Análise:
Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa (Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa /
2014 / Brasil) dir. Gustavo Galvão
por
Lucas Wagner
Aos 38 anos de idade, o
cineasta Gustavo Galvão demonstra nesse seu filme, Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa, ser um homem, acima de tudo, envelhecido. Reparem que não disse
maduro. Ser maduro vai além de enxergar com clareza as desgraças do mundo e a
falta de sentido da vida. Ser uma pessoa envelhecida significa algo mais
próximo de ter essa clareza de visão, porém não enxergando algo além dela, as
belezas inerentes da vida e do viver. Isso não impede que se aprecie a
inteligência da visão de Galvão nesse seu trabalho, que, num cinismo e niilismo
palpáveis, entrega uma obra racional quanto às suas perspectivas.
Escrito por Galvão ao lado
de Cristiane Oliveira e Bernardo Scartezini, o filme narra a história de Pedro
(Vinícius Ferreira), homem de aparente meia idade que larga toda sua vida em
Brasília para pegar a estrada, usando nada além da roupa do corpo. No caminho,
conhece Lucas (Marat Descartes), homem mais velho cuja vida sem qualquer rumo
constitui para si uma fonte de alegria. Juntos, passam a buscar experiências
caóticas e intensas.
Começando a narrativa in media res (no meio da ação), Galvão
demonstra já sua perspicácia e domínio de conteúdo ao, posteriormente, nos
surpreender apresentando uma estrutura circular que muito diz sobre os
personagens e a temática da obra. Pois, apesar da sinopse passar uma impressão de
possuir um cunho carpe diem, a visão
que Galvão tem desse universo passa muito longe. Como a dissonante trilha de
cordas de Ivo Perelman constantemente busca ressaltar ao atribuir uma atmosfera
expressionista ao filme, ou ainda como a fotografia estourada e crua de André
Carvalheira também procura, Uma Dose
Violenta... se passa num mundo evidentemente aversivo e desconfortável, não
importa se estamos vendo cenas em Brasília ou em ambientes de um submundo à
beira de estrada.
A começar por aquele
universo criado para representar Brasília e seus habitantes. Carvalheira mais
uma vez acerta nas imagens assépticas que usa na cidade, representando uma ideia
de conformidade nos ambientes cinzas e impessoais, com uma notável falta de emoção
e cor que nos permite compreender porque Pedro quis tanto escapar de lá. Longe
do ideal de uma vida controlada e satisfatória, essas pessoas típicas de classe
média lá vivem com um cenho constantemente franzido e sorrisos, quando existem,
enferrujados. A própria falta de sentido dessas vidas fica clara pelo mormaço
evidente na relação de Pedro e a irmã, a quem é afirmado, em certo momento, que
antes do desaparecimento do irmão, os dois basicamente não tinham relação alguma.
O próprio caos que geralmente guia os sentimentos cotidianos, impedindo os mais
inteligentes de nós de fazer sentido concreto dos acontecimentos, fica ainda
mostrado na melancolia da falta de resposta da ex-namorada (ou esposa) de Pedro
quando indagada por que os dois separaram, se antes se davam tão bem. Num universo
como esse, é compreensível que Pedro não tenha se sentido seguro para explorar
seus potenciais poéticos ou ao menos expô-los ao seu meio social, e assim
pareça tão surpreendente para seus parentes que o rapaz ao menos se
interessasse pela arte.
E se mesmo aquelas
pessoas basicamente entorpecidas pela religião e outras drogas mais aceitas
socialmente (como a família) não hesitam em buscar nos braços de um completo
desconhecido um pedacinho de conforto para um profundo desamparo, seria ao
menos lógico que a filosofia libertina e sem grilhões de Lucas soasse como água
gelada no deserto. Mas o mais interessante é que a visão que Galvão apresenta
desse homem passa muito distante da idealização, e se aproxima do completo
oposto, e assim não é surpreendente que ele passe a funcionar quase como uma
figura mefistotélica ao longo da projeção,
levando ainda à inegável comparação de que tanto o nome Lúcifer como Lucas
possuem a palavra luz em suas
origens, e já podemos tirar disso interessantes reflexões, principalmente se
lembrarmos que Lúcifer, sendo “cheio de luz”, levou para as trevas aqueles que
o seguiram, não é verdade?
Desde sua primeira aparição,
Lucas é visto como uma espécie decadente do inesquecível Dean Moriarty (ou Neal
Cassady) do livro On The Road, já que
sua poética fala para impressionar duas ninfetas se torna intrigante em
especial por, por trás dos óculos escuros e da jaqueta de couro, apresentar um
sujeito calvo, com barba mal feita e grisalha, além de uma barriga de chopp
insipiente e um rosto envelhecido. É perceptível o quanto o tempo passou para
esse cara, algo para o qual ele não liga, e continua agindo de maneira
desenfreada e egoísta, não possuindo paciência para “cu doce” de garotas
frescas e nem ao menos ligando se um companheiro está abrindo seu coração, pois
para ele isso não importa, e todas as “incríveis histórias de vida” que cada
indivíduo tem a apresentar já se tornaram intragáveis clichês auto-condescendentes
na esmagadora maioria dos casos, envolvendo pessoas que trilharam caminhos já
estabelecidos e no meio deles perceberam a besteira que fizeram.
Há nessa visão muita
sabedoria, por trás da arrogância egoísta. Mas, longe de ser uma fonte de inspiração
ou muito menos de luz, como seu nome parece querer apontar, Lucas é uma força
destrutiva e extremamente pueril, que um olhar impressionável pode levar aos
extremos da genialidade ou da demência. O caso é que ele não faz parte de
nenhum dos dois, e seu comportamento infantil constantemente é ressaltado pelo
sempre talentoso Marat Descartes (um dos mais interessantes atores do Brasil)
que chega mesmo a introduzir falhas na voz típicas de um pré-adolescente
exaltado. Sua mudança de rumo constante cola bem com seus belos discursos sobre
sentir a vida com a intensidade devida, mas observar seu comportamento
naturalmente desperta certas dúvidas na cabeça do espectador, que começa a se
questionar o que, afinal, há de tão genial assim naquela figura.
A visão de Galvão não poderia
ser deixada mais clara do que em momentos como aquele Lucas é enfocado em um
longo plano enquanto entorpecido em um corredor de um hotel decadente. E assim,
a confusão ontológica em que se encontra Pedro se torna cada vez mais complexa,
pois é um sujeito inteligente e racional que percebe a falta de sentido
essencial em cada um dos estilos de vida com que se depara, chegando ao ponto
de fazer da falta de opnião concreta sobre aquele universo um espelho para o
estado de desconexão de si mesmo em que vive.
Passando longe de conclusões
fáceis acerca das complexas questões que propõe (que, em essência, se referem à
busca de um sentido para vida), Uma Dose
Violenta de Qualquer Coisa descarta o carpe
diem e a noção de conforto familiar, e logo joga o espectador no caos de
uma questão complexa demais para ser reduzido a um simples "viva e deixe
viver”.
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