cujas emoções que segura dentro de si
podem ser muito mais intensas do que ela acredita, o que tanto a fragiliza quanto,
ao mesmo tempo, a torna uma figura mais forte.
Completando essa gama de personagens ricos, o
sempre genial Ron Perlman (parceiro habitual de Del Toro e também um dos
principais de Sons of Anarchy)
transforma o traficante Hannibal Chou numa figura divertidíssima e repleta de
surpresas, se tornando sempre imprevisível (e o figurino faz um ótimo trabalho
ao vesti-lo de forma excêntrica, meio como um cafetão), enquanto o geralmente
medíocre Charlie Day (com sua irritante mania de sempre gritar suas falas) faz
um trabalho relativamente eficaz como o cientista fascinado pelos monstros, mas
essa eficácia se deve mais pela natureza do personagem do que pelo ator (o
momento em que, aterrorizado, tenta usar de um status de médico para conseguir privilégios no meio de uma multidão
desesperada é hilário). E também merece menção a dupla de pilotos formada pelo
pai experiente e o filho rebelde, já que o primeiro desde o início se
estabelece como figura de respeito, cansado e meio deprimido, enquanto o
segundo é um estorvo durante a maior parte do filme, mas sabe demonstrar seu
valor quando necessário.
No entanto, mesmo com tantos acertos
admiráveis, Círculo de Fogo passa
longe de ser um grande filme principalmente por aderir sem reservas ao
freneticismo insano tão comum entre os blockbusters
de hoje em dia (apesar de, no início do texto, eu ter elogiado o ritmo do
filme, que ainda é bom, apesar das ressalvas que farei), enquanto claramente o
longa em questão se beneficiaria se, aqui e ali, se arriscasse num tom mais
contemplativo. Digo isso em especial porque permitiria uma ilustração mais
singela e apurada do estado mental compartilhado na conexão interneuronal, onde
um toque até meio surrealista poderia conferir poesia e maior complexidade ao
momento; mas o que vemos é quase sempre uma série de imagens em alta velocidade
que mal conseguimos captar direito. Há apenas um momento em que tal tom
contemplativo é abraçado, e não é atoa que seja um dos melhores momentos do
filme. Além disso, o ritmo insano demais acaba prejudicando o desenvolvimento
dos personagens que, se ainda são ótimos, isso é mais por culpa do elenco, já
que o roteiro deixa pouco espaço de tempo para realmente se dedicar a explorar
a complexidade de cada um daqueles indivíduos que estamos conhecendo pela
primeira vez. Talvez pior do que isso tudo seja como Del Toro não consegue
evitar uma entrega besta à vários clichês tão enfadonhos e de fácil
escapatória, o que faz com que qualquer espectador (mesmo aquele que pouco
assiste filme) se sinta como se sendo feito de idiota. Sem revelar nada de
especial, alguns desses clichês se referem a, por exemplo, aquela velha cena do
personagem que começa um discurso aparentemente aversivo apenas para mostrar
que na verdade que está orgulhoso, ou ainda a conclusão do clímax, que mostra
inocência de Del Toro ao usar um mesmo recurso que está se tornando mais e mais
comum, e consequentemente, mais e mais cansativo, e já não engana ninguém.
Ainda assim, Círculo de Fogo é um ótimo filme, que mais uma vez demonstra o
talento e criatividade de Del Toro como contador de histórias, estabelecendo
esta obra como entretenimento de alta qualidade. Agora é esperar ansioso pelo seu
próximo projeto, Crimson Peak,
e sonhar, como qualquer bom cinéfilo, que depois ele possa finalmente se
dedicar ao projeto de seus sonhos: levar para as telas o genial conto Nas Montanhas da Loucura, do mestre do
terror H.P Lovecraft. Esperemos...
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