quinta-feira, 31 de julho de 2014


Análise:

Guardiões da Galáxia (Guardians of the Galaxy / 2014 / EUA) dir. James Gunn

por Lucas Wagner

Infelizmente, desde que a Marvel assumiu o papel de produtora de seus projetos o nível de suas adaptações decaiu monstruosamente, conseguindo apenas dois resultados realmente admiráveis (Homem de Ferro e Incrível Hulk) e o resto, incluindo Os Vingadores, podendo, quando muito, ser classificados apenas como “tragáveis”. Aliás, os dois únicos grandes filmes da Marvel desde 2009 (X-Men Primeira Classe e X-Men Dias de Um Futuro Esquecido) nem mesmo pertencem a ela como estúdio, já que não é detentora dos direitos sobre os projetos e, portanto, não puderam meter o bedelho e forçar uma ligação com o universo dos Vingadores.

E é por isso que Guardiões da Galáxia se destaca, já que, apesar dos rumores envolvendo a mistura de seu universo com o dos Vingadores, se revela um filme que se sustenta por si, antes de buscar misturar sua mitologia com os demais, o que talvez, por isso mesmo, torne essa mistura muito mais interessante. E mais: esse longa dirigido por James Gunn ganha pontos por fugir da tendência criada para os filmes de super-heróis pós-Batman de Christopher Nolan, que dita que, para que funcione, essas adaptações devem possuir uma atmosfera sombria e densa. Aqui é justamente o contrário, e o que vemos é uma obra divertida e bem produzida, que jamais se leva demasiado a sério, o que é um grande acerto.

Estabelecendo o humor como alicerce, o longa logo no início esclarece bem qual é a da narrativa, apresentando o seu protagonista quando adulto, Peter Quill (Chris Pratt), em um ambiente assustador e misterioso, em grandes ruínas de um planeta escuro, apenas para “quebrar esse clima” quando o rapaz coloca seus fones de ouvido e, ao som de “Come And Get Your Love”, de Redbone, passa tranquilamente pelos obstáculos, dançando feliz e empolgado. E justamente por momentos como esse, que não se levam a sério, é fácil que o espectador aceite bem e consiga se divertir com a fantasia descompromissada que assiste, já que o humor funciona na maioria das vezes e, como “filme de ação”, o longa também se sustenta competentemente, com sequências que, mesmo não sendo geniais, são divertidas o suficientes para funcionar.

Mas, mesmo se sustentando bem, é inegável que o ponto mais fraco do filme consiste no fato de que o universo mitológico onde acontece é simplesmente desinteressante, ainda mais quando podemos citar exemplos similares, porém geniais nesse aspecto como Mass Efect, Star Trek e Star Wars. Não há nada muito criativo ou minimamente original na mitologia de Guardiões da Galáxia (nunca li os quadrinhos) e, mesmo o design de produção de Charles Wood decepciona pela falta de criatividade nos cenários, que parecem variar sempre em tipos diferentes de lugares bagunçados e desconfortáveis, mudando isso apenas na capital intergalática e na nave do vilão, que também são enfadonhos ao servirem apenas para seus óbvios objetivos. Eventualmente, no entanto, surge algo interessante, como a cabeça de um extinto ser celestial que serve de base para Knowhere.

No entanto, o diretor James Gunn acerta não apenas nas sequências de ação ou em sustentar bem a atmosfera da obra, mas também ao conceber quadros de grande beleza estética, reforçando o caráter de fantasia mitológica da obra, usando sempre imagens de nebulosas de diversas cores, expressando muito bem idéias centrais de cada cena, como na nebulosa vermelha que, em certo momento, fica às costas do vilão, ou ainda numa importante cena envolvendo Gamorra (Zoe Saldana), cuja pele verde é refletida na nebulosa de mesma cor. Cenas como a teia formada por naves, no clímax, ou a conversa entre Peter Quill e Gamorra em uma varanda dando para uma belíssima formação celestial são ainda provas contundentes do talento estético de Gunn, algo ainda mais admirável quando ele se mostra capaz, mesmo raramente, de produzir quadros de uma sutileza de tirar o fôlego, como o que mostra Quill enquanto criança sentado em um lúgubre corredor de hospital.

Acima de qualquer qualidade, no entanto, o que faz de Guardiões da Galáxia um filme realmente muito bom é o quinteto do título. De moralidade dúbia, parecendo extrair uma espécie de divertimento meio psicopata das brigas e matanças, esses cinco são figuras que conseguem atrair o espectador qual um ímã, em especial pelo fato de, mesmo com essas características, conseguirem ser imensamente divertidos e até mesmo tocantes. Peter Quill, por exemplo, na pele do excelente Chris Pratt, se revela um protagonista à lá Indiana Jones já que, charmoso e irreverente, parece nunca ter um plano para seguir, agindo por impulso e improvisando no caminho, chateando-se por nunca ser reconhecido como um “criminoso de respeito”, mas também, mesmo desconfiado do bom coração dos outros, parece ser ele mesmo um excelente ser humano, algo que o choca a ponto de só conseguir expressar isso de forma tão infantil que, na voz de um adulto, parece apenas um sujeito tentando se engrandecer, o que não é verdade. E essa dubiedade entre o heroísmo/companheirismo e a desconfiança tem muito de seus alicerces nos eventos de sua infância envolvendo sua mãe, algo representado, entre outras coisas, pelo seu apego a um antigo walkmen e uma fita gravada por ela, o que promove a bela forma como os realizadores encontraram de fechar o arco dramático do personagem.

Um passado traumático não é apenas característica formadora de Quill, mas faz parte de seus colegas, afetando Gamorra numa dimensão trágica e sombria, enquanto Drax (Dave Bautista) é um brutamontes que usa a raiva para consolar sua tristeza, mas que nunca deixa de ser imensamente divertido na sua psicopatia de sempre achar o máximo matar um monte de gente, e ainda consegue arrancar sinceras gargalhadas de sua incapacidade de entender metáforas. Já Groot (Vin Diesel) comove pela doçura, seus enormes e lacrimosos olhos, e mesmo sendo implacável numa briga, nunca, nunca mesmo, falha em deixar o espectador absolutamente encantado com sua existência (e as pequenas esferas luminosas que solta em certos momentos promove outro belo exemplo do talento estético de Gunn).

Mas é mesmo o guaxinim Rocket que rouba o filme inteiro: dublado com imenso talento por Bradley Cooper, o bicho é fascinante no seu tom sarcástico e irônico, atitudes que escondem um claro complexo de inferioridade, que só dá as caras quando ele se encontra bêbado. Esse seu complexo, aliás, nunca o amolece ao ponto de ser melodramático, e é mesmo seu materialismo extremo e egoísmo constante que se fazem valer o tempo todo, chegando no ápice ao sugerir ideias extremamente maldosas apenas porque são engraçadas. Além disso, os efeitos visuais que o criam são irrepreensíveis, tanto pelo nível de detalhes naturalistas (com destaque para as cicatrizes de experimentos nas suas costas), quanto por detalhes mais psicológicos, como a boca sempre com dentes arreganhados, expressando seu lado monstruoso, e também por comoventes e singelos momentos como aquele em que, imerso em pensamentos, logo se torna fisicamente arisco ao sentir o toque de uma mão, num comportamento reflexo que reforça o quão aversivo lhe é o contato interpessoal, algo que tem a ver com sua natureza deformada que sucinta constante gozação, tanto reais quanto delirantes (o bicho é claramente paranóico).

Conseguindo passar de forma competente uma mensagem piegas, porém bonita, reforçando o valor do companheirismo, Guardiões da Galáxia é mais um exemplo de blockbuster de qualidade lançado em um ano que, em sete meses, surpreendeu mais do que o comum com esse tipo de filme, se juntando assim a uma bela lista que inclui O Planeta dos Macacos: O Confronto, Robocop, No Limite do Amanhã e, é claro, X-Men Dias de Um Futuro Esquecido, que nos fazem esquecer de bobagens como Transformers: A Era da Extinção, Godzilla e O Espetacular Homem Aranha 2.


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