Crítica filme "O Último Desafio" (The Last Stand / 2013 / EUA, Coréia do Sul) dir. Kim Jee-Woon
por Lucas Wagner
Kim Jee-Woon é um cineasta que eu aprecio
cada vez mais. De seus dez filmes (sem contar esse O Último Desafio), assisti três: Medo, Eu Vi o Diabo e O Bom,
O Mau, O Bizarro, e os três me encantaram na diferença de abordagem adotada
pelo diretor. Em Medo, Jee-Woon cria
um terror psicológico mais focado em explorar o psicológico de sua protagonista
e causar autêntico medo do que em simplesmente assustar, e com isso construiu
uma narrativa extremamente complexa e simbólica. Em Eu Vi o Diabo, o cineasta construiu um longa de ação/suspense
sufocantemente intenso e empolgante, com um plano final que confere toda uma
complexidade maior ao seu trabalho. Já em O
Bom, O Mau, O Bizarro vemos um western
cômico delicioso que consegue ser uma perfeita mistura de Sergio Leone e Indiana Jones. Assim, quando vi que ele
estrearia seu primeiro filme fora da Coréia do Sul em um projeto com Arnold
Schwarzenegger, no melhor estilo que esse protagonizou nos anos 80/90, não podia
ficar mais empolgado. Uma mistura assim me anima. E, felizmente, o projeto
correspondeu às minhas expectativas, e tem o de melhor que se poderia esperar
de um filme como esse.
A trama pouca importância tem, sendo bobinha
como em grande parte dos filmes como esse. Aqui somos introduzidos na vida da
pacata cidadezinha de Sommerton, quase na fronteira entre os EUA e o México. Lá,
o xerife é Ray Owens (Schwarzenegger), que quer apenas trabalhar tranquilamente
e curtir a vida calma. Ao mesmo tempo, o criminoso Gabriel Cortez (Eduardo
Noriega) foge da prisão e tem todo o FBI em seu encalço; em seu caminho vai
passar por Sommerton, o que proporcionará um encontro com o veterano xerife.
A direção de Kim Jee-Woon está excepcional, e
o cineasta consegue um ritmo praticamente impecável no seu trabalho, divertindo
e nos deixando sempre esperando pelo que vai acontecer em seguida. E isso se
dá, principalmente, pelo belíssimo trabalho de preparação que o diretor alcança
nos dois primeiros atos. Analisemos, por exemplo, o modo como ele apresenta o
vilão: agentes do FBI firmemente armados ficam na frente de um elevador, de
onde sai outros muitos agentes, liderados pelo chefão John Bannister (Forest
Whitaker). Recebemos um resumo do quão Gabriel Cortez é perigoso e, logo em
seguida, atrás de outros tantos agente, o vilão sai do elevador, algemado e com
a cabeça abaixada. Quando o vemos mais de perto ainda só vemos suas costas, e
dentro do caminhão que o transportará, seus cabelos cobrem sua face enquanto
esta permanece escura e sombria. Quando não enxergamos o rosto, se instala em
nós um sentimento de aflição, de perigo, de que devemos tomar cuidado (vide a
inesquecível apresentação do vilão interpretado por Henry Fonda em Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone).
Assim, além de racionalmente sabermos do quão Cortez é perigoso, Jee-Woon nos
aflige emocionalmente. Isso ainda cresce pela fuga do vilão, pela sua
inteligência psicopata e sua aparente inconsequência, dotada de uma confiança
afiada em si mesmo que nos deixa ainda mais tensos; sem contar que o ótimo
Eduardo Noriega (do excelente Preso na
Escuridão, de Alejandro Amenábar) é bem sucedido ao conferir grande intensidade
ao personagem, principalmente no momento em que conta uma atitude
particularmente dolorosa que teve que tomar no seu passado (ainda assim não
consigo parar de imaginar o que Benício Del Toro seria capaz de fazer se
interpretasse Cortez).
Bom, temos um vilão perigoso e todo o FBI
atrás do cara, que consegue despistar todo mundo, sempre com uma carta na
manga. Mas em Sommerton as coisas são bem mais calmas, com muitos personagens
reclamando justamente do tédio da vida no lugar. Porém, algo estranho está
acontecendo lá, mas ainda muito pequeno e insignificante. Enxergamos aqueles
indivíduos como que bem frágeis, embora claro que a figura de Schwarzenegger
nos lembra constantemente de que de frágeis eles nada tem. Mas, ainda assim,
somos levados a nos identificar com aquele povo sem armamento, vulnerável, que
pode enfrentar uma tempestade com a qual não tem como lidar. Jee-Woon é
extremamente eficiente ao aumentar o clima de tensão constantemente através dos
diferentes modos como filma a parte de Cortez e o FBI, e como filma a parte de
Sommerton. Jee-Woon utiliza diversos (e velozes) travellings, planos mais curtos e cortes mais rápidos, além de
diversos planos inclinados (sugerindo desestabilidade) para criar a tensão
necessária com o pessoal do FBI e a fuga de carro do Cortez, ao mesmo tempo em
que, quando estamos em Sommerton, os planos são mais longos, os cortes são
menos frequentes, os enquadramentos mais centralizados, desacelerando a
narrativa para sugerir mais calma naquele local do que no outro que
acompanhamos. Assim, Jee-Woon vai aumentando a tensão gradativamente, ao
acelerar o ritmo da parte de Sommerton quanto mais se aproxima o encontro de
Cortez com o xerife e seus delegados. O diretor chega até a errar um pouco ao
adiar demais esse encontro, o que faz
com que Jee-Woon seja obrigado a desenvolver um pouco menos o aguardado embate,
que, embora muito bacana, acaba com uma sensação de anticlímax, que o diretor
tenta demais impedir, mas não consegue por completo (mais comentários sobre
isso daqui a pouco). Mas essa calma construção do cineasta é o que mais
enriquece O Último Desafio e o torna
ainda mais divertido.
Jee-Woon ainda acerta em outros âmbitos da
direção, como no modo como filma a conversa dos personagens de Peter Stormare e
Harry Dean Stanton, em que inverte e cria relações de poder através de
elegantes enquadramentos em plongê (câmera
filmando de cima para baixo, sugerindo submissão, pequenez) e contra-plongê (câmera de baixo para cima,
sugerindo poder, força), além de planos mais fechados e mais abertos, tudo
seguindo uma estratégia sensacional de um belo trabalho de decompagem do roteiro pelo diretor. Ainda, é bacana que Jee-Woon
demonstre maior humanidade em certos momentos do longa, mas em menor medida do
que seus outros trabalhos, ainda que em maior medida se comparado a outros
filmes no estilo desse. Dessa forma, quando um personagem específico morre em
Sommerton, o diretor cria um momento tocante e triste, que se torna ainda mais
eficiente se observarmos que Jee-Woon insistiu em deixar esse personagem sempre
menor, mais frágil, o que contribui para a nossa identificação com ele (a cena
em que é apresentado é muito eficiente nesse sentido, além de divertida*) e
intensifica o impacto de sua morte. Assim também é bacana que Jee-Woon busque
humanizar o personagem de Schwarzenegger, mesmo de uma forma meio clichê, mas
eficiente ao deixar o personagem mais vivido, envelhecido e cansado, e tudo
isso principalmente por uma fala em específico, que é muito bonita frente ao
que descobrimos sobre ele (“É possível que eu esteja com mais medo do que você”).
Jee-Woon também não faz feio nas cenas de ação, que surgem sempre tensas e bem
montadas, mesmo que se o cineasta acelerasse um pouquinho mais os cortes,
pecaria pelo excesso. E, por mais legais que sejam essas cenas de ação (as
perseguições de carro em especial), elas não conseguem alcançar nem a intensidade
das do seu Eu Vi o Diabo, e nem a
energia e inventividade do seu O Bom, O
Mau, O Bizarro. Para completar, o cineasta é feliz ao, assim como no último
filme dele que citei, inserir uma boa dose de bom humor, que torna tudo muito
mais divertido e leve.
Apesar de no geral estar excelente, a direção de Jee-Woon
peca por aquela questão que comentei no quarto parágrafo: da rapidez do
conflito que tanto esperávamos. Apesar de divertido e empolgante, além de muito
enérgico, o conflito do final, em Sommerton, aparenta uma pressa maior do
cineasta, já que ele dedicou tanto tempo na construção da preparação do
conflito, e provavelmente o estúdio tinha imposto um limite de duração para o
filme. Assim, Jee-Woon é obrigado a dedicar maior parte do tempo só a Schwarzenegger,
enquanto os personagens de Gúzman, Rodrigo Santoro, Johnny Knoxville e Jaimie
Alexander, interessantes durante todo o filme, saem de foco e são deixados de
lado nesse momento, com, por exemplo, o arco dramático de Santoro e Alexander
sendo resolvido de maneira particularmente vergonhosa e apressada. Ainda, Jee-Woon
tenta (e com razão) estender o máximo possível a briga entre Cortez e Ray,
embora o momento dos carros no milharal funcione mais na ideia do que na
prática. Mas o duelo final dos dois é intenso e pesado, com o ótimo vilão
enfrentando um protagonista forte, e assim, ainda mais pela dificuldade
demonstrada pelos dois e a relativamente longa duração da luta, não parece
muito anticlimático.
Em questão de elenco, Schwarzenegger esbanja
o carisma de sempre, ainda conseguindo se sair muito bem nas cenas de ação e de
humor, mas nunca deixando de apresentar cansaço (até pela voz) e um
comportamento que demonstra experiência e até um pouco de melancolia. Rodrigo
Santoro surge intenso como Frank Martinez, embora seja prejudicado no final do
filme. Jaimie Alexander faz o que pode com o limitado papel de Sarah Torrance, mas
se junta a Genesis Rodriguez (no papel da agetne Ellen) e Christiana Leucas (no
papel de Christie) como o trio de beldades lindas que “iluminam” o filme (se
você for homem heterossexual ou uma mulher lésbica, é claro). Luiz Gúzman está
divertidíssimo, ao passo que Forest Whitaker surge intenso como o agente John Bannister.
Mas Johnny Knoxville consegue roubar todas as cenas em que aparece, já que,
sempre extremamente divertido, protagoniza momentos que caberiam perfeitamente
em Jackass (grupo do qual Knoxville
faz parte), criando seu Lewis como um sujeito desequilibrado que parece se
importar mais com uma arma do que com pessoas, mesmo que, em certo momento,
confunda o nome com que batizou seu revólver, sugerindo mais desequilíbrio
psicológico ainda.
Se juntando aos dois Os Mercenários (mas bem melhor que os qualquer um dos dois) e ao
ótimo Plano de Fuga, O Último Desafio é
mais um filme de ação que busca resgatar o espírito dos longas badass violentos das décadas de 80/90 em
Hollywood, onde não havia o moralismo que impedia diálogos com muitos palavrões,
e onde cenas em que uma velhinha atira com uma espingarda em um bandido surgem
naturais (e aqui é um dos momentos mais divertidos do longa). E o talento da
direção de Kim Jee-Woon só enriquece o trabalho, que ainda ganha contornos de werstern em vários momentos
(aparentemente o diretor gosta muito do gênero). Um ótimo filme.
*SPOILER: a cena em que me referi é a em que o
coice do revólver machuca o personagem de Jerry.
Nenhum comentário:
Postar um comentário