Análise:
O Abutre (Nightcrawler / 2014 / EUA) dir. Dan Gilroy
por
Lucas Wagner
Com a polícia
distraída, Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) entra em uma cena de crime e
reorganiza fotos de família para fiquem mais próximas dos buracos de bala na
geladeira, conseguindo assim um ângulo mais dramático para a filmagem que está
ali para fazer. Foi aí que ele começou a ganhar o respeito da emissora para a
qual vende seus vídeos. Não é a toa que o cara falou que aprendia rápido: no
ramo do jornalismo moderno, a veracidade dos fatos não é o ponto central, mas
sim o quão chamativo, visceral, cinematográfico até, são as imagens que serão
transmitidas para os telespectadores.
Escrito e dirigido por
Dan Gilroy, este Nightcrawler narra
como o aparentemente perdedor Louis Bloom passa de um zé ninguém a um elemento
indispensável dentro do ramo de filmagens freelancer,
passando noites acordado enquanto dirige pelas sombrias ruas de Los Angeles,
buscando, qual um abutre (como explicita o título brasileiro), as mais gráficas
imagens em que ele pode pôr as mãos, e vendê-las a suculentos preços para uma
faminta emissora de Tv.
Cínico durante toda a
projeção, Gilroy diverte-se ao mostrar a torre da emissora com um revelador 66
vermelho brilhante (ter mais um “6” seria entregar o jogo demais), explicitando
bem o que acha daquele universo. Não que o pinte de forma unidimensionalmente
má, já que podemos vislumbrar evidências de algum comportamento moral na figura
do produtor Frank, que claramente se incomoda com algumas das coisas que vê, ou
mesmo Rick, o assistente de Louis. Mas mesmo essas pessoas se veem convencidas
da “necessidade” de deixar certos preceitos de lado, se adaptando ao meio por
reconhecerem a trágica lógica que o guia.
E se o que vende é
entretenimento, e não fatos, esse é ainda um entretenimento sádico, sangrento,
que chama atenção do telespectador por atiçar o interesse mórbido que o ser humano
parece ter no sofrimento alheio. É o que Louis tão bem compreende, e aos poucos
começa, como exemplifiquei no primeiro parágrafo, a manipular as cenas de crime,
sendo capaz mesmo de, com a frieza que o caracteriza, chegar antes da polícia, para ter maior
liberdade de movimento, de modo a conseguir não apenas ângulos melhores, mas
que possuam algum teor dramático mais intenso, criando histórias que se dão ao
luxo de ter até mesmo uma escala gradual de suspense. Gilroy, aliás, escancara
a desimportância da história real em prol do drama rentável quando Louis,
desavergonhamente, pede a uma entrevistada que repita o que disse, só que dessa
vez sem uso de palavrão.
Mas o que faz de Louis
o homem perfeito para esse trabalho é a sua natureza psicopata, que vai se
descortinando aos olhos cada vez mais arregalados do espectador, perplexo ao
ver como o looser do início, com seu
antiquado penteado no cabelo oleoso (talvez uma patética tentativa de vender
uma imagem aprazível, o que na verdade apenas demonstra sua falta de habilidade
social) e andar esquisito, passa a ser o “monstro” no final, quando entra numa
espiral de frio maquiavelismo, que é, aliás, o ponto chave de seu sucesso
profissional: a sua inabilidade emocional e, logo, a frieza com que controla
seus passos e o ambiente ao seu redor, o tornam extremamente competente quando
se trata de manter a cabeça fria na hora de organizar as tomadas de forma a
alcançar os melhores, mais chocantes resultados.
Tal psicopatia tem seus
primeiros sinais logo na primeira cena, quando Louis consegue roubar um relógio
depois de enganar seu dono com demasiada tranquilidade; mas o seu meio não
permitia que ela aflorasse com todo o potencial. É no jornalismo que ele encontra
solo perfeito para “crescer”, apesar de ficar claro a todo momento que o que
move Louis não é o interesse por aquele ou por qualquer trabalho específico,
mas sim se tornar mais poderoso, influente, manipulador, o que entra em
conflito, mais uma vez, com a sua falha comunicação interpessoal, já que toma
esse empoderamento como passe livre para tudo o que denomina como poder,
incluindo o sexo com pessoas específicas. Mas apesar de suas habilidades
sociais serem desprezíveis, o homem é capaz de apertar pontos de pressão
eficazes em terceiros, justamente porque estuda a tudo e a todos, pavimentando
seu caminho com uma preparação calculista extremamente coordenada. E é
divertido, embora assustador, o modo como Gilroy filma suas etapas dentro da
emissora, sendo emblemático, talvez até engraçado, o momento em que o sujeito
senta-se, sozinho, à mesa dos âncoras, parecendo sentir uma emoção profunda,
enquanto na verdade as cócegas de excitação que sente vem do poder que
gradualmente ganha.
E seguindo o mesmo grau
de perfeição de seus recentes trabalhos em Marcados
Para Morrer, Os Suspeitos e O Homem Duplicado, Jake Gyllenhaal
demonstra uma entrega furiosa ao papel ao mesmo tempo em que se mostra atento
aos mais diversos detalhes de sua performance, como no gradual conforto e
habilidade com que se move com uma câmera. Fazendo questão de evidenciar a
instabilidade do sujeito logo nos primeiros momentos de projeção, com sua cara
meio pateta e voz esganiçada, riso frouxo e andar esquisito, o ator faz com que
desprezemos Louis de cara, tomando-o como um homenzinho miserável e solitário,
sendo justamente por isso que, quando se mostra perigoso, inteligente,
calculista, tomemos um choque que cresce de acordo com a gravidade das atitudes
das quais que se mostra capaz no decorrer do filme, que vão assumindo
proporções catastróficas, absurdas, mas que surpreendentemente são aceitas
pelas pessoas ao seu redor, desde que se pague adequadamente, é claro. O nível
de frieza de Louis chega a ponto de que ele despreze, mesmo que simbolicamente,
um “colega” de profissão de quem recentemente se vingou, ao simplesmente dar o
vídeo que fez de seu infortúnio, abrindo mão do pagamento ao incorporar o
desprezo – num grau máximo de calculismo – às suas necessidades negociais mais
urgentes.
É pelo fato dessa
figura tão vilanesca ser demasiadamente eficaz e até importante no meio
jornalístico em que entre, que Nightcrawler
alcança sua mais feroz crítica e cinismo, nunca precisando nem mesmo de
adotar um tom cartunesco ou excessivamente chamativo (como David Cronenberg fez
em Mapa Para as Estrelas) para
alcançar seus objetivos narrativos. Para isso, é preciso apenas observarmos elementos
como a diretora interpretada por Rene Russo, que sente-se preocupada mas também
fascinada por Louis, e é extremamente sintomático que uma cena sugira uma
tensão sexual entre ambos depois que ela assiste à uma filmagem particularmente
imoral e visceral, mesmo quando, cenas antes, ela tenha negado com tanta veemência
qualquer possibilidade de interação além da profissional com o rapaz.
Assim sendo, Nightcrawler é uma obra soberba que
funciona em diversos níveis, todos se complementando de forma a construir uma
estrutura complexa e inteligente: é uma feroz crítica à mídia, um fascinante
estudo de personagem e um suspense aterrador. É um longa extremamente violento
e magnético, atraente como as reportagens sádicas que os telespectadores
consomem. Logo, a euforia com que o filme nos deixa ao acabar pode ser um sinal
perfeito de que caímos na armadilha criada por seu diretor.
Touché, Gilroy, touché.
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