Crítica Tese Sobre Um Homicídio (Tesis Sobre Um Homicidio / 2013 /
Argentina, Espanha) dir. Hérnan Goldfrid
por
Lucas Wagner
Roberto (Ricardo Darín) é um advogado
aposentado e atual professor com problemas pessoais que claramente o afetam
psicologicamente. Quando um assassinato ocorre na universidade onde trabalha,
ele começa a desconfiar de um aluno seu, Ruiz, e, com poucas provas, começa a
tentar provar a culpa do rapaz, enquanto ninguém parece acreditar no professor.
A partir disso, Tese Sobre Um Homicídio busca
desenvolver uma trama extremamente ambígua, cujo maior acerto é justamente
sempre deixar o espectador na dúvida sobre o que está vendo, ou seja, sobre a
razão ou não das conclusões de Roberto. Mas, e me perdoem pela piadinha infame,
isso acaba funcionando mesmo é em tese, já que o roteiro de Patricio Vega não
parece capaz de explorar com propriedade as possibilidades de uma trama e um
protagonista tão curiosos, tornando a obra inevitavelmente irregular. Apesar
disso, o filme possui alguns pontos positivos que não o deixam ser totalmente
destruído.
A fotografia de Rolo Pulpeiro faz um
excelente trabalho ao, através de grande uso de sombras e cores escuras,
ambientar Tese Sobre Um Homicídio numa
atmosfera sombria e ameaçadora, algo que o diretor Hérnan Goldfrid faz bem
também ao abrir o longa com um flashforward
que mostra o bonito apartamento de Roberto todo bagunçado e revirado, já
nos preparando para a desordem que o mundo daquele personagem sofrerá. Além
disso, Pulpeiro e Goldfrid conseguem criar certas tomadas esteticamente
curiosas, como aquela em que se passa em uma boate e, nesse momento, por cima
dos personagens está acontecendo um ato artístico particularmente belo. Corroborando
na atmosfera, Sergio Moure cria uma trilha sonora constantemente melancólica,
não deixando espaço para leveza no longa. O design
de produção também se revela um acerto na medida em que constrói ambientes
que transmitem certas emoções específicas para o espectador, como o enorme
apartamento de Roberto, mas que surge vazio em sua amplitude, mesmo com tantos
objetos intelectuais, algo que contrasta com o apartamento da irmã da vítima,
que surge mais apertado, mas também mais aconchegante (e foi inteligente por
parte do diretor Goldfrid ter, numa boa misé-én-scene,
colocado a moça deitada aconchegada no sofá, com coberta e tudo); mais curioso
ainda é ver como o apartamento cinzento e moderno de Ruiz pode ser mesmo como o
de um verdadeiro psicopata (limpo, organizado) mas também transmite a
neutralidade ideal que corrobora para a incerteza buscada pelo roteiro.
Com tudo isso, Goldfrid tem as ferramentas
para trabalhar o suspense com propriedade, algo que ele faz bem ao estabelecer
um ritmo adequado à obra, mantendo a tensão sobre controle. Busca também,
acertadamente, colocar-nos sob uma perspectiva subjetiva de Roberto quando se
coloca no lugar da cena do crime (e assim sua imaginação pode assumir o ponto
de vista do assassino ou da vítima) ou ainda quando esse se encontra angustiado
e o cineasta utiliza-se (até mesmo com certo exagero, infelizmente) de babylens para distorcer a imagem que estamos
vendo, traduzindo o estado emocional do personagem de forma visual. Ainda, é bacana
o momento em que o cineasta usa um travelling
circular em 360º para mostrar Roberto em vários lugares explorando
insanamente um ambiente, novamente traduzindo as emoções do personagem de forma
eficaz.
E é mesmo em sua trama que Tese Sobre Um Homicídio aposta a maior
parte de sua ficha, o que revela até mesmo inteligência do roteirista Patricio Vega
por perceber as possibilidades temáticas do projeto. Assim, várias questões são
levantadas e relativamente bem exploradas: até que ponto a atenção aos detalhes
por parte de Roberto foi fria o suficiente? Será que ele não enxerga
determinados detalhes simplesmente porque escolheu
(inconscientemente) assim o fazer? Ainda, mesmo que em
certos momentos as evidências levantadas pelo protagonista podem parecer muito
viajadas, porque parecem se ligar ao assassinato como fazem? Apenas por pura
coincidência? Pode muito bem ser (e Vega explora isso bem) que consigamos
enxergar as coisas do modo com enxergamos simplesmente porque estamos partindo
do ponto de vista subjetivo do protagonista, que é, vale lembrar, um sujeito
com diversos problemas pessoais, depressivo e levemente alcoólatra. Assim, o
mais fascinante do longa é justamente perceber que essas ambiguidades e
incertezas que singularizam a obra, e cria assim um thriller instigante que teria tudo para ser um filmaço, não fosse
pelo fato de que, salvo os elogios que acabei de tecer à Vega, ele não sabe
como convencer o espectador sobre o que vemos e ainda trabalha porcamente um
personagem tão complexo como Roberto.
Pode ser que esses erros estejam no romance
que originou o filme (que não li), mas é um fato que Tese Sobre Um Homicídio carece de
verossimilhança suficiente para convencer-nos das pistas e deduções de Roberto.
Por exemplo: nenhum espectador em sã consciência aceitará o modo como ele
inicia sua busca (baseado na ligação de uma corrente da vítima com uma fala de
Ruiz). Isso é apenas um pequeno exemplo, já que se fosse citar outros, poderia
acabar entregando algum spoiler (não
que não seja difícil enxergar os absurdos de suas deduções durante a projeção).
Sem contar que muitos de seus argumentos não são completados durante os 106
minutos de duração, se tornando sugestões vazias que prejudicam o longa em
retrospectiva (afinal, Ruiz tinha ou não problemas com a mãe? Ora, Roberto
tinha maneiras de saber disso!). E é inegável que existam problemas mais graves
ainda na construção do longa, principalmente por não hesitar em usar recursos
pobres e inverossímeis, como a ação de Roberto para descobrir uma informação
(sério que ele precisava gastar um dinheirão para conferir o preço de certos
objetos em conjunto? Ele não poderia só ter checado com um vendedor?) e
coincidências extremamente toscas para criar uma tensãozinha pobre*.
Pior ainda talvez seja perceber que Roberto é
uma figura cujas motivações são sempre obscuras ao espectador. Por que diabos
ele se dedica tanto à esse caso? Poderíamos forçar a barra e falar que é devido
à uma busca de equilíbrio em sua própria vida (algo que poderia ser simbolizado
pela sua mania de sempre tentar equilibrar uma moeda) mas, sinceramente, essa
hipótese me parece muito forçada e uma tentativa tola de minha parte para
salvar o filme. Aliás, o personagem é tão mal construído que faltam informações
valiosíssimas para compreendermos sua jornada, como, apenas para citar alguns exemplos:
o que tinha acontecido de tão terrível no outro caso que ele atendeu e deu
errado? Quais eram seus problemas com a ex-esposa? Porque se divorciaram?
E se isso causa tanto grilo talvez seja
porque exista, em Roberto, um personagem extremamente complexo e fascinante,
algo que o extraordinário ator Ricardo Darín parece enxergar e abraçar, numa
performance soberba que explora maravilhosamente bem uma figura tão mal
construída. Vivendo Roberto com a naturalidade com que assume todos os seus papéis,
Darín percebe que por trás da arrogância do professor há um homem deprimido,
solitário e totalmente fatigado (observem o detalhe espetacular e sutil no
rosto do ator quando recebe, de seu aluno, uma resposta totalmente previsível e
tola para uma pergunta que faz à classe, evidenciando talvez o tanto de vezes
que foi obrigado a escutar algo como aquilo**). Darín também abraça a carência
de Roberto, que inevitavelmente vai entrar em choque com sua máscara de homem
sério e profissional, e o ator demonstra toda a vergonha calada dele nesses
momentos sutis (observem quando uma moça rejeita um beijo seu). Assim, esse
fascinante ator consegue quase fazer de Tese
Sobre Um Homicídio um projeto de estudo de personagem, extraindo camadas dele
que não existiam no roteiro. Mas, como comentei antes, o personagem é muito mal
escrito para um ator (mesmo um Ricardo Darín) dar conta totalmente de
levantá-lo.
Severamente prejudicado pela falta de atenção
e incompreensão de si mesmo pelo seu próprio delírio de grandeza, Tese Sobre Um Homicídio acaba tendo
pontos positivos demais para ser chamado de “filme ruim”. Poderia ter se
tornado um longa excepcional e extremamente complexo nas mãos de alguém que
manejasse melhor o material que tem em mãos. Enfim, acabou que ficamos uma obra
mediana.
*SPOILER: Me refiro à
cena em que a irmã da vítima descobre as luvas e o formol na casa de Roberto.
** “-Qual a principal
ferramenta do juiz?” Roberto; “-Os fatos!” Aluno.
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