segunda-feira, 29 de dezembro de 2014


Análise:

O Abutre (Nightcrawler / 2014 / EUA) dir. Dan Gilroy

por Lucas Wagner

Com a polícia distraída, Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) entra em uma cena de crime e reorganiza fotos de família para fiquem mais próximas dos buracos de bala na geladeira, conseguindo assim um ângulo mais dramático para a filmagem que está ali para fazer. Foi aí que ele começou a ganhar o respeito da emissora para a qual vende seus vídeos. Não é a toa que o cara falou que aprendia rápido: no ramo do jornalismo moderno, a veracidade dos fatos não é o ponto central, mas sim o quão chamativo, visceral, cinematográfico até, são as imagens que serão transmitidas para os telespectadores.

Escrito e dirigido por Dan Gilroy, este Nightcrawler narra como o aparentemente perdedor Louis Bloom passa de um zé ninguém a um elemento indispensável dentro do ramo de filmagens freelancer, passando noites acordado enquanto dirige pelas sombrias ruas de Los Angeles, buscando, qual um abutre (como explicita o título brasileiro), as mais gráficas imagens em que ele pode pôr as mãos, e vendê-las a suculentos preços para uma faminta emissora de Tv.

Cínico durante toda a projeção, Gilroy diverte-se ao mostrar a torre da emissora com um revelador 66 vermelho brilhante (ter mais um “6” seria entregar o jogo demais), explicitando bem o que acha daquele universo. Não que o pinte de forma unidimensionalmente má, já que podemos vislumbrar evidências de algum comportamento moral na figura do produtor Frank, que claramente se incomoda com algumas das coisas que vê, ou mesmo Rick, o assistente de Louis. Mas mesmo essas pessoas se veem convencidas da “necessidade” de deixar certos preceitos de lado, se adaptando ao meio por reconhecerem a trágica lógica que o guia.  

E se o que vende é entretenimento, e não fatos, esse é ainda um entretenimento sádico, sangrento, que chama atenção do telespectador por atiçar o interesse mórbido que o ser humano parece ter no sofrimento alheio. É o que Louis tão bem compreende, e aos poucos começa, como exemplifiquei no primeiro parágrafo, a manipular as cenas de crime, sendo capaz mesmo de, com a frieza que o caracteriza, chegar antes da polícia, para ter maior liberdade de movimento, de modo a conseguir não apenas ângulos melhores, mas que possuam algum teor dramático mais intenso, criando histórias que se dão ao luxo de ter até mesmo uma escala gradual de suspense. Gilroy, aliás, escancara a desimportância da história real em prol do drama rentável quando Louis, desavergonhamente, pede a uma entrevistada que repita o que disse, só que dessa vez sem uso de palavrão.

Mas o que faz de Louis o homem perfeito para esse trabalho é a sua natureza psicopata, que vai se descortinando aos olhos cada vez mais arregalados do espectador, perplexo ao ver como o looser do início, com seu antiquado penteado no cabelo oleoso (talvez uma patética tentativa de vender uma imagem aprazível, o que na verdade apenas demonstra sua falta de habilidade social) e andar esquisito, passa a ser o “monstro” no final, quando entra numa espiral de frio maquiavelismo, que é, aliás, o ponto chave de seu sucesso profissional: a sua inabilidade emocional e, logo, a frieza com que controla seus passos e o ambiente ao seu redor, o tornam extremamente competente quando se trata de manter a cabeça fria na hora de organizar as tomadas de forma a alcançar os melhores, mais chocantes resultados.

Tal psicopatia tem seus primeiros sinais logo na primeira cena, quando Louis consegue roubar um relógio depois de enganar seu dono com demasiada tranquilidade; mas o seu meio não permitia que ela aflorasse com todo o potencial. É no jornalismo que ele encontra solo perfeito para “crescer”, apesar de ficar claro a todo momento que o que move Louis não é o interesse por aquele ou por qualquer trabalho específico, mas sim se tornar mais poderoso, influente, manipulador, o que entra em conflito, mais uma vez, com a sua falha comunicação interpessoal, já que toma esse empoderamento como passe livre para tudo o que denomina como poder, incluindo o sexo com pessoas específicas. Mas apesar de suas habilidades sociais serem desprezíveis, o homem é capaz de apertar pontos de pressão eficazes em terceiros, justamente porque estuda a tudo e a todos, pavimentando seu caminho com uma preparação calculista extremamente coordenada. E é divertido, embora assustador, o modo como Gilroy filma suas etapas dentro da emissora, sendo emblemático, talvez até engraçado, o momento em que o sujeito senta-se, sozinho, à mesa dos âncoras, parecendo sentir uma emoção profunda, enquanto na verdade as cócegas de excitação que sente vem do poder que gradualmente ganha.

E seguindo o mesmo grau de perfeição de seus recentes trabalhos em Marcados Para Morrer, Os Suspeitos e O Homem Duplicado, Jake Gyllenhaal demonstra uma entrega furiosa ao papel ao mesmo tempo em que se mostra atento aos mais diversos detalhes de sua performance, como no gradual conforto e habilidade com que se move com uma câmera. Fazendo questão de evidenciar a instabilidade do sujeito logo nos primeiros momentos de projeção, com sua cara meio pateta e voz esganiçada, riso frouxo e andar esquisito, o ator faz com que desprezemos Louis de cara, tomando-o como um homenzinho miserável e solitário, sendo justamente por isso que, quando se mostra perigoso, inteligente, calculista, tomemos um choque que cresce de acordo com a gravidade das atitudes das quais que se mostra capaz no decorrer do filme, que vão assumindo proporções catastróficas, absurdas, mas que surpreendentemente são aceitas pelas pessoas ao seu redor, desde que se pague adequadamente, é claro. O nível de frieza de Louis chega a ponto de que ele despreze, mesmo que simbolicamente, um “colega” de profissão de quem recentemente se vingou, ao simplesmente dar o vídeo que fez de seu infortúnio, abrindo mão do pagamento ao incorporar o desprezo – num grau máximo de calculismo – às suas necessidades negociais mais urgentes.

É pelo fato dessa figura tão vilanesca ser demasiadamente eficaz e até importante no meio jornalístico em que entre, que Nightcrawler alcança sua mais feroz crítica e cinismo, nunca precisando nem mesmo de adotar um tom cartunesco ou excessivamente chamativo (como David Cronenberg fez em Mapa Para as Estrelas) para alcançar seus objetivos narrativos. Para isso, é preciso apenas observarmos elementos como a diretora interpretada por Rene Russo, que sente-se preocupada mas também fascinada por Louis, e é extremamente sintomático que uma cena sugira uma tensão sexual entre ambos depois que ela assiste à uma filmagem particularmente imoral e visceral, mesmo quando, cenas antes, ela tenha negado com tanta veemência qualquer possibilidade de interação além da profissional com o rapaz.

Assim sendo, Nightcrawler é uma obra soberba que funciona em diversos níveis, todos se complementando de forma a construir uma estrutura complexa e inteligente: é uma feroz crítica à mídia, um fascinante estudo de personagem e um suspense aterrador. É um longa extremamente violento e magnético, atraente como as reportagens sádicas que os telespectadores consomem. Logo, a euforia com que o filme nos deixa ao acabar pode ser um sinal perfeito de que caímos na armadilha criada por seu diretor.

Touché, Gilroy, touché.

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