sexta-feira, 21 de dezembro de 2012



Crítica filme "As Aventuras de Pi" (The Life Of Pi / 2012 / EUA) dir. Ang Lee

por Lucas Wagner


A comparação imediata que me veio logo quando acabou esse As Aventuras de Pi foi com um sanduíche com um recheio maravilhoso, mas que fica entre duas fatias de pão embolorado. O caso é que esse novo trabalho do ótimo cineasta Ang Lee (dos excepcionais O Segredo de Brokeback Mountain e Hulk), baseado no aclamado romance de Yann Martel (que eu não li), possui um segundo ato simplesmente fantástico, emocionante e muito bem realizado, mas em compensação, tem o primeiro e terceiro atos falhos que, embora funcionem em si mesmos, não possuem um grande valor dentro do propósito central da narrativa.

  Resumidamente, a história trata do garoto indiano Piscine Patel, mais conhecido como Pi, que é o único sobrevivente humano de um naufrágio. A partir de então, Pi passa a dividir um bote salva-vidas com um tigre bengala adulto, chamado Richard Parker.

  No 1º ato, conhecemos vários aspectos da história de vida de Pi, mas muitos que são pouco relevantes para a narrativa. Sem estrutura adequada, Lee insere várias cenas que mostram o motivo do nome do personagem, sua relação com a religião, sua paixão por uma determinada garota, e assim vai. Só que, numa história que vai trabalhar predominantemente a luta pela sobrevivência dele, ao mesmo tempo que sua relação com o tigre, por que diabos isso tudo é importante? A única coisa realmente válida no 1º ato é o momento em que Pi conhece o tigre Richard Parker, já que esse momento é absurdamente válido na construção da personalidade do personagem, sua relação com a religião, principalmente. Desconectado do resto do longa, confesso que gostei muito da subtrama envolvendo o comportamento religioso de Pi. Sem se ater a apenas uma religião, o moleque consegue ser muçulmano, cristão, indu, e sei lá mais o que, tudo ao mesmo tempo, enquanto vive com um pai que, mesmo carinhoso, é extremamente racional e desaprova a relação dele com a religião. Quando Pi conhece Richard Parker, essa relação muda (não vou contar como, pois seria spoiler). O que me irrita é que o roteiro de David Magee cria um caminho para uma possivelmente profunda discussão religiosa/teológica, apenas para largá-la depois, no segundo ato, para retomá-la no terceiro.

  Falando em 2º ato, agora é hora de “beijar os pés” do filme. Esse ato é o que se centra na sobrevivência de Pi. Com um tom de fábula (que domina o filme todo, por sinal), Lee alcança uma beleza estética absurdamente fantástica (sobre a qual discorrerei mais posteriormente), com imagens incrivelmente poéticas e mágicas. Ao mesmo tempo, no entanto, o cineasta é capaz de nunca deixar que essa parte do filme perca a verossimilhança (algo que, se acontecesse, mandaria o projeto por água abaixo). Assim, com uma direção calma e centrada, Lee consegue a proeza de ao mesmo tempo nos fascinar visualmente, conferir uma atmosfera de fábula e nos fazer sofrer junto de Pi e o tigre, diante de todas as dificuldades que passam. Nesses aspectos, confesso que o resultado que Lee alcança consegue ser quase tão bom quanto o que Robert Zemeckis conseguiu no seu excelente Náufrago.

  Mais importante ainda nesse 2º ato é o desenvolvimento da relação entre Pi e Richard Parker. Parker é um tigre adulto e violento, e logo domina o bote salva-vidas, não deixando Pi chegar perto. Porém, diante das dificuldades por que passa, Pi vai se fortalecendo e chega no nível do animal, com um comportamento de dominação que hoje em dia pode não ser tão valioso para a humanidade, mas que o era importantíssimo na pré-história, quando não tínhamos tantas ferramentas para intermediar nossa relação com os animais. Parker, no entanto, é um personagem fascinante, tanto visualmente (como discutirei em outro parágrafo) quanto como personagem mesmo, ainda que seja um tigre. Assim como aconteceu com o King Kong do filme de Peter Jackson, ou a cadela Sam de Eu Sou a Lenda, Richard Parker não é exatamente antropormofizado, mas, dentro de sua gama de comportamentos de espécie, é fascinante. E mais: quanto mais vai desenvolvendo sua relação com Pi, mais nos importamos com ele, já que percebemos a “mudança” em sua personalidade, mesmo que ele nunca deixe de se comportar como um animal predominantemente irracional (e eu fico ressaltando isso já que esse detalhe gera uma cena fantástica no final do 2º ato que vem ainda seguida de uma discussão promovida pelo Pi adulto que...uau). A constante sensação de perigo e exaustão (no bom sentido, já que estamos tão conectados com o que estamos vendo que sentimos o que os personagens sentem), ao mesmo tempo em que a construção e desenvolvimento da relação entre Pi e Richard Parker, sem deixar de lado o deslumbramento visual, fazem desse 2º ato algo simplesmente maravilhoso, envolvente e muito emocionante, que peca apenas pelos realizadores não terem encontrado outro jeito de desenvolver a história que não fosse pela narração em off de Pi, o que torna tudo um pouquinho artificial.

  Já no 3º ato, logo de cara somos presenteados com a tal discussão promovida pelo Pi adulto, que é a melhor cena do filme. Profunda e filosófica, além de cheia de sofrimento, essa discussão nos faz pensar sobre nós mesmos, a encarar nossa própria vida, e culmina ainda numa frase que eu nunca esquecerei (“A vida é um constante ato de desapego”). Tirando isso, o 3º ato, assim como o primeiro, desvia o longa de seu centro, e procura reviver a discussão religiosa que teve antes, só que dessa vez sem força alguma, já que o que acontece no segundo ato (e que é o que realmente importa no mote do filme) não sustenta em momento algum essa discussão. Assim, ela soa completamente artificial. Pior do que isso, é Lee levar mais de cinco minutos numa cena completamente desnecessária e artificialmente emocionante, em que o jovem Pi conta a uma história falsa sobre o que aconteceu depois do naufrágio. Não que a cena seja inútil, o problema é o tempo que Lee leva para mostrá-la. Alguns podem argumentar que essa cena é importante para gerar uma ambiguidade no que vimos. Eu não acredito nisso. Se fosse assim, Pi seria meio que um homem esquizofrênico, e nada no filme sustenta essa hipótese.

  Agora, visualmente, As Aventuras de Pi é estonteante, de tirar o fôlego. Se colocando como o único longa desse ano capaz de desafiar O Hobbit nesse aspecto, Lee e o diretor de fotografia Cláudio Miranda criam cenas de absoluta poesia, de uma beleza ímpar, de cair o queixo mesmo, como aquela em que Pi vê o navio afundando, ou em um determinado amanhecer (em que o mar reflete totalmente o céu), na sequência da exótica ilha em que Pi passa uma noite, ou qualquer cena debaixo da água, entre vários outros momentos. Ainda, os efeitos visuais são impecáveis, em todos os aspectos: as sequências de tempestade são maravilhosas e verossímeis, principalmente aquela do naufrágio; e todos os animais são incrivelmente realistas, mas principalmente o tigre. Em nenhum mísero momento, podemos perceber se Parker é uma animação ou um tigre de verdade, tamanho o nível de qualidade dos efeitos. Movendo-se com fluidez, o animal ainda trai suas emoções através de suas expressões e de seu olhar, mas sem nunca ser antropormofizado. Mais impressionante ainda, é que o tigre vai emagrecendo ao longo do filme, se tornando uma figura mais frágil e menor, o que é perfeitamente natural para um bicho que passou pelas dificuldades que ele passou. Simplesmente genial esses detalhes, que me fazem ficar seriamente na dúvida quanto quem deveria ganhar o Oscar de efeitos especiais: As Aventuras de Pi ou O Hobbit.

  Em questão de atuações, todos estão impecáveis. Adil Hussain consegue conferir adequada dose de carinho e rigidez como o pai de Pi, possuindo um detalhe lindo em sua performance, quando percebe, em determinado momento, que passou dos limites. Suraj Sharma interpreta o jovem Pi com força e realismo, mostrando a mudança pela qual o personagem passa, inclusive em sua entonação, que vai se tornando mais grave e cansada. Mas quem reina é Irfan Khan, que interpreta Pi adulto. O ator interpreta o personagem envelhecido como um homem maduro mas sofrido, dono de suas próprias opniões e grato por tudo que passou na vida. Khan protagoniza a discussão sobre a qual comentei, e a expressão do ator, as lágrimas que brotam involuntariamente de seus olhos, acoplada com suas palavras, confesso que me fez encher os olhos de lágrimas.

  As Aventuras de Pi é um filme muito bom, de verdade. A sua esplêndida força visual, suas atuações, a direção de Lee (pelo menos em boa parte do tempo) e seu segundo ato inesquecível, permitem que eu diga isso. É uma pena que o 1º e 3º ato impeçam que o longa seja a obra-prima que poderia ser. Mas ainda vale demais assisti-lo. 

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