domingo, 16 de novembro de 2014


Análise:

Debi e Loide 2 (Dumb and Dumber To / 2014 / EUA) dir. Peter e Bobby Farrelly

por Lucas Wagner

Não é da boca pra fora que afirmo ser Debi e Loide um marco cinematográfico importante na década de 90. Em uma época cada vez mais consumida pelo câncer do “politicamente correto”, Peter e Bobby Farrelly tiveram a ousadia de fazer um filme que abraçava com “amor” o mais profundo do humor negro, criando no processo o que é uma aula de uso competente desse tipo de comédia. Fazendo piada com duas pessoas com óbvios problemas cognitivos, passando por diversas situações que fazem qualquer espectador questionar seu próprio bom senso por estar rindo daquilo tudo, Debi e Loide ladrilhou o caminho para reviver o humor negro, permitindo a existência de diversas comédias marcantes. O que, obviamente, fez com que essa continuação fosse tão aguardada.

O resultado, felizmente, é de qualidade, e Debi e Loide 2 em nada se acovarda frente aos absurdos do original, e tampouco ultrapassa a tênue linha do hilário para o ofensivo, mantendo-se assim no mesmo equilíbrio que, em 1994, tinha dado o tempero essencial para criar um filme tão badalado.

A chave do sucesso consiste basicamente em como os personagens principais são construídos. Harry (Jeff Daniels) e Lloyd (Jim Carrey) são pessoas marcadas predominantemente pela inconveniência, vivendo em uma espécie de mundinho particular colorido. Os Farrelly, aliás, tem a inteligente decisão de não buscar ancorar esses personagens em um mundo que evoluiu desde o longa anterior, já que, para todos os sentidos, o tempo não passou para eles, e assim continuam vestindo as mesmas indumentárias um tanto patéticas de antes, e até mesmo seu visual (o cabelo de cuia juvenil de Lloyd e a descuidada juba de Harry) só alteraram no sentido de que agora fazem parte de um rosto enrugado. Por sinal, ver os rostos envelhecidos de Daniels e Carrey em personagens marcadamente infantis tem o duplo efeito de soar cômico e deprimente (e esse último aspecto é o mais engraçado de tudo).

Aproveitando que citei sua infantilidade, vale ressaltar que esse é um aspecto essencial para que o filme funcione, especialmente nas bases do humor negro. Assim como no primeiro filme, a ausência dessa característica muito provavelmente acarretaria em que as piadas que os dois fazem ao longo da projeção soassem apenas desrespeitosas. No entanto, os Farrelly conseguem que em nenhum momento estejamos rindo com eles, mas deles. Assim, quando tentam roubar um aparelho auditivo de um idoso, tiram sarro de um cego, ou mesmo riem do fato de encontrarem uma mulher doutora, o espectador inevitavelmente cai na gargalhada, mas por reconhecer que os idiotas em questão são os próprios protagonistas, que eles mesmos são as piadas. Além disso, essa infantilidade lhes dá um ar de inegável inocência, que nos leva até a perdoar essas gafes de bom senso. É interessante, por sinal, que os realizadores façam mais esforço em infantilizar Lloyd (o cabelo de cuia e o pijama azul com desenhos), dado ser este o responsável pelas mais grotescas piadas.

Com figuras que poderiam ser marcadas apenas pelo seu déficit intelectual, é admirável que tanto os atores quanto os diretores busquem diferenciá-los em particularidades. Assim, como já citado, Lloyd é mais agressivo, se acha esperto, ou melhor, ultra inteligente em suas pegadinhas e em todas as oportunidades que encontra para tirar vantagem sobre o seu amigo, se achando o máximo por seus feitos. Nesse sentido, Jim Carrey é extremamente feliz em suas caretas e boca estupidamente entreaberta, como se ressaltasse a hilária mediocridade da crença de superioridade de Lloyd. Já Harry é um sujeito inegavelmente mais tímido, ou talvez apenas esteja mais desligado do mundo real, e mantém um olhar cabisbaixo que pode se passar por tristeza, mas é apenas desconexão mesmo.

Vale ressaltar que os irmãos Farrelly continuam sendo exemplos de humor negro, e apresentam a mesma energia insana e a queda pelo que pode assustar os espectadores mais recatados que já tinham explorado em obras como Quem Vai Ficar Com Mary, Passe Livre e o citado Debi e Loide de 94. Logo, nem idosos são perdoados, piadinhas envolvendo testículos e fezes rolam soltas, e se uma cena pode soar trágica ou melancólica por envolverem pais que perderam seus filhos, logo os cineastas quebram o bom senso com uma piadinha inconveniente dos protagonistas ou mesmo com a imagem do falecido fumando maconha.

Debi e Loide 2, no entanto, é um esforço demasiado inferior ao anterior, em diversos sentidos. A começar pela própria trama, que repete a situação de conspiração que já permeava o filme de 94, além de apostar no esquema de um road movie basicamente por motivos de preguiça, já que essa parece ser a estrutura ideal para a ausência de estrutura. Além disso, se quando escrevi sobre Anjos da Lei 2 elogiei o fato do longa reconhecer que está repetindo o original e assim mesmo o fazer, como um estúpido (e hilário) ato de revolta, aqui os realizadores repetem diversos eventos do filme anterior, mas se às vezes é por homenagem, na maioria o que se vê é a notável falta de criatividade tão comum em continuações.

Em alguns aspectos, há que se reconhecer uma tentativa de inovação por parte dos Farrelly. A maior delas talvez seja o de não mais colocar Harry e Lloyd em um universo de pessoas “normais”, para assim contrastar as naturezas ainda mais com fins cômicos, mas agora colocá-los lado a lado de criaturas que parecem tão nonsense quanto eles. Se os potenciais cômicos de tal estratégia são imensos, infelizmente acabam funcionando apenas pontualmente, como na cena da velhinha excitada ou da conferência sobre matéria escura. Ainda, é bacana notar as parcas tentativas dos Farrelly de enriquecer um pouco o visual da narrativa, pelo menos em teoria, como a casa vazia dos protagonistas ou o ambiente lúgubre da residência dos pais de um falecido amigo de Harry e Lloyd, onde o único elemento colorido é uma colagem de fotos em homenagem ao filho.

E mesmo que o filme ainda perca diversos pontos pelas inchadas quase duas horas de duração, com um número notável de cenas que poderiam ter sido excluídas em prol de maior fluidez narrativa, Debi e Loide 2 é um ponto alto na carreira de cineastas que já provaram serem capazes de mais pontos altos do que parecem entregar.

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