Análise:
Ida (Ida / 2014 / Polônia, Dinamarca) dir. Pawel Pawlikowski
por
Lucas Wagner
Neve, lama, estradas
apertadas, sombras, esqueletos de árvores sem folhas suportando ventos gelados...
essas são as notas que compõe a sinfonia de Ida,
forte candidato ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para 2015, e que
representa, em sua hora e vinte de duração, uma experiência cuja força e
profundidade encontra-se na forma como as imagens exploram o universo interior
de suas personagens principais, o que acaba por tornar o longa uma viagem mais
íntima do que se fosse recheado de falas expositivas.
Escrito por Rebecca
Lenkiewcz e Pawel Pawlikowski, e dirigido por este último, o filme conta sobre
a noviça Anna (Agata Trzebuchowska) que, antes de fazer seus votos para se
tornar freira depois de ter vivido todos os seus anos num convento para orfãs,
precisa visitar a tia Wanda (Agata Kulezsa), sua única parente viva, que envia
uma carta em resposta a tantos anos de tentativas de contato realizadas pelas
madres do convento onde Anna cresceu. Descobrindo ter origem judia e se chamar
Ida, na verdade, Anna inicia uma viagem com a tia para ver onde sua verdadeira
família foi enterrada.
Contando com dois
diretores de fotografia (Ryszard Lenczewski e Lukasz Zal), Ida possui um primoroso tratamento visual que é por onde o diretor
Pawlikowski vai extrair significados para contar sua história. Optando pelo
preto e branco como forma de evidenciar ainda mais a falta de vida daquele
universo, os realizadores são inteligentes/criativos ao adotar uma razão de
aspecto reduzida (1.33:1) que força o olhar do espectador a experimentar um
pouco da estreiteza de visão de mundo das personagens, confinadas em
experiências de vida que transformaram suas existências em prisão (e não é a
toa que o longa apresente várias imagens de grades, ou azulejos que lembrem
grades), e esse “inverno da alma” em que vivem pode ser também ilustrado pelos
elementos do cenário citados no primeiro parágrafo, se tornando triste e
sintomático que possamos prever precisamente a atitude de uma personagem no
terceiro ato quando abre uma única janela em seu apartamento, dando de cara com
um dos esqueletos desfolhados de árvore, uma representação de tudo o que o
mundo exterior tem a oferecer a ela.
Pawlikowski também faz
uso de uma cuidadosa construção de quadros para explorar a interação daquelas
pessoas com seus meios. Anna/Ida, por exemplo, constantemente aparece focada em
planos abertos e descentralizados, onde a protagonista se torna um pequeno
elemento do cenário, numa ilustração da vida daquela moça que sempre se viu
subordinada às exigências do meio, e assim, o fato de tais quadros não raro
virem desequilibrados pela presença de uma outra pessoa, se torna revelador da
falta de domínio que a personagem pode exercer sobre si e o que pode realmente
querer. Interessante ainda que sua tia, Wanda, comece sendo filmada em planos
mais fechados e gradualmente passe a ser vista da mesma forma que Anna/Ida:
apenas um elemento de seu cenário, apesar da aparência de mulher independente,
forte. É como se ambas as mulheres estivessem flutuando sem apoio em seus
ambientes, sendo relegadas ao vazio da falta de identidade ou sentido.
Pois é justamente na
relação entre esses dois pólos opostos (a castidade e a atitude sexualmente
mais moderna) representados pelas duas mulheres que o longa se concentra. Mas,
mais do que assumir posturas absolutas, Pawlikowski parece preferir um
tratamento mais complexo e adulto ao projeto, algo que pode ser percebido pelos
primeiros momentos de interação entre tia e sobrinha: o mundo da primeira onde
a segunda vai entrando é coberto de música (algo refrescantemente alienígena
para o mundo silencioso de Anna/Ida) mas é recheado de garrafas de bebida e
inúmeros cigarros, além de ser sintomático que, na primeira cena juntas,
percebamos a presença de um homem na casa de Wanda, embora não possamos
enxergar seu rosto, já que não importa, sendo ele apenas um representante de
mais um anestésico para essa mulher (o sexo).
Anna/Ida pode se sentir
completamente sem chão ao descobrir novos elementos de sua identidade, e
percebe a ruína que na verdade é sua tia, mas há algo de excitante nesse
universo novo trazido pela parente, tão distinto da sacralidade do convento. O
modo como Pawlikowski desenvolve a protagonista é sutil na representação da
calada tentação, e podemos perceber esse seu movimento “psicológico” em planos
representativos como aquele que trás Anna/Ida por trás das grades de uma escada
em espiral que desce para as sombras, de onde brota um sedutor som de saxofone.
É como se a personagem estivesse sendo tentada pelo inferno, ou pelo menos é
como ela percebe essa tentação, extremamente sedutora em especial pelo seu
caráter de proibido. A evolução de pensamento da protagonista, aliás, é visualmente
assegurada em dois momentos específicos em que observa uma banda tocando: se na
primeira vez o ponto de luz é a banda enquanto a protagonista se encontra
engolfada em sombras e escondida por uma pilastra, na segunda ela observa a
banda (ainda o ponto de luz do quadro) através de um arco que se assemelha à
entrada/saída de uma toca. A sua toca, que, diferente das sombras em que
insistia se envolver, representa uma abertura.
E assim, por mais que
nunca veja a tia como um exemplo de perfeição, ter o gostinho daquele outro
mundo representado por ela é o suficiente para que Anna/Ida queira assumir
(literalmente) o papel dela, o que o figurino se encarrega de ilustrar de forma
clara quando veste as roupas da parente, bebe sua bebida, fuma seu cigarro e
usa sua maquiagem, sendo que Pawlikowski tem o toque de gênio de usar um sutil
plano inclinado em um espelho nesse momento: o reflexo que Anna/Ida enxerga é um
que se encontra desequilibrado do modo como ela equilibrou seu mundo. E é ao
chocar-se de frente com o vazio da vida da tia que a protagonista percebe não
encontrar um sentido profundo para sua própria existência, uma chave para a
felicidade que acabaria com as dúvidas ou pelo sentimento tão bem expresso pela
palavra em francês spleen (que pode
ser traduzida – insatisfatoriamente - como tédio
existencial), algo que é revelado de forma - mais uma vez - sutil no
diálogo que a moça trava com o rapaz da banda, quando todo o vácuo de
significados daquela existência aparentemente mais intensa se descortina à sua
frente.
E Wanda não é uma
personagem menos complexa. Optando pelo secularismo ao invés da religiosidade,
a personagem se revela cada vez mais desgastada, seja pelo passado ou por
perceber que, mesmo tendo atingido uma respeitabilidade profissional (é uma
juíza), o caráter efêmero de suas experiências não perdeu seu peso de vazio.
Muito pelo contrário, e a personagem afirma sinais de se sentir como se
desmanchada pelo vento. É sintomático, aliás, que ela diga que a sobrinha
insiste em esconder sua beleza com as vestes de freira. É verdade: Anna/Ida
está o tempo todo escondendo, não apenas sua beleza, mas sua própria
existência. Mas esconder-se é também parte do repertório comportamental de Wanda,
que usa o álcool, tabaco e sexo, além de sua própria imagem
(sexual/profissional) como máscara ou obstáculos para si mesma, sendo que
Pawlikowski mais uma vez demonstra sua inteligência ao, uma cena após a fala de
Wanda sobre a sobrinha se esconder, mostrar a mulher sendo deixada por um
amante fortuito e, num gesto absolutamente significativo, virar-se de costas
para a câmera.
Assim como outro triste filme de 2014, o brasileiro Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa, Ida é uma obra adulta o suficiente para perceber o spleen que caracteriza a vida, qualquer vida, e que às vezes isso pode ser absolutamente insuportável, vazio como o propósito da viagem de Anna/Ida e Wanda: ver ossos em decomposição de pessoas a muito mortas.
Ótima análise. Já tinha apreciado o filme quando vi, agora passei a apreciar mais ainda. Obrigado e bom trabalho!
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