Crítica Segredos de Sangue (Stoker / 2013 / EUA, Reino Unido) dir.
Park Chan-Wook
por
Lucas Wagner
Na filmografia do cineasta Park Chan-Wook o
mal exerce um poder magnético extraordinário que suga os protagonistas para fora
da pureza, engolfando-os num conforto que não pode ser encontrado senão nas
trevas. Era assim para Oh Dae-Su, que em Oldboy
passava de homem de família (mesmo com seus óbvios defeitos) para um fantasma
guiado pelo sentimento de vingança, e também era assim para Park em Mr. Vingança, para quem a dor da morte da
filha só podia ser anestesiada pela tortura dos responsáveis. Mais fascinante
ainda é enxergar esses aspectos nas personagens femininas do diretor, já que
nelas a sensibilidade se mescla com o profano de uma forma a gerar uma
combinação libidinosa cheia de veneno, como podemos enxergar em Geum-ja, a
protagonista de Lady Vingança (melhor
trabalho do diretor), cujo mergulho nas trevas foi mais profundo do que
esperava, ou ainda Tae-joo, que em Sede
de Sangue era uma mulher para a qual o sexo e a violência tinha
uma inegável ligação. Pois nesse Segredos
de Sangue, primeiro filme fora da Coréia do Sul realizado pelo diretor, mais
uma vez o profano massacra a pureza, desta vez no corpo de uma adolescente que,
assim como Tae-joo, encontra no sexo e na violência uma liberdade para seus
demônios internos mais assustadores.
A adolescente é India Stoker (Mia
Wasikowska), que acaba de perder o pai (que era também seu melhor amigo) em um
acidente automobilístico. Depois da tragédia, seu misterioso tio, Charlie
(Matthew Goode), vai passar um tempo morando com ela e sua mãe, Evelyn (Nicole
Kidman). O que decorre acaba sendo uma estranha ligação entre tio e sobrinha
que pode gerar diversas consequências obscuras.
Assumindo um tom sombrio desde os momentos
iniciais, Segredos de Sangue parece
até um de filme de terror, já que a própria casa em
que vive India parece uma mansão mal-assombrada que esconde em cada canto algum
mistério. Nesse sentido, acabamos vendo uma representação do interior da
protagonista, que parece, para si mesma, um mistério sombrio. Moça taciturna, tímida
e que odeia ser tocada, India parece pouco se interessar pelos outros,
preferindo se focar no barulho de uma casca de ovo se quebrando do que numa
conversa (e assim, a sonoplastia do longa é impecável ao ressaltar diversos
sons ambientais que se impõem ao som das pessoas), e encontrando conforto,
aparentemente, no lugar mais obscuro de sua casa. Reconhecendo o potencial sociopático
da garota (como Harry com Dexter no seriado Dexter),
seu pai parecia tentar controlar seus impulsos agressivos através da atividade da
caça (“às vezes, um mau menor pode prevenir algo muito pior”, é algo que ele
dizia), empalhando os diversos animais atingidos pela filha. Mas esse controle
se perde com sua morte, e a figura do tio se torna ao mesmo tempo um objeto de
fascínio e de repulsa, por ela reconhecer, mesmo que inconscientemente, os
perigos que essa pessoa, ou o que ele representa, se mostra para ela, ou seja,
uma completa liberação de fantasias perversas que ela mantinha encaixotada
dentro de si. O simbolismo da chave que ela carrega é, nessa perspectiva, digno
de aplausos.
Toda essência do longa se baseia no
desabrochar de India para sua violência e sexualidade inerentes, e assim, Chan-Wook
realiza um trabalho impecável numa direção extremamente complexa e repleta de
simbolismos que ajudam a estabelecer a luta interna da protagonista. Certos
enquadramentos e modos de filmar do diretor assumem uma significação profunda,
como aquele em que India está tocando piano e Charlie intervém, e o que vemos é
apenas a figura de India enquanto Charlie está coberto pela tampa do
instrumento e assim vemos no lugar dele o reflexo da garota na tampa polida; ou
ainda, quando a protagonista se encontra em um gira-gira e acompanhamos seus
movimentos, que imediatamente assumem um aspecto fantasmagórico. Diversos raccords criados pelo cineasta ainda
contribuem para a criação de significados, como aquele em que o fechar do freezer com “algo dentro” se transforma
no fechar da caixa de lápis da menina; ainda, aqui existe constantemente o jogo
de poder representado por quem fica num plano superior à outra pessoa. Assim
como em Lady Vingança o preto e o
vermelho-sangue pareciam cobrir a pureza representada pela brancura da neve, aqui
uma aranha se torna um símbolo para a dialética da maldade e do sexo de Chan-Wook:
India deixa que o inseto suba por suas pernas calmamente, como se não a
incomodasse e, em um sonho, essa aranha entra na sua saia, no meio de suas
pernas. O cinto que era de seu pai passa a ser usado por seu tio, e se torna
uma representação de uma arma e de um pênis. O quarto de sua mãe não é todo
vermelho-sangue por acaso, mas encontra sentido na imagem de sensualidade que
ela assume para a filha. Ainda, os sapatos que a protagonista recebe de
presente desde pequena tem um código de cores todo especial: branco, preto e
branco de novo; e não é a toa que a cor básica do figurino de Charlie seja um
marrom escuro avermelhado, como que numa mistura do preto (as trevas) e o
vermelho (o sexo), e que os saltos (sapatos de mulher adulta) que India usa no final tenham essa mesma cor e, no
solado, seja completamente vermelho. E nem precisaria comentar a significação
da flor branca que recebe um jorro de sangue em certo momento.
Pois não é senão na profunda descoberta e
aceitação de sua própria sexualidade perversa que India mergulha, e encontra
prazer orgástico em momentos chave, como quando, depois de um ato de violência,
se masturba chorando e gemendo ao mesmo tempo, ou ainda quando seu tio começa a
tocar piano com ela, e os cortes e planos de Chan-Wook em determinados
movimentos da garota não transmitem outra ideia que não a do gozo. Nesse mesmo
momento ainda, é fascinante que ela esteja tocando uma música melancólica e
sensível e Charlie intervenha com tons fortes e opressores, e que ainda
tenhamos vários vislumbres da parte das teclas do piano que se encontra dentro
do instrumento e cujo preto absoluto encontra contraponto na brancura da parte
externa dessas. O interesse da garota no
desenrolar da relação entre Charlie e Evelyn ainda explora a relação desta com
a mãe: ao vê-la se entregando ao tio, e menina tenta imitá-la, inserindo nessa
empreitada um elemento agressivo ao morder violentamente a boca do menino com
quem se envolve. O relacionamento dela com sua mãe vem carregado de uma grande
tensão, e há vários motivos para isso; um deles pode ser ciúmes da mãe por ter tido seu pai, e assim busca imitá-la ao mesmo
tempo em que tenta agredi-la. Nesse sentido, o fato de India procurar a mãe em
certo momento em que se sente vulnerável e demonstrar carinho é extremamente
revelador.
O fato é que, no fundo, India se torna um
mosaico de identidades, que acabam por compor a dela própria, como fica
representado no seu figurino: cinto do pai, saia da mãe, sapatos do tio. Assim,
seus atos no clímax do longa não vão contra a lógica de mergulho ao profano tão
presente nos trabalhos de Chan-Wook. Muito pelo contrário: ao “eliminar certo
elemento no final” (quem viu o filme entenderá mais claramente), India não
busca desconectar-se de suas trevas, agora não mais escondidas, mas sim
tomá-las para si, abraçá-las sem reservas e incorporá-las totalmente à sua
identidade, sem precisar de uma ponte de ligação para isso. Se pensarmos bem, é curioso que Segredos de Sangue assuma uma posição
até levemente diferente dentro da filmografia do diretor, mesmo não contradizendo a lógica de seus trabalhos anteriores, como já comentei: se Oldboy, Lady Vingança, Sede de Sangue,
etc, traziam certa moralidade (que nunca vinha exacerbada, mas sim como ironia
dramática), este novo trabalho do diretor não enxerga o mergulho no profano
como algo ruim, torturante, mas como algo libertador, e repleto de uma sensação
de prazer orgástico que não poderia existir senão pela entrega total de India
ao seus demônios interiores.
Todo o processo de construção do filme é
dialético ao, na montagem, trazer diversas cenas que podem parecer desconexas
(as imagens de India e o pai caçando; a mãe aparecendo num flash num sonho; etc), mas que vem em momentos específicos para
ajudar a construir toda a significação essencial que discorri nos parágrafos
anteriores. E ainda, o elenco contribui com força para o sucesso do trabalho de
Park Chan-Wook: Mia Wasikowska corporifica India em seu aspecto fantasmagórico
e no prazer que podemos entrever em suas feições em vários momentos, ao mesmo
tempo em que a atriz é competente ao mostrar o medo que a menina muitas vezes
sente de si mesma; Matthew Goode interpreta Charlie de maneira ambígua,
elegante e sempre misteriosa, deixando-o ainda mais complexo por optar por optar, em um flashback, por uma
estratégia de atuação completamente diferente da que vinha adotando; já Nicole
Kidman desenvolve com perfeição absoluta todas as infinitamente complexas
camadas de Evelyn, que tanto exercem influência na filha. Para completar, a
trilha sonora do genial Clint Mansell confere um tom ainda mais macabro e sombrio à atmosfera
do longa, optando por tons dissonantes em momentos-chave, enquanto a já
comentada sonoplastia constantemente influencia positivamente nas
interpretações do longa, transmitindo determinadas percepções subjetivas de
India (o barulho insuportável das conversas quando ela entra na sala de sua
casa, depois do enterro do pai; os sons de uma transa – imaginários – quando ela
vai guardar o sorvete no freezer; etc).
Constantemente flertando com o surrealismo
(como em seus outros trabalhos), Park Chan-Wook entrega um filme de caráter
inegavelmente erótico, cuja complexidade só pode ser totalmente desvendada com
várias visitas ao longa. Mais uma vez, na impecável filmografia do cineasta,
somos atraídos para o obscuro e para o profano, como seus atormentados
personagens, e nos sentimos magnetizados por isso, ao mesmo tempo em que assustados.
Caraca, adorei sua análise do filme! Também gostei muito dele. A fotografia é realmente de encher os olhos e a trama é muito boa.
ResponderExcluirMuito obg!
ExcluirO filme é de fato excelente, e Park Chan-Wook é um dos melhores cineastas da atualidade. Agora vamos esperar ansiosos pelo próximo filme dele :)
Excelente analise. Muito boa. Filme é fantástico.
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