sábado, 1 de junho de 2013



Crítica Faroeste Cabloco (Faroeste Cabloco / 2013 / Brasil) dir. René Sampaio

por Lucas Wagner

  João de Santo Cristo é um herói trágico e solitário, cuja trajetória foi, desde pequeno, repleta de dor e sofrimento. Nasceu sem condições que o facilitassem na vida, João sempre foi obrigado a conseguir as coisas na base da luta, aprendendo a se adaptar num mundo cão que parecia não ter lugar para alguém como ele. Vivendo em guerra constante para sobreviver, o que ele realmente queria era poder viver honestamente ao lado do amor de sua vida, Maria Lúcia, mas diversas condições tornavam isso um sonho impossível. Foi ao narrar a eterna batalha do herói, colocando-a em um contexto de crítica social, que Renato Russo fez de sua canção Faroeste Cabloco uma pequena obra de arte. Repleto de interessantíssimas possibilidades dramáticas para serem exploradas em uma obra cinematográfica, a canção foi finalmente adaptada para a telona pelo estreante René Sampaio que, mais do que tentar agradar aos fãs de Legião Urbana, se preocupou em contar a história de João de Santo Cristo de maneira sóbria e extremamente violenta.

  Descartando o contexto macrossocial presente na música, Sampaio e os roteiristas Victor Atherino e Marcos Bernstein tornam a história mais intimista, com João (Francisco Boliveira) dessa vez não se preocupando exatamente em “falar pro presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”, mas sim em simplesmente sobreviver ao ambiente cruel do mundo das drogas de Brasília da década de 80, se adaptando ao contexto e sabendo que, para ser alguém lá, tem que provar que é perigoso e capaz. Assim, Sampaio investe num nível altíssimo de violência gráfica, não virando a câmera para momentos mais desagradáveis, o que ajuda a deixar o espectador consciente de que lá ninguém pode confiar em ninguém, e que o perigo é sempre iminente, algo ainda ressaltado pela câmera inquieta do diretor, além da fotografia granulada de Gustavo Hadha, que transmite constantemente a ideia de sujeira. Essa lógica cabe também ao próprio personagem de João, que em nenhum momento é suavizado pelos realizadores e, aliás, se torna ainda mais violento do que na canção, sendo capaz de atos brutais e repletos de ódio que o fazem se aproximar mais da figura de um anti-herói do que da de um herói.

  Nesse quesito, o ator Francisco Boliveira faz um ótimo trabalho como João, retratando-o como um sujeito introspectivo que, no entanto, não deve ser subestimado, já que é capaz de tudo para alcançar seus objetivos. Esses objetivos são retratados com certa pureza por Boliveira, e somos capazes de compreender a honestidade da vontade de João de querer ser alguém certo, não ser bandido, levando uma existência tranquila ao lado de Maria Lúcia (Isis Valverde), embora não resista a ganhar um dinheirinho mais fácil a mais como traficante, mentindo para a namorada, o que o torna ainda mais complexo. A trajetória cada vez mais trágica do protagonista é interpretada de forma visceral pelo ator, que aos poucos se transforma numa figura mais e mais temível, o que culmina no famoso e esperado clímax. Apesar de toda a violência, continuamos sempre torcendo por João, por compreendermos seus objetivos e que, diante da forma como viveu os anos de sua vida até agora e do ambiente em que se encontra, agir de outro jeito seria sinal de inegável fraqueza num lugar onde os fracos não tem vez.

  O roteiro toma liberdades com a trajetória de João, excluindo muito do que havia na música e centralizando mais o filme. Por um lado, isso trás inegáveis aspectos positivos para o longa, já que, em primeiro lugar, o torna mais sintético e centrado, e em segundo, a escolha de inserir determinados flashbacks da infância de João em momentos específicos acabam dando uma dinâmica bacana para o longa, que assim, em sua primeira metade, ganha momentos mais introspectivos nos quais, diante de circunstâncias atuais, o protagonista relembra seu primeiro contato em situações relativamente semelhantes e que ajudaram a moldar sua personalidade. No entanto, tal processo de sintetização faz com que os roteiristas recorram ao recurso de uma narração em off para clarificar pensamentos de João, se mostrando um recurso preguiçoso que poderia ter sido evitado caso houvesse mais tempo para que pudéssemos conhecer mais sobre a vida do personagem em Santo Cristo. Além do mais, os roteiristas abandonam esse recurso na metade da projeção apenas para recuperá-lo no final, o que acaba detonando certa falta de preparação. Esse processo de sintetização também impede que conheçamos mais as dificuldades do início da vida de João, que foi obrigado a cometer atos não muito, por assim dizer, louváveis quando criança (pelo próprio ambiente em que vivia), o que contribuía para que se fortalecesse em seu ser a vontade de seguir uma vida diferente em um ambiente diferente, algo bem retratado na canção e não muito bem no filme.

  Porém, se esses problemas acabam não atrapalhando muito o projeto, o que realmente incomoda acaba ficando, infelizmente, na figura de Maria Lúcia. Retratada desde o principio como uma figura solitária e isolada, seus objetivos nunca ficam, no entanto, muito claros para o espectador. Sim, sabemos que muito do que ela faz é por amor a João, mas o relacionamento dos dois não é desenvolvido com propriedade pelo roteiro. O que a faz cair de amores por João? E o que faz João cair de amores por ela? Parece que a única coisa que os mantém tão unidos é o sexo, nada mais. Ainda por cima, ela é trabalhada no roteiro de forma completamente desconexa para uma figura tão importante na história e que exercerá tanta influência. Não há como não enxergar certa hipocrisia em suas ações (o que poderia torna-la mais complexa, mas isso não acontece), como a de dizer que João não é homem para ela porque ele trafica drogas, ao mesmo tempo em que ela é mais maconheira que todo mundo lá. E, assim como na canção, não tem jeito de entender por que ela decide se casar e ter um filho com Jeremias (Felipe Abib), já que ela nunca tinha demonstrado interesse por ele e isso não ajudaria João de forma alguma. Aliás, todo o interesse de Jeremias por ela nunca é evidenciado a não ser quando esse interesse vai ter importância na trama, o que denota falta de estruturação adequada do roteiro. Apesar disso tudo, preciso dizer que aprecio o fato de terem introduzido a figura de Maria de maneira paralela à de João, e também de terem se conhecido antes no filme do que se conheciam na música, o que teria sido um problema na estrutura do roteiro. Além disso, a forma como Sampaio ilustra a personagem em relação à figura do pai (ele todo certinho escutando música clássica e ela toda roqueira), mostra um pouco do que pode definir sua personalidade (e é uma decisão inteligente do diretor de, quando pai e filha estão em um carro, ouvirmos música clássica, como se a personalidade e gostos deste se sobrepusessem à ela). A atuação da bela Isis Valverde também encontra certo carisma e demonstra verdadeira força de vontade da atriz que, no entanto, é sabotada pelo roteiro.

  Quanto ao resto do elenco, infelizmente o ator Felipe Abib transforma o vilão Jeremias numa figura extremamente caricata, nunca convencendo de verdade como alguém perigoso, e sim como um playboyzinho mimado e babaca que não sabe o que está fazendo. Assim, o ator Antonio Calloni constrói na figura do policial corrupto que trabalha com Jeremias um personagem infinitamente mais interessante e ameaçador, que, inteligente o suficiente para manipular o próprio Jeremias, se revela um verdadeiro vilão capaz de humilhar e servir de perigo palpável para o João. Completando, Cesar Troncoso faz um bom trabalho como Pablo, deixando-o tridimensional e carismático o suficiente para ser interessante.

  Na direção, René Sampaio se mostra incrivelmente promissor, sabendo dar ao longa uma atmosfera de tensão quase constante, criando um clima pesado e violento com pouco espaço para o humor. No entanto, a sensação de tempo no filme é extremamente falha, e nunca sabemos exatamente quanto tempo se passa, por exemplo, quando João está preso, ou ainda quanto tempo se passa desde que Maria se estrega a Jeremias, o que é um erro de dimensões consideráveis. Mas o diretor ainda assim se mostra competente até mesmo nas sequências de ação, que são enérgicas e bem montadas, e, principalmente, no duelo final, em que Sampaio mostra toda uma influência do diretor italiano Sergio Leone, responsável por vários e inesquecíveis westerns/faroestes.

  Finalizando, é ainda preciso comentar a maravilhosa trilha sonora original composta por Philippe Seabra, cujos acordes são, além de sinceramente lindíssimos, responsáveis por ajudar a estabelecer determinadas atmosferas das cenas; o uso da guitarra elétrica feito por ele é, por sinal, extraordinário, lembrando diretamente os trabalhos do compositor Ennio Morricone nos filmes do já citado Sergio Leone. A trilha sonora incidental também mostra ter sido bem selecionada por Sampaio, ao passo que, tecnicamente ainda, a direção de arte mereça créditos por estabelecer com maestria os diferentes ambientes e atmosferas do filme, desde a pobreza das locações em Santo Cristo, até as partes mais pobres, mais ricas e de classe média de Brasília da década de 80.

  Forte e violento, Faroeste Cabloco é um retrato digno da canção da Legião Urbana, merecendo créditos por não suavizar em nenhum momento a experiência e de não ter medo em desagradar fanáticos pela música. Apesar de seus óbvios defeitos, um ótimo filme.

Nota: 7,8 / 10,0


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