Análise:
Interestelar (Interstellar / 2014 / EUA) dir. Christopher Nolan
por
Lucas Wagner
2001
– Uma Odisséia no Espaço, Contato e Gravidade iniciam
com uma visão do planeta Terra visto do espaço. Já Interestelar abre com a melancólica imagem de uma estante
empoeirada repleta de livros sendo gradualmente soterrados por poeira...
A comparação é
inevitável. Todos são filmes que não apenas apresentam um louvável embasamento
científico, mas que se utilizam de sua trama de ficção científica para promover
profundas reflexões acerca do Homem, sua finitude, complexidade, fraquezas e
também sua tenacidade. Mas enquanto os três primeiros começam diminuindo o ser
humano ao mostrar seu cárcere em um pálido ponto azul no Universo, o último
mistura melancolia e esperança quando mostra a chave para o futuro da
humanidade, que reside no conhecimento, sendo gradualmente consumida pelo fruto
da ignorância que tanto marca sua passagem por aqui. E é essencialmente sobre
isso que Christopher Nolan aqui tanto fala: esperança por uma espécie fadada à autodestruição
mas que tem na Ciência sua mais poderosa ferramenta para conseguir sobressair-se.
O citado embasamento
científico da obra consegue alicerçá-la em um universo temático perfeitamente realista,
onde até os mais absurdos dos eventos recebe uma explicação científica
palpável. É bacana ainda que esse embasamento se estenda, como os citados
filmes no primeiro parágrafo, à ausência de som no vácuo do espaço, com Nolan,
assim como Cuarón em Gravidade,
extraindo efeitos dramáticos desse recurso, dando mais impacto e angústia a uma
sequência de perseguição ou a uma explosão do que se as filmassem pelas vias
mais comuns, ou mesmo ao apenas permitir que sejamos engolfados pela imensidão do
Universo.
No entanto, o mais
gratificante é observar como Nolan não apenas apresenta conceitos científicos tão
fascinantes como wormwholes,
singularidade, relatividade, buracos negros, etc, como ainda explora a fundo
cada um, movendo a narrativa de modo que possa envolvê-los ao todo da trama,
intrincando-a gradualmente quanto mais esses conceitos se manifestam
fisicamente aos personagens. Aliás, é curioso como o filme nunca parece almejar
ser um espetáculo visual, mas apresente efeitos especiais perfeitamente
funcionais quanto aos objetivos de servir como veículos para as teorias que
explicitam visualmente.
Mais importante do que
esse embasamento, no entanto, é o claro respeito que Nolan tem pela Ciência e o
método científico, algo ressaltado pela educação que o protagonista, Cooper
(Matthew McGonaughey), procura dar a seus filhos, sempre buscando fazer com que
não aceitem as explicações mais óbvias para os eventos que lhes chamam a atenção,
mas investigá-los a fundo a partir de uma minuciosa coleta e análise de dados. Nesse
sentido, é notável como a Terra onde vivem os personagens é uma com particular
desprezo pela Ciência (como fica claro na cena no colégio), como se ela fosse
uma entidade maldosa separada de seus pesquisadores, e não uma rica ferramenta
que muitas vezes foi mal utilizada
pelo Homem. O que Cooper, claramente mais instruído, busca ressaltar, são as
possibilidades que são abertas pelo método científico, inclusive para o futuro
da espécie, e não o que esta, tão dotada de estupidez, já fez de errado usando
a Ciência. O filme, basicamente guiado pelo sentimento de esperança no
conhecimento, respeitando seus alcances, por isso só já merece aplausos.
Termos esses que acabam
por calcar Interestelar em uma
narrativa fundamentalmente racional, o que não significa que o filme não funcione
como drama humano. Aliás, é essencial que ele assim funcione. Dessa forma, é
importante como Nolan dedica um bom tempo para estabelecer as relações afetivas
e o companheirismo de Cooper com os filhos, algo vital para que seu arco
dramático, assim como o de seus filhos, surta os devidos efeitos. Mas o mais
rico nesse ponto da obra é quando o roteiro dos Nolan (Jonathan também trabalha
aqui) entrelaça os aspectos emocionais dos personagens com o comportamento
predominantemente racional que lhes é exigido enquanto cientistas. O choque
ganha perspectivas até mesmo de cunhos éticos e morais, e discussões envolvendo
a necessidade de uma postura objetiva mesmo quando profundos relacionamentos
afetivos estão em jogo nunca soam gratuitas, mas são desenvolvidas com adequada
sutileza, evitando qualquer tipo de resposta fácil.
A visão de Homem
apresentada por Interestelar, então,
é sempre justa, no sentido em que sabe dar-lhe devido valor sem exaltá-lo ao
ponto da ignorância. O que seria denominado “fraqueza” humana não é mais do que
sua necessidade de contato interpessoal, ou mesmo o Amor, algo que engrandece a
espécie ao mesmo tempo em que a leva a se dar um significado que, no “grande
esquema do Universo”, não existe. Um dos grandes trunfos do filme reside
justamente em sua capacidade de explorar como o ser humano, submetido a algumas
das mais fascinantes e indomáveis leis da Física, se comporta. E aqui entra
novamente o seu mérito na exploração dos conceitos que propõe: como seria a reação de uma pessoa ao ver um rosto humano depois de anos de isolamento
nos confins do Cosmo? Como seria saber que uma hora de sua vida, em determinado
ponto do Universo, representa sete anos na vida de uma pessoa que você tanto
ama? Não é a toa que o personagem Romilly se torne uma espécie de sombra de si
mesmo enquanto espera, por 23 anos, que seus companheiros retornem de uma
viagem que não chega a durar uma hora.
O caso é que o ser
humano é uma criatura infinitamente minúscula que tem a arrogância de achar-se
importante no Universo. E não é importante. Evidência disso é que, por mais que tenha
sorrido, amado, chorado, o que quer que seja, por uma pessoa amada, esse amor não
passará pelo crivo de uma lei científica. Pelo contrário: abrir mão da
objetividade em prol dos sentimentos pode ser sua ruína, turvando seus horizontes
de um modo que possa se convencer da validade de um argumento irracional, vide
a discussão entre Cooper e Amelia (Anne Hathaway) em certo ponto. A Razão pode
ser facilmente obliterada pela mera necessidade de contato com outra ou (em
caso extremos) qualquer pessoa, sendo apenas um dos elementos dos quais,
vendo-se privado, faz o ser humano perder a sanidade.
Mas nem sempre é assim.
Na verdade, pode ser diferente. Interestelar
é, afinal, uma obra de esperança. Como salienta o personagem de Dr. Mann
(Matt Damon), é justamente a intensidade emocional que trás a figura de um
rosto amado que pode servir de estimulação necessária a feitos incríveis. Pois
podemos ser egoístas e mesquinhos, além de arrogantes, mas também somos capazes
de sobrepor-nos a nós mesmos e encaramos as tais leis da Física, submetermo-nos
a excruciantes provas em prol de atos que nem sempre se referem a nós mesmos ou
mesmo àqueles mais próximos de nós. As possibilidades de alcançarmos um status de “seres de cinco dimensões”
residem justamente na Ciência e em seu uso adequado, o que não vem sem
sacrifícios, e talvez não exista outra espécie com alguma tenacidade capaz
disso, além do Homem.
Chega a ser sintomático
que Interestelar adquira uma
perspectiva de Odisséia em seu cerne, no sentido de ser uma jornada
exterior que, a partir de certo ponto, se torna interior, intimista. Assim como
o astronauta Bowman em 2001 alcança o
infinito apenas para encontrar a si mesmo, Cooper atravessa buracos negros
para, no fim das contas, encontrar um sistema ordenado que o moverá
intimamente, pois de outra forma não poderia, jamais, fazer o que deve fazer
para salvar a humanidade de seu declínio final. E nesse esquema, Cooper é um
protagonista nolaniano por excelência,
no sentido em que é marcado por um comportamento obsessivo. Só que dessa vez,
diferente de outros trabalhos do cineasta, sua obsessão é pelo conhecimento e
pelo afeto que sente, tornando-o uma figura humana, demasiado humana, em suas contradições
e complexidades, por mais que nunca deixe de ser racional. McGonaughey entrega,
então, uma performance essencial para o sucesso do filme, já que sem a
intensidade sutil com que demonstra o amor de Cooper pelos filhos, sua admiração
pela Ciência, e seus próprios desesperos ontológicos ao se submeter ao Cosmo,
provavelmente seu personagem não seria tão comovente.
Aliás, não só
McGonaughey brilha, mas todo o elenco, construindo personagens tão tridimensionais
quanto possível. Hathaway faz de Amelie uma figura forte, mas melancólica pelos
sentimentos que mal consegue esconder. Jessica Chastain trás intensidade à
amargura de Murphy, assim como concretude para seus ambíguos sentimentos em relação
ao pai. Matt Damon tem sua melhor performance em anos. Michael Caine cria Dr.
Brann como uma figura extremamente trágica nos riscos que assume, onde a implacabilidade
da realidade há muito o impediu de sonhar. Já David Gyassi, como o citado
Romilly, amassa qualquer um com seu olhar desconsolado.
Também é belo notar
como, depois de três filmes bombásticos que lhe proporcionaram uma fama de
diretor de ação, Christopher Nolan se embrenhe em uma obra de quase três horas
de duração e sem qualquer sobressalto, mas guiada com constante melancolia,
algo refletido por uma linda trilha instrumental de Hans Zimmer, que também
corta os efusivos temas de suas outras parcerias com o diretor para aqui emular
sentimentos de solidão e também de mistério, chegando até mesmo a lembrar John
Williams. Ainda assim, o longa não carece de sequências intensas, e Nolan mais
uma vez revela-se um primor ao coadunar eventos em espaço-tempos diferentes,
formando uma montagem dialética construída com cuidado e melhor analisada com
mais visitas ao longa. Além disso, se o diretor ficou conhecido por suas tramas
bem amarradas, Interestelar é
constituído de pistas que, inteligentemente, são plantadas ainda no início do
filme para construir significados complexos com o decorrer da projeção, fazendo
um uso excepcional de uma temática que envolve realidades cósmicas tão diversas.
Obra que certamente
crescerá com o tempo, Interestelar é
uma ficção científica que emula romances de nomes como Isaac Asimov e Arthur C.
Clarke, ambos do século XX, e alguns dos maiores gênios do gênero. Só que, ao
invés do medo do século passado onde a Ciência tinha demonstrado capacidades
assustadoras de destruição, aqui vemos a esperança colocada nela de único
veículo de salvação de uma espécie repleta de possibilidades, mas inerentemente
minúscula.
- Outros textos meus sobre filmes de Christopher Nolan:
Nenhum comentário:
Postar um comentário