Análise:
Boyhood – Da Infância à Juventude (Boyhood / 2014 / EUA) dir. Richard Linklater
por
Lucas Wagner
Richard Linklater é um
artista fascinante que constantemente surpreende com ousadas empreitadas. A
trilogia iniciada por Antes do Amanhecer fornecia
profundas reflexões sobre relacionamentos a partir do uso do próprio tempo
entre as produções como fator basal, ao passo que Waking Life (assim como O
Homem Duplo) se utilizava de uma animação deveras peculiar para traduzir os
mais complexos conceitos filosóficos. E enquanto Jovens, Loucos e Rebeldes divertia pela contra-cultura e mesmo
pelas “contra-convenções nostálgicas”, Tape
era um angustiante drama psicológico cujo cenário se “limitava” a um quarto
de hotel barato. E a lista poderia seguir solta, podendo citar as
peculiaridades de obras-primas como Bernie,
Escola de Rock ou Slacker.
Mas o caso é que esse
seu novo filme, Boyhood – Da Infância à
Juventude, revela-se uma jornada surpreendente até para os termos de seu realizador.
Filmado durante 12 anos, o projeto acompanha o personagem Mason Junior (Ellar
Coltrane) desde sua infância, passando pela adolescência até chegar à sua vida
adulta, quando deixa a casa da mãe e ruma à faculdade. Mais do que um filme com
uma trama específica, no entanto, estamos tratando de uma obra que é feita de
momentos. Momentos estes que, aos poucos, constroem Mason e modificam o
ambiente a sua volta.
Construído com sensibilidade,
Boyhood permite a identificação de
qualquer espectador por mostrar momentos que são facilmente compartilhados por
qualquer ser humano, justamente pela naturalidade de seu conteúdo. Seja
presenciar uma tenebrosa briga entre os pais e sonhar que tudo ficará bem, e
até mesmo momentos repletos de gostosos frios na barriga, como tomar uma
cerveja sendo menor de idade (e a hesitação pontuada por Coltrane é tocante) ou
dividir um cigarro de maconha entre amigos. Para além disso, o filme investe em
momentos com essa mesma naturalidade mas marcados de um lirismo fascinante,
facilmente esquecido diante do caos do cotidiano, como uma descontraída
caminhada com uma garota especial durante toda uma noite até onde a escuridão
se choca com a luz diferencial de uma manhã. E é interessante ainda como o longa
foge do maniqueísmo barato e opte pelo realismo ao mostrar Mason, mesmo
apaixonado pela namorada, flertando distraidamente com uma colega de trabalho.
Mas ainda que possua
essa naturalidade que permita certa universalidade, Boyhood evita ser um filme coming
of age comum e nega ao espectador momentos primordiais na vida de qualquer
jovem (como seu primeiro beijo ou primeira transa) e prefere aproveitar o tempo
para desenvolver melhor o que é peculiar à Mason. Pois, mais do que falar sobre
crescer, amadurecer, Linklater se preocupa em criar um estudo de personagem na
melhor definição no termo, já que presta atenção, com admirável cuidado, a como
a interação de Mason com seu mutável ambiente (o que inclui as pessoas com quem
convive) vai modelando seu comportamento ao longo dos anos.
O modo como Mason passa
do garotinho com o pragmatismo típico de uma criança (“Por que não entregou ser
dever de casa?” “Porque a professora não pediu”) para o adulto barbado e
poético, com incontáveis idéias atoladas na garganta, não surge a partir de sua
própria “força de vontade”, mas de diversas variáveis que incluem: o fato de
ter assistido aulas de sua mãe (uma professora de Psicologia) e aprendido sobre
figuras como B.F Skinner e John Bowlby; ter tido enorme influencia pelas ideias
humanistas de um pai romântico e repleto de carinho; ter sido ensinado a
escutar rock e música country, com toda a poesia que acompanha
as letras dessas canções. Ainda, para compreender como, de um menino tagarela,
passa a ser um jovem progressivamente introspectivo até conseguir, aos poucos,
expressar mais sua opnião, é necessário levar em conta fatores como a constante
mudança de lares, ver sua mãe se entregando a homens violentos e desrespeitosos
ou mesmo seu pai, outrora tão cheio de ideais e sonhos, se entregar a uma
existência familiar que a princípio lhe pareceria alienante, eventos esses que
deixariam qualquer um confuso quanto a como se comportar, ou mesmo se
expressar, adequadamente.
Mason Junior é um ser
humano extremamente complexo, justamente devido a todas essas contingências. E
é pelo embasamento intelectual e afetivo que recebe de seu rico ambiente que o
protagonista acabe por se tornar um sujeito demasiado cônscio, o suficiente
para lhe causar certa aflição ontológica por reconhecer que tudo aquilo que os
outros fazem e que lhe chega como eventos aversivos, não são feitos por
maldade, mas que o próprio comportamento humano é severamente ambíguo. É
notável que, depois de tanto tempo calado com essas angústias, ele as despeje
para uma garota cujos principais predicados residem no fato de ser bonita, e
não inteligente ou compreensiva. Uma tentativa, observada sabiamente por
Linklater, demasiadamente comum de um jovem do sexo masculino de buscar em um
rostinho bonito uma rota de salvação.
O que é tão fascinante
nesse ponto da história, em que Mason namora com essa garota, Sheena, é que os
dois são pólos opostos: ele um intelectual romântico e ela uma moça ligada em
Facebook. E o próprio interesse dele por ela partiu do ponto de vista físico.
Mas aqui entra a sensibilidade de Linklater: isso não importa para que o
relacionamento dos dois constitua uma interação tão bonita de mútua construção,
e diálogos ricos que evidenciam maturidade e bom humor por ambos, mesmo que de
perspectivas tão absolutamente distintas. Mais do que isso: o relacionamento acaba,
com toda a parcela de dor e amadurecimento que isso acarreta, e toda a poesia
retratada no lirismo de fotos artísticas com a moça como musa, é findada pelos
mais estúpidos dos acontecimentos. Como é a vida em si: espúria até os limites
do aceitável.
Com essa atenção
dedicada à construção do ambiente de Mason, Linklater consegue a proeza de
criar uma lista de personagens tridimensionais, cujas características
influenciam completamente uns aos outros. Assim, além de contar uma história de
juventude, o diretor fala sobre o processo de envelhecer, sobre a angústia de
ver os filhos crescendo e se dizer, com enorme dor, que pensava que “haveria
mais” na vida. A sabedoria do diretor é tanta que novamente foge das
facilidades da ficção e, mesmo com personagens que aparentemente se fixam em
estereótipos, escapar de seus mais comuns limites. Exemplo disso fica claro no
pai do protagonista, que mesmo sendo evidentemente um adulto sonhador demais
para seu próprio bem, é um pai excessivamente carinhoso, presente, o que se torna
essencial para Mason se destravar com ele, como geralmente faz. Aliás, mesmo
quando “careta” (caindo em outro estereótipo), é capaz de lindas e sábias
reflexões. Ou seja: Linklater o tempo todo nos fala sobre a mutabilidade do comportamento
humano e a impossibilidade de fechá-lo em simples clichês. Para mais exemplos
basta olhar Samantha (irmã de Mason) ou a citada Sheena.
Essa narrativa atenta
aos detalhes do Tempo ainda prima pela sutileza, apostando no figurino ou em
objetos de cena (como os diferentes carros do pai) para representar as mudanças
psicológicas sofridas por aquelas pessoas. Ainda é lindo o modo como o
desenvolvimento de um comportamento problemático é aqui narrado, quando um
sujeito alcoólatra é filmado primeiro bebendo escondido e depois fazendo isso
na mesa de jantar. Para completar, Linklater se revela um gênio ao conseguir
impedir que a narrativa se torne esquemática e a transforme num processo fluído
de desenvolvimento, selecionando cenas na montagem não por um processo
simplesmente lógico, mas a partir de instantes que se mostram precisos para o
desenvolvimento dos personagens ao longo dos anos.
Para finalizar, se em Antes da Meia-Noite o cineasta já havia
demonstrado como usa sua própria experiência e amadurecimento enquanto ser
humano para enriquecer o conteúdo de sua Arte, adotando uma filosofia mais
empírica do que as (maravilhosas) discussões intelectualizadas de seu Waking Life, aqui, mais do que nunca,
podemos perceber a influência desse processo de crescimento. Desde que começou
a filmar o longa, em 2002, passou por muita coisa em sua vida, e seria
impossível que tudo isso não marcasse o desenvolvimento do projeto. Então,
enquanto Mason vai se entregando a filosofias marcadas por sua experiência e pelo
que enxerga daqueles com quem convive, podemos entrever o próprio Linklater
mais uma vez usando a Arte para explorar suas angústias existenciais.
Indubitavelmente um dos
melhores filmes do ano, Boyhood é um
enorme marco mesmo na carreira de um cineasta já tão fascinante, com um olhar
maduro como poucos para perceber todos os rasgos que fazem uma vida da
tapeçaria humana, e como são justamente eles que nos fazem crescer. Em suma:
uma obra-prima para todos os méritos.
- Textos meus de outros filmes de Richard Linklater:
obrigada por compartilhar!
ResponderExcluirMUito bom!
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