Crítica Faroeste Cabloco (Faroeste Cabloco / 2013 / Brasil) dir.
René Sampaio
por
Lucas Wagner
João de Santo Cristo é um herói trágico e
solitário, cuja trajetória foi, desde pequeno, repleta de dor e sofrimento.
Nasceu sem condições que o facilitassem na vida, João sempre foi obrigado a
conseguir as coisas na base da luta, aprendendo a se adaptar num mundo cão que
parecia não ter lugar para alguém como ele. Vivendo em guerra constante para
sobreviver, o que ele realmente queria era poder viver honestamente ao lado do
amor de sua vida, Maria Lúcia, mas diversas condições tornavam isso um sonho
impossível. Foi ao narrar a eterna batalha do herói, colocando-a em um contexto
de crítica social, que Renato Russo fez de sua canção Faroeste Cabloco uma pequena obra de arte. Repleto de
interessantíssimas possibilidades dramáticas para serem exploradas em uma obra
cinematográfica, a canção foi finalmente adaptada para a telona pelo estreante
René Sampaio que, mais do que tentar agradar aos fãs de Legião Urbana, se
preocupou em contar a história de João de Santo Cristo de maneira sóbria e
extremamente violenta.
Descartando o contexto macrossocial presente
na música, Sampaio e os roteiristas Victor Atherino e Marcos Bernstein tornam a
história mais intimista, com João (Francisco Boliveira) dessa vez não se
preocupando exatamente em “falar pro presidente pra ajudar toda essa gente que
só faz sofrer”, mas sim em simplesmente sobreviver ao ambiente cruel do mundo
das drogas de Brasília da década de 80, se adaptando ao contexto e sabendo que,
para ser alguém lá, tem que provar que é perigoso e capaz. Assim, Sampaio
investe num nível altíssimo de violência gráfica, não virando a câmera para
momentos mais desagradáveis, o que ajuda a deixar o espectador consciente de
que lá ninguém pode confiar em ninguém, e que o perigo é sempre iminente, algo
ainda ressaltado pela câmera inquieta do diretor, além da fotografia granulada
de Gustavo Hadha, que transmite constantemente a ideia de sujeira. Essa lógica cabe
também ao próprio personagem de João, que em nenhum momento é suavizado pelos
realizadores e, aliás, se torna ainda mais violento do que na canção, sendo
capaz de atos brutais e repletos de ódio que o fazem se aproximar mais da
figura de um anti-herói do que da de um herói.
Nesse quesito, o ator Francisco Boliveira faz
um ótimo trabalho como João, retratando-o como um sujeito introspectivo que, no
entanto, não deve ser subestimado, já que é capaz de tudo para alcançar seus
objetivos. Esses objetivos são retratados com certa pureza por Boliveira, e
somos capazes de compreender a honestidade da vontade de João de querer ser
alguém certo, não ser bandido, levando uma existência tranquila ao lado de
Maria Lúcia (Isis Valverde), embora não resista a ganhar um dinheirinho mais
fácil a mais como traficante, mentindo para a namorada, o que o torna ainda
mais complexo. A trajetória cada vez mais trágica do protagonista é
interpretada de forma visceral pelo ator, que aos poucos se transforma numa
figura mais e mais temível, o que culmina no famoso e esperado clímax. Apesar
de toda a violência, continuamos sempre torcendo por João, por compreendermos
seus objetivos e que, diante da forma como viveu os anos de sua vida até agora
e do ambiente em que se encontra, agir de outro jeito seria sinal de inegável
fraqueza num lugar onde os fracos não tem vez.
O roteiro toma liberdades com a trajetória de
João, excluindo muito do que havia na música e centralizando mais o filme. Por
um lado, isso trás inegáveis aspectos positivos para o longa, já que, em
primeiro lugar, o torna mais sintético e centrado, e em segundo, a escolha de
inserir determinados flashbacks da
infância de João em momentos específicos acabam dando uma dinâmica bacana para o
longa, que assim, em sua primeira metade, ganha momentos mais introspectivos
nos quais, diante de circunstâncias atuais, o protagonista relembra seu
primeiro contato em situações relativamente semelhantes e que ajudaram a moldar
sua personalidade. No entanto, tal processo de sintetização faz com que os
roteiristas recorram ao recurso de uma narração em off para clarificar pensamentos de João, se mostrando um recurso
preguiçoso que poderia ter sido evitado caso houvesse mais tempo para que
pudéssemos conhecer mais sobre a vida do personagem em Santo Cristo. Além do
mais, os roteiristas abandonam esse recurso na metade da projeção apenas para
recuperá-lo no final, o que acaba detonando certa falta de preparação. Esse
processo de sintetização também impede que conheçamos mais as dificuldades do
início da vida de João, que foi obrigado a cometer atos não muito, por assim
dizer, louváveis quando criança (pelo próprio ambiente em que vivia), o que
contribuía para que se fortalecesse em seu ser a vontade de seguir uma vida
diferente em um ambiente diferente, algo bem retratado na canção e não muito
bem no filme.
Porém, se esses problemas acabam não
atrapalhando muito o projeto, o que realmente incomoda acaba ficando,
infelizmente, na figura de Maria Lúcia. Retratada desde o principio como uma
figura solitária e isolada, seus objetivos nunca ficam, no entanto, muito claros
para o espectador. Sim, sabemos que muito do que ela faz é por amor a João, mas
o relacionamento dos dois não é desenvolvido com propriedade pelo roteiro. O
que a faz cair de amores por João? E o que faz João cair de amores por ela?
Parece que a única coisa que os mantém tão unidos é o sexo, nada mais. Ainda
por cima, ela é trabalhada no roteiro de forma completamente desconexa para uma
figura tão importante na história e que exercerá tanta influência. Não há como
não enxergar certa hipocrisia em suas ações (o que poderia torna-la mais
complexa, mas isso não acontece), como a de dizer que João não é homem para ela
porque ele trafica drogas, ao mesmo tempo em que ela é mais maconheira que todo
mundo lá. E, assim como na canção, não tem jeito de entender por que ela decide
se casar e ter um filho com Jeremias (Felipe Abib), já que ela nunca tinha
demonstrado interesse por ele e isso não ajudaria João de forma alguma. Aliás,
todo o interesse de Jeremias por ela nunca é evidenciado a não ser quando esse
interesse vai ter importância na trama, o que denota falta de estruturação
adequada do roteiro. Apesar disso tudo, preciso dizer que aprecio o fato de
terem introduzido a figura de Maria de maneira paralela à de João, e também de terem
se conhecido antes no filme do que se conheciam na música, o que teria sido um
problema na estrutura do roteiro. Além disso, a forma como Sampaio ilustra a
personagem em relação à figura do pai (ele todo certinho escutando música
clássica e ela toda roqueira), mostra um pouco do que pode definir sua
personalidade (e é uma decisão inteligente do diretor de, quando pai e filha
estão em um carro, ouvirmos música clássica, como se a personalidade e gostos
deste se sobrepusessem à ela). A atuação da bela Isis Valverde também encontra
certo carisma e demonstra verdadeira força de vontade da atriz que, no entanto,
é sabotada pelo roteiro.
Quanto ao resto do elenco, infelizmente o
ator Felipe Abib transforma o vilão Jeremias numa figura extremamente caricata,
nunca convencendo de verdade como alguém perigoso, e sim como um playboyzinho
mimado e babaca que não sabe o que está fazendo. Assim, o ator Antonio Calloni
constrói na figura do policial corrupto que trabalha com Jeremias um personagem
infinitamente mais interessante e ameaçador, que, inteligente o suficiente para
manipular o próprio Jeremias, se revela um verdadeiro vilão capaz de humilhar e
servir de perigo palpável para o João. Completando, Cesar Troncoso faz um bom
trabalho como Pablo, deixando-o tridimensional e carismático o suficiente para
ser interessante.
Na direção, René Sampaio se mostra
incrivelmente promissor, sabendo dar ao longa uma atmosfera de tensão quase
constante, criando um clima pesado e violento com pouco espaço para o humor. No
entanto, a sensação de tempo no filme é extremamente falha, e nunca sabemos
exatamente quanto tempo se passa, por exemplo, quando João está preso, ou ainda
quanto tempo se passa desde que Maria se estrega a Jeremias, o que é um erro de
dimensões consideráveis. Mas o diretor ainda assim se mostra competente até
mesmo nas sequências de ação, que são enérgicas e bem montadas, e,
principalmente, no duelo final, em que Sampaio mostra toda uma influência do
diretor italiano Sergio Leone, responsável por vários e inesquecíveis westerns/faroestes.
Finalizando, é ainda preciso comentar a
maravilhosa trilha sonora original composta por Philippe Seabra, cujos acordes
são, além de sinceramente lindíssimos, responsáveis por ajudar a estabelecer
determinadas atmosferas das cenas; o uso da guitarra elétrica feito por ele é,
por sinal, extraordinário, lembrando diretamente os trabalhos do compositor
Ennio Morricone nos filmes do já citado Sergio Leone. A trilha sonora
incidental também mostra ter sido bem selecionada por Sampaio, ao passo que,
tecnicamente ainda, a direção de arte mereça créditos por estabelecer com
maestria os diferentes ambientes e atmosferas do filme, desde a pobreza das
locações em Santo Cristo, até as partes mais pobres, mais ricas e de classe
média de Brasília da década de 80.
Forte e violento, Faroeste Cabloco é um retrato digno da canção da Legião Urbana,
merecendo créditos por não suavizar em nenhum momento a experiência e de não
ter medo em desagradar fanáticos pela música. Apesar de seus óbvios defeitos,
um ótimo filme.
Nota:
7,8 / 10,0
Hummmm! Estou encorajado a ver o filme...
ResponderExcluirVale a pena cara! Achei muito bacana, apesar dos problemas q comentei
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