Análise:
O Duplo (The Double / 2014 / Reino Unido) dir. Richard Ayoad
por
Lucas Wagner
Ladrilhando o caminho
para obras literárias como Clube da Luta,
O Homem Duplicado e Os Filhos de Anansi, o romance O Duplo, escrito em 1846, representa uma
primeira tentativa de aprofundar na psicologia de um personagem criando uma
imagem sua detentora de predicados desejados pelo protagonista. O dono de tal
façanha foi um jovem e já brilhante Fiódor Dostoiévski, estabelecendo com esse
seu segundo romance a temática central de toda sua obra: o homem do subsolo. Acima
disso, a obra em questão foi ganhando admiração com o tempo, em vista do experimentalismo
formal proposto pelo mestre que, longe de ser apenas linguisticamente curioso,
enriquecia o livro ao permitir uma complicada leitura do “interior” do protagonista,
o miserável Sr. Golyádkin (nome que significa “completamente nu”, em russo).
Assim, percebe-se o
tamanho da responsabilidade que o comediante Richard Ayoad adquiriu ao ousar
dirigir e co-roteirizar o projeto. E o melhor é que ele não faz feio, e cria
uma obra que, salvo algumas ressalvas, é intrigante e faz jus à complexidade do
livro. E desde o princípio é de se admirar a adaptação da história russa a um
contexto inglês sem gastar a bizarrice da trama, não fazendo alterações muito
drásticas: aqui, Golyádkin é Simon James (Jesse Eisenberg), um funcionário
esforçado mas constantemente reprimido e tratado como uma “não-pessoa”, a não
ser pela sua paixão platônica Hannah (Mi Wasinkowska) que, bem, o trata como
uma “quase-pessoa”. O mundo do jovem muda quando um novo funcionário chega à
sua empresa, com uma aparência idêntica à sua e de nome James Simon (Eisenberg
também). Inicialmente amigos, a situação se desestrutura quando sua “cópia”
começa a ganhar sucesso em qualquer aspecto da vida roubando idéias e projetos
do protagonista.
Reconhecendo o estilo
alucinado que Dostoiévski empregou ao livro, Ayoad aproveita a chance de, numa
mistura de David Cronenberg e Terry Gilliam, fazer de O Duplo um filme pautado num tom expressionista, que constantemente
realça a melancolia daquele universo sem, no entanto, ignorar todos os
potenciais cômicos que ali existem. E assim, Ayoad cria um filme agridoce em
seu tom, e se constantemente rimos ao longo da projeção não é nem sempre por
vermos algo muito engraçado, mas que na verdade é por demais absurdo e grotesco,
um universo habitado por figuras alienadas que, diferentes do protagonista, são
verdadeiras “não-pessoas”.
Assim, a fotografia
árida em tons amarelados de Erik Wilson divide a tela inteligentemente com
cores que, aqui e ali, tem um caráter mais forte, como o azul que tanto diz
sobre Hannah (blue – triste),
realçando assim tanto potenciais de vida naquele universo como permitindo que
percebamos mais o caráter farsesco e cômico de toda a obra, algo que ainda é
realçado pela decisão de Ayoad ao rechear o longa com um elenco repleto de
comediantes. E nessa perspectiva ainda, o design
de produção de David Crank é ideal ao conferir uma atmosfera digna de Brazil ao projeto, criando ambientes
claustrofóbicos mas inerentemente bizarros, com uma tecnologia que impede
inserir O Duplo em qualquer período
do tempo, já que seus computadores fictícios e programas de Tv oitentistas
podem até sugerir, mas nunca definem se o que estamos vendo ao menos acontece
em um período histórico real ou faz parte de um universo paralelo, sendo essa
última proposta a mais provável.
Ayoad demonstra boa
compreensão da obra de Dostoiévski ao deixar claro que, mesmo que o
protagonista seja inegavelmente portador de alguma espécie de psicopatologia, é
na verdade o mundo que habita que está doente, sendo os distúrbios psicológicos
de Golyádkin/Simon reflexos de uma sociedade deturpada. Se prestarmos bem atenção,
o que faz de Simon um “louco”? Na verdade, ele é constantemente desconfirmado
pelo meio em que vive, sendo injustamente agredido enquanto parece tentar fazer
alguma diferença nem que seja em seu trabalho, e ainda sendo chamado de “decepcionante”,
ou até mesmo de, como já dito, uma “não-pessoa”, algo que a solidão em que vive
só serve como amplificador de sua dor (percebam a constante falta de mensagens
em seu telefone). É natural que o rapaz tenha desenvolvido uma espécie de
desamparo aprendido, que basicamente o impede de se comportar em seu meio,
adotando uma postura cada vez mais passiva em que chega a pontos tocantes e
preocupantes como ao descartar uma carta melancolicamente bela por uma mais
sintética. Afinal, quem iria se interessar na dor da escrita de uma “não-pessoa”?
James Simon é bem o
oposto: extrovertido a ponto de ser arrogante, ele não apresenta o menor pudor
ou mesmo consideração pelos outros quando se trata de conseguir o que quer. Tal
postura parece torná-lo bem sucedido. Mas será que ele é mesmo tudo isso ou
estamos vendo uma alucinação de Simon? Aposto minhas fichas na segunda opção, e
a criação dessa imagem que é James evidencia suas raízes no belo monólogo que
Simon diz em certo momento, em que chega a comentar, com lágrimas nos olhos,
que não parece estar em seu próprio corpo durante a maior parte do tempo, e que
alguém poderia facilmente trespassar sua mão pelo seu corpo, sem ao menos notar
ali um obstáculo físico. James faz exatamente as mesmas coisas que Simon, mas
mesmo naquele universo estagnado onde ninguém pode galgar degráus a mais na
sociedade, ele consegue ser bem sucedido e querido por todos. Mas como consegue
isso? Acho que a melhor pergunta seria: será
que ele consegue? O mais provável é que James seja fruto da uma profunda
ruptura egoica de Simon, numa culpa mal dirigida por uma sociedade impiedosa,
de que ele (Simon) é o culpado por seu próprio fracasso, ele não pode ser bem sucedido em nada, ele é miserável. Enquanto a realidade é
bem diversa: ele é fruto de seu meio, e nunca deixa de ser imensamente triste
perceber essa auto-imolação, principalmente por percebermos suas constantes
tentativas. James é o Brad Pitt do Edward Norton que é Simon.
Mas é bem aqui também
que o longa evidencia seu ponto fraco se comparado ao livro. Dostoiévski criou
em O Duplo uma narrativa de cunho
psicológico que funcionava como uma severa crítica à sociedade russa de então,
estagnada por uma aristocracia e burguesia primitivamente selvagens, dirigindo
com extrema burocracia as classes mais baixas, estagnadas a tal ponto em seus
relacionamentos sociais/culturais que criava-se uma sociedade onde as relações só
se davam por meio de interesses burocráticos, criando uma deformação humana de
tal ordem que a solidão era a única constante para aqueles miseráveis relegados
às classes pobres. E se o filme de Ayoad tem tudo isso, não estamos mais na
sociedade russa de século XIX, e assim perde-se uma excelente oportunidade de
explorar as implicações de uma trama como essa no mundo contemporâneo, doente
em diferentes aspectos. Mas acaba que o filme funciona bem é como fantasia,
perdendo o caráter crítico que era o foco principal do escritor ao decidir se
passar em um universo bizarro demais para exceder a ficção.
Se isso decepciona um
pouco, não faz de O Duplo um filme
necessariamente inferior. Aliás, é um prazer acompanhar a complexa montagem de Chris
Dinkens e Nick Fenton, construída de modo dialético na composição de imagens “reais”
com muitas de tendência surrealista ou mesmo poética. A trilha sonora original
de Andrew Hewitt, assim como a trilha incidental, marcam bem a caracterização esquizofrênica
da obra, enquanto as ruas sempre esfumaçadas conferem um tom de além-vida
adequado a um mundo repleto de fantasmas. Além disso, a sutileza do
desenvolvimento da personagem Hannah é encantadora, seja pelo citado tom azul
que a caracteriza, passando pelo seu apartamento desconfortável e aconchegante,
enquanto podemos ainda perceber sua própria despersonalização no uso de uma
indumentária de cor não-azul em ambientes sociais festivos, como o baile no
primeiro ato, sem contar que tal despersonalização grita na re-imaginação da
pintura La Reproduction Interdite de
René Magritte com a imagem da Hannah.
Formando uma dobradinha
irresistível com a adaptação de O Homem Duplicado, nesse mesmo ano, O Duplo tem
qualidades primorosas e representa uma experiência complexa, desafiadora para
aqueles que ousarem encará-la. O que também é muito divertido, é claro.
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