sábado, 30 de agosto de 2014


Análise:

Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive / 2014 / Alemanha, França, EUA, Reino Unido) dir. Jim Jarmush

por Lucas Wagner

Apesar da febre de vampiros iniciada com Crepúsculo ter conseguido banalizar esses seres, ainda pode-se dizer que são criaturas fascinantes para quem sabe explorá-las bem. O peso da imortalidade, sua natureza ambígua e o inerente erotismo de sua condição podem gerar não apenas narrativas interessantes por si só, como ainda permitem intrigantes explorações metafóricas. No cinema, alguns filmes recentes fizeram um bom trabalho com essa temática, dentre os quais se destacam Deixe Ela Entrar (e sua refilmagem), Sede de Sangue e agora esse Amantes Eternos, cujos objetivos passam longe da visão clássica de terror do vampiro, e adota uma na qual essas criaturas assumem uma posição de “quintessência do pó”.

Escrito e dirigido pelo cultuado Jim Jarmush, o longa acompanha o melancólico cotidiano dos amantes do título, o casal de vampiros Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton), que vivem em continentes diferentes mas sempre buscam se reencontrar.

Com seu habitual fetiche por planos com slow motion acompanhados de uma música de rock independente, Jarmush faz um trabalho invejável na criação da atmosfera da obra, aspecto pelo qual, por si só, já permite que funcione bem. Composto apenas de sequências noturnas, de madrugada, Amantes Eternos ganha um tom quase apocalíptico em suas ruas desertas e silêncio de um mundo que dorme, ressaltando um caráter de solidão que reflete a própria existência de seus isolados personagens. Esse aspecto apocalíptico diz respeito ainda à temática da obra, que visa explorar seres que, justamente por terem vivido tanto tempo e enxergado diversos “estágios” da Humanidade, os ápices de seu brilhantismo e o abismo de sua estupidez, evoluíram a ponto de serem, como já referido, uma espécie de quintessência do pó, uma formação existencialmente madura mas, justamente por isso, ontologicamente ferida. Eles acabam se tornando, no fim das contas, verdadeiros Adão e Eva, desta vez não precursores do mundo, mas sim observadores atentos de seu fim.

Assim, o vampiro Adam revela-se como um personagem que carrega toda a dor do mundo, algo que visa traduzir através de sua relação com a música. Figura predominantemente deprimida, lamenta profundamente a degradação da Humanidade, e se refere aos mortais sempre como zumbis, revelando seu desprezo pela espécie que destruiu seus melhores elementos, que variam de Edgar Allan Poe e Mark Twain a Galileu e Charles Darwin. Ainda assim, justamente pela existência de figuras como essas, Adam é capaz de se comover com a espécie, e por enxergar esses parcos sinais de brilhantismo, lamenta mais profundamente que esta tenha se degradado tanto.

Eve revela-se seu perfeito oposto, algo expresso inclusive no figurino. Mantendo uma certa melancolia latente, a vampira nunca parece deixar que a decadência ao seu redor a afete como a Adam, e encontra conforto na poesia, na dança, e nos esparsos sinais de beleza que podem ser encontrados no mundo. Aliás, chega a ser cômico que ela pareça fazer um esforço para tirar algo de bom da obviamente desagradável presença da irmã, Ava (Mia Wasikowska), figura que representa a decadência dos vazios tempos modernos. Para a construção da personagem, Tilda Swinton ilustra com seu habitual talento a natureza poética e um tanto otimista de Eve sem camuflar sua citada melancolia, ainda evidenciando um ótimo olhar para detalhes de composição, como nos leves e carinhosos tapas que dá em Adam para acalmá-lo em uma boate.

Visualmente, o filme faz um trabalho impecável na exploração dessa oposição ontológica entre esses personagens, e não apenas no figurino. O design de produção se mostra, assim, impecável, em especial por evidenciar particularidades daqueles seres, além de sua oposição. A casa de Adam é uma expressão do apego do personagem ao passado, num amontoamento de vinis, televisores antigos e instrumentos musicais, sem contar a espécie de altar que ergueu para os seus “ídolos”. Já a casa de Eve é francamente uma bagunça também, além de essencialmente sombria, porém evidencia-se seu apego à literatura nos livros que mantém espalhados pelo apartamento (seu sorriso juvenil ao encontrar um específico é uma graça) além de sua cama, ao estilo romântico de séculos passados, passar uma expressão clara de poesia decadente (mas bela). A localização geográfica de sua casa, por sinal, já faz muito pelo valor simbólico de existir basicamente afastada da população nos confins de uma quase favela. Além disso, é de valioso pragmatismo o primeiro contato entre Adam e Eve no longa, através dos telefones que, sendo o dela um iPhone e o dele um desajeitado e antigo telefone com fio, estabelecem bem os parâmetros de suas personalidade.

Se divertindo com o tema da imortalidade ao colocar seus personagens para comentar com familiaridade a convivência com figuras históricas como Shakespeare e Shubbert, e ainda demonstrando inteligência na ambientação geográfica, em especial por ter a economicamente devastada Detroit como ambiente majoritário, Jim Jarmush consegue fazer de Amantes Eternos um lamento do degradante estado atual da Humanidade, sob a ótica de seres que, por mais que se comovam com vislumbres de beleza como o canto solitário de uma mulher na madrugada, carregam a dor de serem a quintessência desse pó, e a ironia de carecer do sangue da vida de jovens amantes ardendo de paixão para continuarem, eles mesmos, existindo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário