Análise:
Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive / 2014 / Alemanha, França, EUA, Reino Unido)
dir. Jim Jarmush
por
Lucas Wagner
Apesar da febre de
vampiros iniciada com Crepúsculo ter
conseguido banalizar esses seres, ainda pode-se dizer que são criaturas
fascinantes para quem sabe explorá-las bem. O peso da imortalidade, sua
natureza ambígua e o inerente erotismo de sua condição podem gerar não apenas
narrativas interessantes por si só, como ainda permitem intrigantes explorações
metafóricas. No cinema, alguns filmes recentes fizeram um bom trabalho com essa
temática, dentre os quais se destacam Deixe
Ela Entrar (e sua refilmagem), Sede
de Sangue e agora esse Amantes Eternos,
cujos objetivos passam longe da visão clássica de terror do vampiro, e adota
uma na qual essas criaturas assumem uma posição de “quintessência do pó”.
Escrito e dirigido pelo
cultuado Jim Jarmush, o longa acompanha o melancólico cotidiano dos amantes do
título, o casal de vampiros Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton), que
vivem em continentes diferentes mas sempre buscam se reencontrar.
Com seu habitual
fetiche por planos com slow motion acompanhados
de uma música de rock independente,
Jarmush faz um trabalho invejável na criação da atmosfera da obra, aspecto pelo
qual, por si só, já permite que funcione bem. Composto apenas de sequências
noturnas, de madrugada, Amantes Eternos ganha
um tom quase apocalíptico em suas ruas desertas e silêncio de um mundo que
dorme, ressaltando um caráter de solidão que reflete a própria existência de
seus isolados personagens. Esse aspecto apocalíptico diz respeito ainda à
temática da obra, que visa explorar seres que, justamente por terem vivido
tanto tempo e enxergado diversos “estágios” da Humanidade, os ápices de seu
brilhantismo e o abismo de sua estupidez, evoluíram a ponto de serem, como já
referido, uma espécie de quintessência do pó, uma formação existencialmente
madura mas, justamente por isso, ontologicamente ferida. Eles acabam se
tornando, no fim das contas, verdadeiros Adão e Eva, desta vez não precursores
do mundo, mas sim observadores atentos de seu fim.
Assim, o vampiro Adam
revela-se como um personagem que carrega toda a dor do mundo, algo que visa
traduzir através de sua relação com a música. Figura predominantemente
deprimida, lamenta profundamente a degradação da Humanidade, e se refere aos
mortais sempre como zumbis, revelando seu desprezo pela espécie que destruiu
seus melhores elementos, que variam de Edgar Allan Poe e Mark Twain a Galileu e
Charles Darwin. Ainda assim, justamente pela existência de figuras como essas,
Adam é capaz de se comover com a espécie, e por enxergar esses parcos sinais de
brilhantismo, lamenta mais profundamente que esta tenha se degradado tanto.
Eve revela-se seu
perfeito oposto, algo expresso inclusive no figurino. Mantendo uma certa
melancolia latente, a vampira nunca parece deixar que a decadência ao seu redor
a afete como a Adam, e encontra conforto na poesia, na dança, e nos esparsos
sinais de beleza que podem ser encontrados no mundo. Aliás, chega a ser cômico
que ela pareça fazer um esforço para tirar algo de bom da obviamente
desagradável presença da irmã, Ava (Mia Wasikowska), figura que representa a
decadência dos vazios tempos modernos. Para a construção da personagem, Tilda
Swinton ilustra com seu habitual talento a natureza poética e um tanto otimista
de Eve sem camuflar sua citada melancolia, ainda evidenciando um ótimo olhar
para detalhes de composição, como nos leves e carinhosos tapas que dá em Adam
para acalmá-lo em uma boate.
Visualmente, o filme
faz um trabalho impecável na exploração dessa oposição ontológica entre esses
personagens, e não apenas no figurino. O design
de produção se mostra, assim, impecável, em especial por evidenciar
particularidades daqueles seres, além de sua oposição. A casa de Adam é uma
expressão do apego do personagem ao passado, num amontoamento de vinis,
televisores antigos e instrumentos musicais, sem contar a espécie de altar que
ergueu para os seus “ídolos”. Já a casa de Eve é francamente uma bagunça
também, além de essencialmente sombria, porém evidencia-se seu apego à
literatura nos livros que mantém espalhados pelo apartamento (seu sorriso
juvenil ao encontrar um específico é uma graça) além de sua cama, ao estilo
romântico de séculos passados, passar uma expressão clara de poesia decadente
(mas bela). A localização geográfica de sua casa, por sinal, já faz muito pelo
valor simbólico de existir basicamente afastada da população nos confins de uma
quase favela. Além disso, é de valioso pragmatismo o primeiro contato entre
Adam e Eve no longa, através dos telefones que, sendo o dela um iPhone e o dele
um desajeitado e antigo telefone com fio, estabelecem bem os parâmetros de suas
personalidade.
Se divertindo com o
tema da imortalidade ao colocar seus personagens para comentar com
familiaridade a convivência com figuras históricas como Shakespeare e Shubbert,
e ainda demonstrando inteligência na ambientação geográfica, em especial por
ter a economicamente devastada Detroit como ambiente majoritário, Jim Jarmush
consegue fazer de Amantes Eternos um
lamento do degradante estado atual da Humanidade, sob a ótica de seres que, por
mais que se comovam com vislumbres de beleza como o canto solitário de uma
mulher na madrugada, carregam a dor de serem a quintessência desse pó, e a
ironia de carecer do sangue da vida de jovens amantes ardendo de paixão para
continuarem, eles mesmos, existindo.
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