Análise:
X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (X-Men: Days of Future Past / 2014 /
EUA) dir. Bryan Singer
por
Lucas Wagner
A franquia X-Men sempre surpreendeu não apenas por entregar
irrepreensíveis filmes de “super-heróis”, com personagens marcantes, mas
principalmente por apresentar uma admirável preocupação temática ao
correlacionar o preconceito sofrido pelos mutantes com aquele que as pessoas
que são “diferentes”, de alguma forma, dos padrões impostos pela humanidade
sofrem. E quando X-Men Primeira Classe veio
como uma obra sublime ao desenvolver com perfeição seus personagens, enriquecer
o universo da franquia, ser um longa empolgante e ainda propor questões
ideológicas/filosóficas extremamente complexas, os padrões foram erguidos até o
céu, tornando o fato desse X-Men: Dias de
um Futuro Esquecido ser algo tão fascinante um esforço ainda mais louvável,
já que o perigo de ofuscar perante o anterior era enorme. E só o fato de
“fascinante” parecer uma palavra insuficiente para descrever o brilhantismo do
filme já denota a sua grandiosidade.
Apresentando um Bryan
Singer talvez pela primeira vez genuinamente maduro e confiante no comando de
uma produção, Dias de um Futuro Esquecido
nos insere em um universo triste e apocalíptico dominado pelos temíveis
Sentinelas (máquinas que se adaptam a qualquer poder mutante); um mundo escuro,
cheio de sombras e, em um lance meio cyberpunk,
com algumas luzes de néon roxas,
adequadamente remetendo à idéia de morte, reforçada logo em seguida pela pilha
de cadáveres sendo despejados de um veículo. Aliás, o longa escapa das
habituais frescuras dos blockbusters em
relação à violência e grafismo, ao mesmo tempo em que não exagera na dose,
permitindo um nível adequado de “peso visual” para que a opressão e perigo do
que estamos vendo nos atinja com mais força sem, no entanto, precisar aumentar
a censura. E se o tom sombrio é onipresente, Singer se revela sábio ao inserir
momentos de humor que nunca chamam a atenção para si, portanto não colapsando a
atmosfera geral, ao mesmo tempo em que funcionam principalmente por surgirem de
forma orgânica e fluída, e mesmo quando o cineasta dedica um tom leve e cômico a
uma cena inteira, esta surge não apenas como uma agradável surpresa, mas como
uma das melhores cenas do filme (me refiro, é claro, à cena da cozinha, no
Pentágono).
O filme não foge ao
comum dos bluckbusters apenas no uso
parcimonioso e calculado do humor, ou ao retratar a violência com mais peso, e
nem mesmo ao mostrar personagens já queridos pelo espectador se entregando ao
vício em drogas injetáveis ou bebidas alcoólicas, mas em especial ao ser tipo
uma espécie de “milagre” em questão de ritmo quando diz respeito aos
arrasa-quarteirões. Em outros textos meus comentei sobre como, nesse tipo de
filme, facilmente se sacrifica a sutiliza da obra por uma velocidade maior para
a narrativa, tornando-a afobada e até incômoda. Dias de um Futuro Esquecido surpreende por ter a capacidade de,
mesmo contando a história com economia de informações, desenvolvendo seus
personagens e todas as suas potencialidades, expandindo o universo da franquia,
e ainda adotando um ritmo frenético e intenso, nunca passar a impressão de
pressa e, o que é mais interessante, a narrativa alcança um tom de sobriedade,
maturidade e centro, algo que nem mesmo em Primeira
Classe era plenamente conseguido. E aqui é onde é mais notável o nível de
controle alcançado por Singer, cujo domínio de sua obra se revela algo singular
e extremamente raro.
E se falei de ritmo, o
diretor e o montador John Ottman acertam em cheio ao, mesmo dentre todas as
variáveis com que tem de se ocupar, conseguirem estabelecer um muito eficaz
ritmo de tensão crescente, algo alcançado através da coadunância de sequências
no passado e no futuro, algo que vai ficando cada vez mais freqüente ao longo
da projeção, alcançando um nível de urgência mais e mais intenso, chegando ao
ápice quando o diretor e seu montador conseguem, sem nunca deixar o espectador confuso, viajar entre duas complexas
e ambiciosas sequências de ação em dois períodos de tempo diferentes (mas
interdependentes).
Falando em sequências
de ação, Singer aqui mais uma vez demonstra sua maturidade ao habilmente
estabelecer a geografia do ambiente e ainda fazer um delicado uso de planos
levemente inclinados (sugerindo instabilidade), conseguindo explorar com
amplitude toda a sensacional coreografia das lutas, algo para o qual ainda
lança mão de um impecável e calculado slow-motion
para aumentar o impacto visual e explorar melhor os poderes dos mutantes.
Esse último aspecto, aliás, é um dos maiores acertos do filme, assim como era
em qualquer outro da franquia (em especial em Primeira Classe), e aqui as possibilidades narrativas e visuais
desses poderes são levadas aos limites, tanto quando usados isoladamente ou em
conjunto, e para isso a primeira sequência de ação não é sublime apenas por já
estabelecer com perfeição os rumos da narrativa, mas ainda por mostrar a
intercalação de poderes de forma tão experiente e dinâmica.
Quanto ao ponto que
citei sobre os poderes serem explorados até os limites, em Dias de um Futuro Esquecido podemos ver uma trama complexa e
intrigante constantemente construída a partir do uso e impacto desses poderes.
Logo, os poderes de Xavier, por exemplo, são explorados de modo orgânico até
mesmo para desenvolver sua relação com outros personagens e consigo mesmo. As
possibilidades físicas de Logan são assunto vital na narrativa, e enquanto a
biologia de Raven/Mística é o centro completo da obra, os poderes de Magneto
são diferenciados na maturidade e sabedoria do uso que Ian Mckellen (o “velho”)
faz, enquanto Michael Fassbender (o “jovem”) os usa de forma inteligente e
implacável, embora sem os elementos essenciais do seu “eu velho”, o que, é
claro, influencia a narrativa.
Dias
de um Futuro Esquecido pode ser impecável em todos seus
aspectos, e ainda divertir nas brincadeiras históricas que faz (como com JFK),
mas o que faz do filme uma obra-prima é, como de praxe na franquia, sua
temática. E aqui os realizadores fogem da habitual discussão entre as visões de
Magneto e Xavier sobre a humanidade e seus preconceitos, e centram-se em algo
ainda mais poderoso: a responsabilidade dos mutantes (a “raça evoluída”) diante
dos arrogantes, ignorantes e mesquinhos Homo
Sapiens. Pois, se antes os argumentos e previsões pessimistas de Magneto
tendiam a fazer muito mais sentido, agora a Esperança nos discursos de Xavier
finalmente parecer ser algo visível. Se aqueles seres, os mutantes, possuem
poderes e capacidade de compreensão que vão além do medo e ignorância dos
humanos, não seriam eles também responsáveis por adquirir uma visão mais madura
que vai além da raiva de ser constantemente reprimido e temido? O ódio a nada
leva, e a supremacia buscada por Magneto pode sim alcançar graus de tiranismo,
algo que o próprio não parece perceber, mas Singer e o roteirista Simon Kinberg
demonstram de forma genial quando correlacionam cenas de um discurso de Magneto
sobre o futuro e o papel dos mutantes nesse, com cenas da luta massacrante dos
mutantes contra os Sentinelas na distopia futura. Há uma similaridade
assustadora e crítica entre os dois momentos.
Mas se as confusões
emocionais de Raven/Mística são ilustração ideal da ambiguidade dos sentimentos
dos mutantes, é mesmo em Xavier e seu arco dramático que o filme consegue
abarcar essa complexa discussão em toda sua amplitude. Xavier sempre foi um
personagem admirável justamente pela insistência em ser “bom”, mesmo quando as
evidências da humanidade insistiam que essa não merecia compaixão, mas nojo.
Passando de um estágio mais ilusório e idealista (em Primeira Classe) para a sabedoria (em X-Men), o Professor aqui empacou no pessimismo, entregando os
pontos de qualquer esperança que pudesse dedicar ao mundo, e isso muito porque,
por ser bom e justo, viu tudo o que mais acalentava ser destruído. É mais do
que natural que se entregue à depressão e ao vício, mas a recuperação de sua
visão repleta de compaixão e amor é o que é, a meu ver, o mote mais forte do
filme, pois ele sabe que aquela visão vai lhe trazer mais dores do que
exatamente alegrias, mas o conforto do pessimismo, da entrega e do ódio é uma
fuga muito maior do que se permitir acreditar que exista algum indício de
bondade e sabedoria no mundo, e lutar pelo que há de “bom” nesse. E assim,
quando olho para esse personagem não consigo deixar de pensar em várias pessoas
(inclusive que eu conheço) que tem tudo para desenvolver essas potencialidades,
mas preferem se esconder nas sombras.
E é por ser um choque
tão grande que o diálogo entre Xavier “jovem” e “velho” é, singularmente, o
momento mais poderoso da obra. As palavras do Xavier envelhecido não são apenas
bonitas; são repletas de uma sabedoria profunda que só pode ser alcançada
depois de muita dor, sofrimento e reflexões. A calma com que ele discursa sobre
“abraçar a dor” e usá-la para amadurecer foi algo que, confesso, me levou às
lágrimas. E isso foi tanto por motivos exclusivos do filme quando por processos
pessoais. Logo, é verdade, uma das razões para o longa ter me tocado tanto foi
por levar-me à auto-reflexão acerca de feridas pessoais ainda muito expostas.
Mas, sendo um dos alcances mais louváveis da Arte a sua capacidade de nos levar
a olhar para nós mesmos, não temo em citar esse aspecto como fundamental nessa
crítica.
Toda essa profundidade
não seria alcançada sem a sublime composição de James McAvoy como Xavier
“jovem”, expressando toda a dor e bondade desse personagem tão ferido,
permitindo que seu arco dramático nunca soe “súbito” demais. Para falar a
verdade, todo o elenco merece louvores e glórias, pois, mesmo em um longa tão
narrativamente complexo, esses atores e atrizes conseguem dar profunda dimensão
a seus personagens. Hugh Jackman consegue alcançar uma notável sensibilidade em
Logan; Michael Fassbender surge intenso, trágico e com um ódio mal disfarçado
em sua calma voz; Peter Dinklage transforma o vilão Trask em uma figura curiosa
por sua ambiguidade de sentimentos em relação aos mutantes (e sua escalação é
genial, por se tratar de um anão se impondo à frente da humanidade contra sua
“ameaça mutante”); Jennifer Lawrence mais uma vez explora a complexidade de
Raven/Mística. E se ainda muitos merecem créditos, abro mão de comentá-los para
ressaltar o brilhantismo do trabalho de Evan Peters como “Mercúrio”. Já meio
que exalto esse rapaz por seu excepcional trabalho na série American Horror Story, mas aqui é
curioso como ele praticamente rouba o filme inteiro com sua presença irônica e
leve, e mesmo sua fala agitada é um perfeito elemento de cuidado na composição
do personagem.
X-Men:
Dias de um Futuro Esquecido é uma obra
dramaticamente intensa, mitologicamente fascinante, beneficiada com personagens
complexos e uma discussão filosófica de profundo valor, e ainda conseguiu me
atingir nas minhas vísceras pessoais. Ou seja, é um puta de um filme que merece
cada grama de idolatria que lhe presto.
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