Crítica filme "O Hobbit: Uma Jornada Inesperada" (The Hobbit: An Unexpected Journey / 2012 / Nova Zelândia) dir. Peter Jackson
por Lucas Wagner
O Hobbit é um livro extraordinário que
funciona mais como um estudo do personagem Bilbo Bolseiro do que exatamente
como uma história épica e grandiosa como O
Senhor dos Anéis. Ao mesmo tempo em que conta uma historinha simples e
divertida, J.R.R Tolkien parece se preocupar mais com os efeitos que os
acontecimentos narrados tem no protagonista que, de um hobbit preguiçoso, que
só pensa no próprio conforto e abomina qualquer bagunça, qualquer coisa
imprevisível (incluindo-se ai aventuras), se transforma num hobbit corajoso,
imponente, e um verdadeiro guerreiro. Bilbo, no entanto, tem um interesse
mascarado por aventuras, perigos e emoções intensas, que tenta satisfazer de
uma forma precária através de uma paixão por mapas; ele mantém esse interesse
escondido para manter a fama de ser confiável e previsível, características
muito respeitadas entre os hobbits. Mas as contingências às quais é exposto em
sua aventura com os anões, o levam a abraçar esse Bilbo aventureiro que existe
dentro dele. E assim, Tolkien nos apresenta um romance espetacular, com uma
narrativa invejável, que nos leva a sentir até mesmo a fadiga dos heróis (a
passagem pela Floresta Negra – que deve aparecer no segundo filme – é impecável
nesse aspecto), enquanto mantém tudo muito leve e divertido, com um tom
infantil e alegre (afinal, ele escreveu esse livro para seus filhos), que
reflete a alegria com que Bilbo um dia recordaria sua aventura.
O cineasta Peter Jackson (que adaptou a
trilogia O Senhor dos Anéis com
perfeição) felizmente compreende que, se tratasse O Hobbit: Uma Jornada Inesperada com a mesma magnitude e clima
denso com que tratou a trilogia SdA, estaria
cometendo um terrível erro em relação ao livro. Assim, desde que vemos o título
do filme no início da projeção, já percebemos a nova abordagem de Jackson: se
na outra trilogia víamos o título sob uma trilha misteriosa e sombria, agora o
vemos com a música nostálgica e sensível que serve de tema para o Condado (a
vila dos hobbits). De fato, a atmosfera desse primeiro capítulo da nova
trilogia é muito leve, cheia de humor e bons presságios, o que serve ainda para
que sintamos a nostalgia de estarmos de volta àquele universo tão querido, e
também para percebermos a tranquilidade da Terra-Média antes da guerra do Anel.
Mas Jackson se revela inteligente a, embora mantendo um tom leve e infantil
durante grande parte do tempo, não ignorar momentos mais dramáticos e trágicos,
algo que fica claro nas cenas que mostram a guerra de Erebor, quando percebemos
a magnitude da tragédia e tristeza dos envolvidos, devido à perda do lar e de
seus companheiros.
E se comentei sobre o sentimento de
nostalgia, é bem claro o reconhecimento de Jackson da afeição que criamos em
relação àquele universo e personagens, ao mesmo tempo em que ele mesmo
demonstra total carinho quanto a eles. Assim, reencontramos vários personagens
da trilogia SdA (muitos que nem
aparecem no livro O Hobbit) em
pequenas participações, mas que funcionam de maneira orgânica à narrativa, não
servindo apenas ao propósito de matar a saudade do espectador, mas para
desenvolver algo em relação à trama. Ainda, Jackson se diverte ao incluir
pequenos detalhes que remetem diretamente à momentos prosaicos da outra
trilogia, mas que justamente por serem prosaicos, nos deixa ainda mais íntimos
com o que estamos vendo. Alguns exemplos bacanas podem ser notados na cena em
que Frodo prega na frente da casa de Bilbo um aviso escrito “Não incomodar, a
não ser que sejam assuntos referentes à festa”, que podemos ver no início de A Sociedade do Anel; ou ainda quando
vemos Gandalf batendo a cabeça no lustre da casa de Bilbo, como fez também
antes (ou depois, se considerarmos a cronologia da série).
Com tempo folgado para trabalhar (2 horas e 50
minutos), Jackson desenvolve com calma admirável o seu filme, trabalhando com
perfeição cada cena e aproveitando para desenvolver seus personagens (os anões,
no livro, tirando Thorin, são todos tão unidimensionais que nem conseguimos diferenciar
um do outro). O diretor ainda se mostra extremamente fiel ao livro, conseguindo
reproduzir basicamente todas as passagens dessa metade inicial do romance, e
até muitas vezes reproduzindo ao pé da letra algumas falas dos personagens
(como a conversa sobre “bom dia” entre Bilbo e Gandalf, logo que se encontram,
e ainda quando o Bilbo mais velho começa a contar sua história e diz exatamente
as mesmas palavras com que o livro começa); no entanto, Jackson não teme tomar
liberdades criativas quanto ao material, e assim enriquece bastante o longa ao
buscar trabalhá-lo dentro do contexto total da série (algo que não estava nos
planos de Tolkien, que escreveu esse livro sem pensar em outros sobre a
Terra-Média, mudando de ideia diante das respostas positivas quanto ao seu
trabalho). Dessa forma, Jackson amplia a magnitude da perspectiva mais
microscópica do livro, e envolve assim prenúncios dos males que serão narrados
em SdA, com uma subtrama extremamente
bem amarrada à trama principal (que envolve a derrota do dragão Smaug e a
recuperação de Erebor), o que serve de contexto para a participação de personagens
que não estão no livro, como Saruman (Christopher Lee) ou Galabriel (Cate
Blanchet), além de trazer a figura do mago Radagast, que era inédita à série.
Jackson volta aqui à boa forma como diretor
(que tinha deixado momentaneamente ao dirigir o abominável Um Olhar do Paraíso) e consegue dar um ritmo invejável à narrativa.
Seria muito fácil se perder diante da trama, das subtramas e da nostalgia, mas Jackson
segura o filme com firmeza, e assim alcança a proeza de basicamente em momento
algum deixar que o longa fique chato ou monótono. Quase nunca quebrando o
ritmo, Jackson é inteligente ao ser capaz de enxergar os momentos certos onde
uma cena narrando um evento histórico pode ser incluída, ou onde pode ser dado
um enfoque mais intimista aos personagens, e ainda onde trabalhar mais as
subtramas. Além disso, o roteiro do próprio Jackson, Phillipa Boyens, Fran
Walsh e Guillermo Del Toro (cineasta famoso responsável por filmes como O Labirinto do Fauno e Hellboy), apresenta elegância em
diálogos simples, mas que passam várias informações (algumas vezes mais
complexas) que movem a história. O único momento em que realmente pôde-se
perceber o ritmo da narrativa sendo quebrado de forma indigesta é a forma tosca
como Jackson e os outros roteiristas encontraram para introduzir o personagem
de Radagast.
Tecnicamente primoroso, O Hobbit sem sombra de dúvida tem que ganhar pelo menos dois
Oscars: de melhor direção de arte, e melhores efeitos visuais. Assim como
comentei na minha crítica da trilogia O
Senhor dos Anéis (link no fim desse texto), a direção de arte é fantástica
não apenas por criar ambientes belíssimos e complexos, mas ainda por traduzir
um pouco da própria personalidade das espécies de seres que vivem nesses
ambientes. E aqui, em especial a cidade de Erebor e a montanha dos orcs, se
mostram lugares extraordinários, com uma arquitetura extremamente dinâmica. Além
disso, é admirável que pela própria estrutura de Erebor possamos compreender um
pouco mais a importância dessa cidade para os anões. (Diante disso tudo que
falei sobre esses lugares, mal posso esperar para ver como os realizadores traduzirão
em imagens outros ambientes do livro, como o reino dos elfos da floresta, a
Cidade do Lago e a casa de Beorn). Quanto aos efeitos visuais, é fascinante que
esses consigam ser ainda mais fabulosos do que os de SdA. Novamente conseguindo a proeza de nunca transmitir uma
sensação de artificialidade tão presente em blockbusters hoje em dia, a Weta
Digital (empresa do próprio Peter Jackson, que criou os efeitos de SdA, Avatar, King Kong, As Aventuras de
Tintim, Distrito 9, etc) cria criaturas fascinantes, com um nível de
detalhes espetacular, e algumas vezes até apresentando minúcias que os
enriquecem, como é o caso do Grão-Orc, monstro imponente e rei dos orcs da
montanha, que tem uma grande papada, que no entanto lembra uma barba. Mas,
dentre todas as criaturas, a que ainda mais choca é Gollum, já que a técnica de
performance capture (criada com esse
personagem na outra trilogia) é aqui aperfeiçoada ao máximo, e supera até mesmo
os resultados vistos em Avatar, Planeta
dos Macacos – A Origem ou Ted (no
meu texto sobre esse filme elogiei bastante o emprego dessa técnica). O nível de detalhes e a perfeição com
que a técnica é utilizada permite que percebamos até as minúcias mais sutis da
excelente atuação de Andy Serkis, que transforma sua participação nesse filme
ainda mais memorável. (O personagem ainda é excelente por si mesmo, e suas
brigas de suas duas personalidades continuam extremamente interessantes).
As sequências de ação também se mostram, em
sua maioria, bem competentes. Jackson compreende não estar tratando de uma
trama tão grandiosa como a da outra trilogia, e assim diminui a escala épica
dessas sequências. Mas ainda assim mantém os fantásticos travellings e movimentos de câmera geniais que tanto marcam seus
trabalhos, conseguindo resultados particularmente notáveis em duas sequências
em especial: a da luta dos gigantes de pedra e a batalha entre a comitiva dos
anões e os orcs da montanha. No entanto, Jackson tropeça feio em uma cena de
ação dispensável e burocrática (que não existe no livro), logo antes das cenas
em Valfenda (o lar dos elfos), quando a comitiva é encurralada por orcs
montando wargs.
Mas quanto ao personagem de Bilbo o filme me
gerou sentimentos meio controversos. Como vi o longa ainda apenas uma vez, não
sei bem se esse sentimento se dá por um problemas real do filme, ou pela minha
admiração pelo personagem no livro. Aqui, no longa, não percebemos sua paixão
por mapas, ele não é tão gentil como era no livro, e Jackson parece não ter
percebido a importância de determinado momento do romance para o
desenvolvimento do personagem: quando os anões cantam, em frente à lareira, uma
belíssima canção sobre aventuras e perigos. Essa cena existe tanto no livro
como no filme, mas no romance Bilbo sentia, ao ouvir a canção, um temor
profundo e devastador, ao mesmo tempo em que uma paixão e curiosidade
enlouquecedora pelas montanhas, pelo desconhecido, pela emoção. Além de lindo,
esse momento é usado como estopim para Tolkien trabalhar a contradição inerente
ao personagem e para que esse tome sua decisão de se juntar à comitiva.
Jackson, no entanto, parece não ter percebido isso no romance, e mal presta
atenção a Bilbo nessa cena. O que é uma pena. Ainda, é importante dizer que
Jackson comete alguns erros quanto ao personagem em alguns momentos chaves,
incluindo um em que distorce a sua personalidade ao obrigá-lo a fazer um
discurso “honrado” sobre a saudade de casa e que por isso ajudará os anões a
recuperarem seu lar.
Ainda assim, ele continua um bom personagem.
Mantendo a contradição de sua personalidade (apesar da falta de atenção de
Jackson, como comentei), Bilbo busca uma vida pacata, mas percebe que à essa
sua vidinha confortável falta algo a mais, algo que tenta esconder de si mesmo.
Isso é muito bem evidenciado quando acorda na manhã seguinte à reunião dos
anões em sua casa, e percebe essa como vazia (e pelo silêncio e o plano aberto
com que Jackson filma esse momento, percebemos o vazio que ele está sentindo). Além
disso, o personagem é super beneficiado pela espetacular performance de Martin
Freeman, que presta atenção a detalhes específicos em sua composição de Bilbo.
A sua entonação muitas vezes trai a confusão dos sentimentos do hobbit, como
observamos no lindo momento em que tenta ir contra as afirmações de Gandalf
sobre ele mesmo, e sobre como mudou de quando era criança até agora, que é um
adulto. Através simplesmente do olhar, Freeman também consegue exprimir a
vergonha de Bilbo em relação aos anões, além de sua admiração pela figura
imponente e respeitável de Thorin. Ainda sobre esse personagem, é bacana que
Jackson tenha basicamente o escondido e ignorado durante boa parte da projeção,
pois reflete o papel completamente coadjuvante que ele vinha tendo na aventura
até então.
Sobre os personagens ainda, é interessante
ver Hugo Weaving interpretando Elrond de forma mais leve e descontraída do que
nos outros filmes (afinal, aqui ele não tem que pensar no fim do mundo). Ian McKellen
acerta de novo na composição de Gandalf (cuja personalidade já comentei na
minha crítica de SdA), e aqui abandona a oponência da
versão de mago branco que criou em As
Duas Torres e O Retorno do Rei, e
volta a interpretar a versão cinzenta, mais contraída, humilde e simples, que
enxerga em pequenos atos de bondade a resposta para os maiores atos de maldade
(o que explica sua admiração pelos hobbits). Já Richard Armitage acerta
absurdamente na sua interpretação do líder da comitiva dos anões, Thorin, que é
o anão mais complexo e interessante tanto do livro quanto do filme. Sujeito
trágico e amargurado pelo que fizeram com a cidade de Erebor (que ele ajudou a
construir e governar), Thorin é duro consigo mesmo e com os outros, assumindo
seu papel de liderança de forma a não deixar ninguém passar por cima dele (e é
interessante que Armitage abaixe a cabeça em sinal de vergonha quando percebe
que Gandalf tem razão nas denúncias que faz contra ele). No entanto, o anão,
apesar de amargo, é capaz de sentir profundo apreço pelos outros, quando estes
conquistam sua confiança e respeito.
Concluindo, O Hobbit: Uma Jornada Inesperada é um filme excelente, apesar das
pequenas ressalvas que fiz. Confesso que estava com medo da divisão do livro em
uma trilogia, com cada filme tendo cerca de três horas de duração. Mas esse
primeiro capítulo foi muito bem realizado e acalmou meus nervos. Jackson voltou
a ser um cineasta de confiança. Mas não vão assistir esperando um novo O Senhor dos Anéis, até porque nem O Hobbit pretende fazer isso. Esse não
tem a complexidade ou a profundidade daquela trilogia. Mas ainda assim é uma
aventura contagiante com um ótimo protagonista e momentos marcantes.
*Outras críticas minhas
de filmes dirigidos por Peter Jackson
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