sábado, 29 de março de 2014


Análise:

Entre Nós (Entre Nós / 2014 / Brasil) dir. Paulo Morelli

por Lucas Wagner

A coisa mais assustadora da vida é algo sem forma, mas cruel e impiedoso como um demônio: o tempo. Ele que nos dirá se nossos sonhos não passam de delírios, se o amor/paixão que sentimos por alguém durará muito ou pouco, se a euforia que uma idéia desperta terá algum futuro ou se será apenas fogo de palha... não há nada mais aterrorizante e triste do que olhar-se no espelho e não reconhecer-se mais, pois tudo o que antigamente parecia te definir tão bem, hoje não é nada. E essa é (ou deveria ser) a base desse sensível filme de Paulo Morelli, Entre Nós, que trata do reencontro de amigos escritores 10 anos depois de terem escrito e enterrado cartas para seus eus mais velhos, e também 10 anos após a trágica morte de um deles num acidente de carro.

Com um grupo de personagens cuja paixão comum é a Arte, particularmente a Literatura, o roteiro de Paulo e Pedro Morelli já tem a sorte de contar com indivíduos que podem discutir a vida e encontrar beleza nas coisas sob influência de mestres como James Joyce, criando debates que soam interessantes justamente pela inteligência daqueles que conversam, como em todo o diálogo envolvendo a ditadura e a criatividade.

Mas Entre Nós tem mesmo seus melhores momentos quando se foca em explorar as cicatrizes psicológicas de seus personagens, muitas vezes referentes ao contraste das vidas que achavam que teriam com aquelas que tem. Não é a toa que Rafa (Lee Taylor), o jovem que morreu no acidente, é uma figura que paira sobre seus amigos envelhecidos como um fantasma, um eterno ídolo que, a exemplo de Kurt Cobain, o fato de ter morrido jovem o caracteriza como uma promessa imortal, que não teve tempo suficiente para se tornar uma decepção. Assim, é claro que o momento de abrir as cartas escritas 10 anos antes é esperado com antecipação e medo, medo do choque que vai fazer com que a angústia fantasmática que sempre sentem finalmente adquira uma forma material.

O grande problema do filme é que Morelli parece não achar suficiente o minimalismo destes sentimentos tão dolorosamente comuns, e investe mais da metade da energia da obra na exploração do drama envolvendo o personagem Felipe (Caio Blat), que dá ao longa uma maior potência dramática, mas faz com que ele perca um pouco da universalidade que permitia com que nós, espectadores, nos identificássemos tanto com o que estávamos vendo. Pois é ao ver o romântico e inocente Gus (Paulo Vilhena, sempre muito talentoso) sofrendo por rever uma antiga paixão e ter encarar o fato de que o namoro de antes nunca passou de temporário, e ainda tendo que encarar sua própria insignificância (quando uma amiga diz “Você não existe”, ele repete a fala para si mesmo, num dos momentos mais doídos da projeção), ou ainda ver Drica (Martha Nowill – excelente), sempre ativa e brincalhona, sofrendo pela incompletude que sente por não ser mãe... esses sim são elementos que trariam futuro para a obra.

Com uma direção adequadamente sensível que envolve planos fechados com profundidade de campo reduzida para isolar os personagens em suas amizades e desfocar o resto do mundo, Paulo Morelli ainda investe em diálogos numa mesa de jantar com a câmera se movendo o tempo inteiro, sugerindo a dinâmica da conversa e o próprio movimento das idéias fluindo. No entanto, é patente a certa insegurança que Morelli demonstra no uso quase ininterrupto da trilha sonora melancólica para reforçar o drama dos personagens, e ainda investindo em metáforas visuais que, isoladas, surgem interessantes, mas não são lá grande coisa no contexto da obra como um todo (como o comportamento de três personagens distintos frente a animais em apuros). Acima de tudo, no entanto, o que se destaca são os diálogos criados pelo roteiro, sempre sinceros e até viscerais, sendo capazes de dizer o mundo sobre seus personagens em apenas algumas palavras, muitas vezes mascaradas de forma cômica.

Beneficiado por um elenco fenomenal que consegue transformar cada uma daquelas pessoas em seres extremamente complexos, ambíguos e delicados, Entre Nós, no entanto, não deixa de passar a impressão de decepção, pois se consegue mexer em profundas feridas emocionais que, mesmo pertencentes a personagens particulares, conseguem dizer muito sobre a humanidade como um todo, ainda tem uma enorme insegurança ao não acreditar que isso bastaria para fazer do filme algo tão relevante, preferindo focar-se num drama dramático demais para realmente dizer algo sobre o que significa ser humano.

sexta-feira, 28 de março de 2014


Análise:

Tudo Por Justiça (Out Of The Furnace / 2014 / EUA) dir. Scott Cooper

por Lucas Wagner

Um filme com um elenco repleto de grandes nomes na maioria das vezes representa alguma espécie de insegurança do respectivo cineasta que, ao se cercar de muitos atores competentes de renome, parece buscar uma muleta para que seu projeto acabe funcionando em pelo menos algum nível. O grande problema é que mesmo atores muito talentosos dificilmente podem fazer alguma coisa relevante com papéis que não lhes oferecem essa oportunidade. E esse é exatamente o caso de Tudo Por Justiça.

O longa com roteiro de Scott Cooper e Brad Ingelsby conta a história de Russell Baze (Christian Bale), um operário de uma usina que, pouco depois que sai da prisão, tem seu irmão mais novo brutalmente assassinado. Frustrado com a falta de eficiência da polícia, Russell passa se sentir tentado a buscar justiça com as próprias mãos, por mais que isso possa levá-lo de volta à cadeia.

Apesar de a sinopse deixar bem claro qual é a trama principal da obra, o diretor e co-roteirista Scott Cooper (do também fraco Coração Louco) só começa a trabalhá-la mesmo com mais de uma hora de filme, testando a paciência do espectador até o limite com sequências aparentemente sem propósito, não aproveitando o tempo nem mesmo para desenvolver seus personagens com propriedade.

E esse é o maior defeito do filme: seus personagens. Indivíduos unidimensionais e nada complexos, eles ainda acabam por revelar o profundo maniqueísmo do roteiro, cujas noções sobre Bem e Mau são definidas e nunca esbarram em qualquer ambiguidade, o que é pior ainda se considerarmos que se trata de uma obra que parece querer falar sobre um homem bom levado a seus limites. E para isso basta ver como Russell, o protagonista, é uma figura sempre benigna, humilde, bondosa e prestativa (e não duvido que o visual à lá Jesus Cristo de Christian Bale tenha sido planejado), que usa sempre roupas mais claras e desgastadas (representando seu esforço de homem trabalhador), entrando em profundo contraste com a figura do vilão Harlan DeGroat (Woody Harrelson), que desde a primeira cena é apresentado como o mal encarnado, é desumano, psicopata e brutal, e vem sempre envolvido em sombras, inclusive pelas suas roupas escuras.

Esse maniqueísmo impede que o filme consiga fazer de Russell o protagonista que obviamente queria ter. Ficam bem representados os objetivos de Cooper quando ele coloca a bela canção “Release” de Pearl Jam como tema do personagem, em que Eddie Vedder canta sobre um homem sofrido que finalmente encontra libertação. Mas Russell não faz jus à música que lhe representa, e na verdade é, a todo momento, um sujeito inverossímil em sua bondade extrema. Ao pintá-lo como uma espécie de santo-sofredor-mas-que-continua-sempre-bom, Cooper impede que o personagem adquira qualquer complexidade, e na verdade o torna um sujeito passivo que nem mesmo as provações que é obrigado a enfrentar na metade final da projeção o fazem mais tridimensional, já que a partir desse momento, Russell parece se tornar um fantasma movido por vingança, e não um homem movido pela dor do luto e pelas frustrações que foram tomando conta de sua pessoa. Assim, Christian Bale tem muito pouco o que fazer com o personagem, e se alcança alguma eficácia é porque é talentoso o suficiente para conseguir compor Russell como uma figura cuja bondade parece honesta, assim como a dor (embora o roteiro não deixe que ele explore bem isso), como na cena em que, antes de começar a chorar (exagero do roteiro), demonstra na voz toda a dimensão de seu sofrimento em relação à agora grávida ex-namorada. 

Mas não é só Bale que é prejudicado. Tudo Por Justiça tem a capacidade de desperdiçar todo o talento que atores como Sam Shepard e Zoe Saldana teriam para oferecer, ao relegá-los a papéis ingratos e frustrantes. E se Casey Affleck parece conseguir mais sucesso do que os outros, isso na verdade se dá porque seu Rodney é o personagem mais complexo do filme, enquanto Willem Dafoe é competente ao transformar John Petty numa figura ambígua por natureza, já que seu caráter afetuoso entra em contraste com os negócios sujos com que trabalha. Já Woody Harrelson, preso ao vilão unidimensional e arquetípico que é DeGroat, ao menos consegue ser eficaz o suficiente para transformá-lo num ser realmente ameaçador, conseguindo ainda até inserir um fiapo de complexidade no certo respeito que parece ter por Rodney. Fechando o elenco, Forest Whitaker se encontra num papel ingrato como nunca, mas demonstra ser um ótimo profissional ao investir numa entonação de voz grossa, firme e rouca, compondo assim o policial Wesley Barnes como uma figura forte porém fatigada pelo que a vida já teve para lhe oferecer.

Sem apresentar qualquer preocupação em transformar seu filme numa obra marcante no sentido de forma ou estilo, Scott Cooper tem uma direção burocrática cuja câmera tremendo parece ser o ápice de sua criatividade. Na verdade, dentre os raros momentos em que demonstrou alguma inventividade maior, estão as cenas envolvendo a última luta de Rodney e a caça de Russell e seu tio na floresta, cenas que vem intercaladas e criam algumas rimas entre si, como quando os braços de Rodney levantados em posição de defesa parecem lembrar as pernas do veado abatido pelo personagem de Sam Shepard; ou ainda, nessa mesma sequência, quando do rosto de Willem Dafoe, Cooper corta para a cara do veado morto. Apesar de interessante, essas cenas intercaladas acabam não encontrando tanta função narrativa, e se revelam apenas um atrativo a parte.

Prejudicado ainda por um final pretensamente complexo mas decepcionantemente vazio, que ainda cria uma fraca e óbvia rima visual entre o personagem de Woody Harrelson e um veado do meio do longa, Tudo Por Justiça é um tipo de filme irritante, que julga que ser melancólico é a mesma coisa que ser profundo. Scott Cooper ainda tem muito o que aprender sobre a sombria e ambígua natureza humana para dar aos seus personagens a dimensão que acha que dá.

domingo, 16 de março de 2014


Análise:

Need For Speed – O Filme (Need For Speed / 2014 / EUA) dir. Scott Waugh

por Lucas Wagner

Depois de sua linda performance no seriado Breaking Bad, Aaron Paul ganhou o mundo e diversos projetos começaram a cair no seu colo. Infelizmente, o primeiro que ele escolheu foi nesse Need For Speed, num papel unidimensional que raramente permite que o jovem ator demonstre seu talento. Ainda não conseguindo se livrar dos trejeitos que usou para a criação do inesquecível Jesse Pinkman (como a insistência em acrescentar um “Ââh” no meio ou início de suas falas), Paul ao mesmo consegue interpretar o mecânico Tobey Marshall com energia e entrega o suficiente para deixar o personagem quase interessante, principalmente nos momentos em que sente ódio, quando o ator é hábil na demonstração da intensidade de seus sentimentos, como no tremor de seus lábios e os olhos injetados e marejados. Mas, contrariando a leve esperança que eu guardava, Paul não salva o filme do fracasso.

Baseado na série homônima de video-games, Need For Speed tem o desafio de lidar com uma matéria-prima que em nenhum momento se preocupava em criar uma história (e isso lá não importava mesmo), e aqui os roteiristas tentam criar uma trama mais ou menos elaborada, mas que no fim das contas não passa de um fiapo que tenta justificar diversas cenas de corrida. Que são, aliás, um dos poucos atrativos do filme, já que a montagem de Paul Rubell e Scott Waugh (também diretor do longa) é boa o suficiente para imprimir energia e intensidade às sequências sem, no entanto, deixar o espectador confuso. Nesse ponto, o design de som é excelente ao usar o belo ronco dos motores dos carros como uma forma de trilha sonora por si só, decisão que só é atrapalhada quando Waugh, inseguro, insiste na fraca trilha original de Nathan Furst, cuja tentativa de ressaltar o “elemento humano” da história a partir da composição de temas melosos é bastante falha. E se são divertidas, até as sequências de corrida conseguem irritar quando surgem com motivações tão nonsense que mesmo o mais disperso dos espectadores consegue comprar.

Em questão de direção, Waugh se acha legal o suficiente até mesmo para colocar o dvd de seu péssimo filme anterior (Act of Valor) como elemento do cenário. Mas se abusa da paciência do espectador em alguns momentos (como os dois terríveis usos do efeito Vertigo), o diretor ao menos acerta nas citadas corridas e nos close-ups no rosto de Aaron Paul quando este vai correr, permitindo que entremos no espaço pessoal do personagem e, também pelo talento de Paul, conseguimos vislumbrar a tensão que toma conta dele.

Mas o que realmente mais irrita em Need For Speed é o grupo de amigos da oficina de Tobey. Se conseguimos até sentir a camaradagem deles, esse acerto é jogado no lixo por todas (e eu quero realmente dizer todas) tiradas cômicas que o roteiro tenta criar em torno deles, em especial aquela simplesmente patética e vergonhosa protagonizada por Rami Malek (que parece sempre ser o bobão da história, até mesmo no lindo Short Term 12), e que envolve nudismo. Tirando isso, ao menos a linda e talentosa Imogen Poots cria sua Julia como uma figura forte e excêntrica sem ser irritante, além de estabelecer uma química relativamente eficaz com Aaron Paul, ao passo em que Michael Keaton se diverte na composição histriônica de Monarch, enquanto Dominic Cooper nem tenta deixar o vilão Dino minimamente interessante. Já a tentativa do roteiro de humanizar o personagem de Pete justamente para que o resto do filme funcione sai pela culatra pela abordagem açucarada e pueril (realmente o cara tem visões? Sério mesmo?).

Inchado para os seus 130 minutos de duração, apesar de usar bem boa parte do início para estabelecer a história, Need For Speed ao menos não é tão ruim como qualquer Velozes e Furiosos que vem lançando ultimamente. Pelo menos aqui não somos obrigados a ver tanta estupidez por minuto como lá.

sábado, 15 de março de 2014


Análise:

Ninfomaníaca – Volume 2 (Nymphomaniac: Volume II / 2014 / Dinamarca, Alemanha, França, Bélgica, Reino Unido) dir. Lars Von Trier

por Lucas Wagner

Naquele que é o melhor e mais definidor momento de Ninfomaníaca– Parte 1, a protagonista Joe, frente a um triste e angustiante evento, não demonstra as respostas esperadas, como choro e pesar. Ao invés disso, ela fica sexualmente excitada, sua vagina ficando molhada enquanto seu rosto continuava impassível e seco.Joe se condicionou tanto a usar o sexo como forma de contato com o mundo exterior, que também é só a partir de orgasmos que ela consegue expressar alguma coisa, ou mesmo sentir, o que, infelizmente, é insatisfatório por si só, e leva a protagonista a buscar alguma forma de sentir que a torne mais plena, ao mesmo tempo em busca afirmar-se como pessoa.

Logo, por mais mal aproveitada que tenha sido como personagem, Joe é uma figura complexa e interessante, e se na primeira parte dessa sua “odisseia sexual”, o diretor e roteirista Lars von Trier tinha falhado quase totalmente na tentativa de explorar a sua psicologia, ele faz um trabalho bastante superior nesse Volume 2, não só no desenvolvimento da protagonista, que inclusive sofre notáveis modificações frente ao visto anteriormente, mas também numa direção mais sutil e inteligente, conseguindo extrair reflexões não só interessantes como também importantes.

Ainda assim, seu filme está à milhas de distância da perfeição, já que o cineasta continua cometendo muitos erros semelhantes aos de Volume 1, só que numa menor intensidade. Se lá o que tanto irritava era o tom didático da narrativa, destruindo basicamente qualquer beleza que os simbolismos traziam justamente por martelar seus significados através dos diálogos, aqui é basicamente a mesma coisa, além do fato de von Trier insistir, principalmente através do personagem Seligman (Stellan Skarsgard), em devaneios intelectuais fora de hora cujo único objetivo aparente é mostrar os conhecimentos culturais do diretor. Felizmente, em Volume 2 os devaneios não se afastam tanto da narrativa a ponto de sugerir uma ligação do sexo com a sequência de Fibonacci, e surgem até mesmo com sentido, principalmente quando encontram coerência com a narrativa como um todo e aparecem em momentos adequados, como é a discussão sobre pedofilia, que, além de bem pensada, é eficiente por ligar-se com a própria tese do filme. Em outros momentos, mesmo com coerência narrativa, von Trier peca em discussões pedantes como aquela em que Seligman explica, didaticamente, a história da Igreja Ocidental e Oriental, e suas diferenças, com um objetivo de ligar, porcamente, a jornada de Joe à uma comparação religiosa (e não é só aqui que o filme tenta isso).

É curioso, no entanto, como von Trier parece ter consciência do caráter didático da obra, e das críticas que lhe foram feitas nesse sentido no Volume 1, e aqui chega a brincar com essa característica do filme, como quando Seligman avisa o tanto que sua história vai parecer uma aula, ou ainda quando, num momento fenomenal, Joe termina de ouvir um devaneio particularmente besta de Seligman (como os piores do primeiro filme) e diz: “Essa foi, com certeza, a sua digressão mais fraca”. Claramente estamos vendo um pedido de desculpas do diretor pelo seu próprio pedantismo, e eu não me surpreenderia se cenas e diálogos como esses que descrevi tenham sido gravados depois do lançamento de Volume 1.E se isso não redime totalmente o cineasta, é porque ele continua errando, mesmo cônscio e mesmo brincando com o fato de estar errando; às vezes ele erra até nas desculpas, como ao tentar justificar a chatice de Seligman pelo fato de este ser virgem; e não, não estou de zueira. Em outros momentos, von Trier não resiste e faz auto-homenagens, como ao colocar a música Lascia Ch’io Pianga em um momento praticamente idêntico ao prólogo de seu Anticristo, quando tocava a mesma música; mas até que isso não incomoda. Além disso, o inesperado bom humor do primeiro filme é mantido com qualidade, como na cena envolvendo as colheres ainda no início da projeção.

Como já dito, von Trier volta a mostrar maior sutileza na direção, e toma decisões evidentemente inteligentes. Isso fica claro, por exemplo, na bela (ahem) cena em que Joe leva uma surra sadomasoquista de K (interpretado de forma extremamente complexa por Jamie Bell, que inclusive merecia um texto a parte apenas para ser discutida a perfeição de seu trabalho), e consegue, enquanto apanha, mover sua pélvis de modo a estimular seu clitóris, sentindo então prazer e dor ao mesmo tempo, e von Trier acerta ao tirar o som diegético dos golpes e investe numa música sacra e doce, num ótimo exemplo de subjetividade “mental”. Outros momentos surgem com simbolismos sutis e intrigantes, como o brinco de P que lembra uma forca, criando uma rima com o momento em que Joe observa uma árvore torta (representação de sua personalidade?) e se posiciona de um modo que lembra o enforcamento; essa ligação de elementos encontra um sentido narrativo que é revelado com o decorrer da projeção e ganha múltiplas interpretações.

O design de produção também tem seus momentos de destaque, como no estabelecimento de K, com suas cores frias (azul e cinza) evidenciando a impessoalidade do personagem. Enquanto isso a fotografia também tem momentos de brilhantismo, como na bela cena do nascer do sol, bem no fim do filme, quando um tom azulado de amanhecer vai iluminando os personagens e criando um eco com a metáfora poética do feixe de luz que, com dificuldade, consegue alcançar um pedacinho do muro em frente ao apartamento de Seligman.

Em relação à protagonista, sua jornada ganha contornos mais complexos e tridimensionais, e é interessantíssimo ver os percalços que Joe percorre para tentar se encontrar como pessoa, passando de sentimentos de culpa até aqueles de afirmação de seus desejos, numa coexistência ambígua de elementos desconexos. É interessante ainda o modo como von Trier troca as atrizes da Joe nova para a mais velha, num intervalo de apenas três anos na história: enquanto o personagem de Jerome continua interpretado pelo mesmo Shia Labeouf nesse espaço de tempo, Joe deixa de ser a bela e jovem Stacy Martin para ser a esquelética e frágil Charlotte Gainsbourg, numa representação dos sentimentos e estados psicológicos da personagem. O problema que impede que a protagonista cresça mais está na inexpressiva performance de Gainsbourg, uma atriz geralmente competente (vide seus trabalhos em Anticristo, Melancolia, O Jardim de Cimento, 21 Gramas, etc).

Mas Ninfomaníaca acerta principalmente na sua tese final, quando parece discursar sobre como a jornada de Joe é admirável por se tratar de uma mulher buscando afirmar seus prazeres e sua independência, numa época em que, surpreendentemente, personagens fracas e dependentes de machos como Bela Swann de Crepúsculo e Anastasia de Cinquenta Tons de Cinza ainda causam identificação por parte de várias mulheres/meninas. Como Joe diz em certo momento: “A sexualidade é a maior força no ser humano”. O modo como ela busca abraçar esses seus “instintos” e sua fome por prazer, indo contra dogmas sociais que insistem em dizer como ela está errada, é importante por ser uma mulher agindo não de maneira tradicional e machista, mas aceitando que sua sexualidade não é motivo de vergonha ou nojo, mas sim é algo perfeitamente natural e saudável. E se ela mesma às vezes tem dúvidas e culpa em relação a seus sentimentos, é porque ela também está inserida num contexto social tão machista que, mesmo em mulheres liberais, pode causar certo estrago. Pois se esse filme fosse protagonizado por um homem heterossexual certamente várias das cenas aqui consideradas obscenas e pesadas não teriam tanta repercussão.

Mesmo com esses elementos e reflexões admiráveis e tão importantes, Volume 2 cai quando, no terceiro ato, Seligman e Joe mastigam muitas dessas observações para o espectador, como se von Trier estivesse inseguro se seria ou não devidamente compreendido. Além disso, determinado triângulo amoroso quase no fim da obra é uma regressão absurda para um filme que tinha tomado contornos tão mais complexos, inserindo um elemento de sentimentalismo irritante, chegando ao ridículo quando Joe joga uma caneca na parede gritando “Ah! Esse sentimentalismo!!!”, parecendo uma dessas meninas que ficam chiando no Facebook por causa de seus sentimentos. Mas confesso que a rima visual com os números da sequência de Fibonacci do início do Volume 1 e que retornam quase no fim de Volume 2 é curiosa e inteligente, por estabelecer uma ligação entre duas personagem que evidencia um vislumbre no futuro de uma delas. Infelizmente, mesmo os efeitos anestésicos dessa rima caem por terra quando von Trier não resiste e abusa de seu trabalho forçando uma conclusão pessimista, algo feito pelo puro choque.

Aos trancos e barrancos, Ninfomaníaca é um esforço ambicioso e importante nessa época em que estamos vivendo. Pode ser um trabalho inferior na carreira de seu cineasta, mas tem elementos, principalmente nesse Volume 2, que fazem valer a pena o ingresso. Infelizmente, o Volume 1 tem que ser assistido antes da segunda parte. Não fosse por isso, eu até gostaria de revisitar o trabalho de Lars von Trier.

*Minha análise de Ninfomaníaca – Volume 1:

  

terça-feira, 4 de março de 2014


Análise:

A Imagem Que Falta (L’image Manquante / 2013 / França, Camboja) dir. Rithy Panh

Por Lucas Wagner

Assim como fez Petra Costa em Elena, o cambojano Rithy Panh busca usar o Cinema como uma forma de reconciliar-se consigo mesmo, buscando fazer sentido do que sua vida se tornou depois de um evento externo devastador. Se para Costa era o suicídio da irmã, aqui são os anos de servidão brutal ao Khmer Vermelho, que dizimou (física e espiritualmente) não só a família de Panh, mas diversos de seus conterrâneos, sob o pretexto de criar uma sociedade comunista e coletivista. Dessa forma, quando no início do filme somos sufocados por imagens ininterruptas de ondas do mar que açoitam a tela, podemos sentir um pouco da asfixia e desespero com que Panh vive desde sua infância, e somos então guiados por ele através de uma viagem íntima e assustadora.

Utilizando-se de imagens de arquivo e outras filmadas com bonequinhos de argila (aparentemente feitos pelo próprio diretor), A Imagem Que Falta conta com uma narração em off (de Randal Douc, mas representando Panh) que surge monocórdia, quase tediosa, trazendo em si uma espécie de frieza construída com os anos de intenso sofrimento. As palavras escritas pelo diretor vem, no entanto, repletas de angústia quase poética ao se referir aos eventos de sua juventude, quando este se entremeia em reflexões acerca de como no meio da vida a infância volta a aparecer, e como não parece mais ser tanto ele que busca sua infância, mas como esta parece buscá-lo. Essa sensibilidade ainda fica evidente quando o diretor se permite declarada apreciação, que surge doída, por pessoas como seu pai (“Às vezes, o silêncio é um grito desesperado”) ou sua mãe, em suas silenciosas e íntimas revoltas, que no fim levaram à ruína dos dois, separadamente. Em outros momentos, o diretor se entrega a devaneios imagísticos e dolorosamente bonitos, como os bonequinhos de crianças que acabaram de morrer e então são vistos voando felizes no céu aberto.

Com os bonecos de argila, Panh é inteligente ao muitas vezes mostrar um boneco de si mesmo criança com uma vestimenta distinta do preto coletivo, usando então uma camisa amarela com toques vermelhos, em tons fortes e chamativos, numa representação da ser infantil que ainda habitava o seu corpo maltratado. Esse bonequinho em diversos momentos aparece sentado e com a boca aberta e olhos arregalados, numa espécie de grito que nunca sai, se posicionando no meio de outros bonecos trabalhando e sofrendo, numa representação do desespero íntimo que Panh sentia mas não expressava naquele tempo. Fascinante, diga-se de passagem, é o momento em que Panh troca fisicamente (vemos seu braço realizando a ação) seu boneco com uniforme preto pelo de camisa colorida, num momento em que ele se permite um delírio infantil que o lança para longe daquela realidade.

Mas Panh ainda consegue ser objetivo na descrição das atrocidades cometidas pelo Khmer Vermelho, e assim explora não apenas os atos de violência física, seja na agressão direta, seja na fome que obrigavam seus “servos” a passar pelo “bem do coletivismo”, ou ainda mesmo ao serem obrigados a trabalhar escutando slogans sobre a “bondade” do Kampuchea Democrático. Com o pretexto de estarem construindo uma sociedade igualitária, coletiva e unida, o governo obriga seus servos a trabalharem brutalmente hoje para “colherem os frutos amanhã”, como se isso justificasse a brutalidade com que tratava os cambojanos. O governo ainda utilizava a mídia como forma de propagação de seus valores, tanto para seus membros, como para o resto do mundo que, ao verem as imagens de crianças arando terra com um sorriso e uma expressão determinada, parecia não enxergar os horrores que realmente ocorriam ali.

O pior é que, como Steve McQueen trabalhou em seu poderoso 12 Anos de Escravidão, esses anos de trabalho forçado e contato direto com a violência não serviram apenas para machucar no sentido físico, mas para destruir a sensibilidade e individualidade daquelas pessoas, que em certo ponto foram obrigadas a adotar a frieza como defesa contra o cotidiano. Assim, só fica mais triste (e fascinante) que a dor de Panh tenha sobrepujado a frieza, e que assim o diretor tenha buscado, duas vezes já, propagar para o mundo toda a sua angústia que por anos foi obrigado a guardar.

Pois A Imagem Que Falta é a segunda tentativa de Panh de retratar cinematograficamente os eventos que destruíram sua vida. A primeira vez (que não assisti) lhe soaram insatisfatórias e incompletas. No entanto, essa segunda acabou caindo na mesma situação, mas Panh aparentemente amadureceu como ser humano, e compreendeu que por mais que tente, nunca conseguirá entrar em perfeita harmonia consigo mesmo, não depois de tudo o que já passou. Li há pouco tempo que “o Cinema é um antídoto para o desamparo”, e isso é verdade, só que em parte, pois esse antídoto funcionará “apenas” como uma tentativa de compreensão de algo que é incompreensível. Como o próprio Panh chega a afirmar, ele nunca encontrará a imagem que falta, aquela que juntaria tudo num grande painel que finalmente faria sua vida fazer sentido. E o diretor mostra compreender isso desde as cenas iniciais, quando filma diversos rolos de filme e negativos bagunçados, remexidos e estragados, chegando a estar amontoados um em cima do outro como se, depois de muito trabalho, Panh tivesse aberto mão dessa procura insana de uma imagem ideal.

Não que por ser conscientemente apenas uma tentativa seus esforços sejam menos válidos. Como comentei em meu texto sobre A Grande Beleza, o fazer Arte pode ser doloroso e até mesmo frustrante, mas também é irresistível como uma forma de elaboração de uma compreensão do mundo que ninguém além de si mesmo pode oferecer. Então, assim como Petra Costa no citado Elena, é visível que Panh saiu de sua nova experiência cinematográfica mais maduro e em melhores termos com o seu passado. Seus pesadelos e angústias nunca acabarão, mas pelo menos o diretor parece ter sido capaz de falar, através da Arte, sobre sua devastação emocional, empreendendo o que foi, tenho certeza absoluta, uma experiência íntima e difícil.

Como os bonequinhos que Panh afirma ser tão fáceis de fazer, o ser humano é também extremamente frágil, e experiências como a que o diretor passou são mais do que suficientes para destruir o mais forte dentre nós. Sua grande sorte (e de todo o mundo, diga-se de passagem) é a existência de uma forma de comunicação como a Arte para expressar um pouco do que sente.


Análise:

A Grande Beleza (La Grande Bellezza / 2013 / Itália, França) dir. Paolo Sorrentino

por Lucas Wagner

Fazer Arte é um ato doloroso por definição, já que parte da tentativa de elaboração de sentimentos que, muitas vezes, revelam-se puro caos. Mas é também irresistível, e uma forma de tentar elaborar uma compreensão particular do mundo que ninguém mais pode dar ou compreender. E é sobre a natureza da Arte e sua decadência atual que versa o cineasta Paolo Sorrentino nesse seu estupendo A Grande Beleza, uma obra que ainda consegue fazer lembrar Roma e 8 ½ (um de meus filmes favoritos), dois grandes longas de Federico Fellini.

Do primeiro, Sorrentino pega a visão de transformação, ao comparar o passado grandioso com o presente vergonhoso, e do segundo pega elementos do personagem principal: um artista (lá um cineasta, cá um escritor) que não consegue encontrar elementos para compor sua nova obra, e assim mergulhamos na cabeça de um homem brilhante em suas profundas reflexões e andanças pelo bizarro composto que é ele mesmo, buscando fazer sentido de si e do caótico mundo ao seu redor.

Caótico que é, por sinal, uma palavra perfeita para definir o universo de A Grande Beleza, que não é senão aquele dos grandes meios artísticos. Pois hoje em dia, o fazer Arte, ou até mesmo apreciá-la, se tornou uma espécie de masturbação intelectual de pessoas inseguras e confusas, que a usam como uma defesa para sua própria insignificância, tentando, através de citações arrojadas e discursos elaborados, mostrar-se como alguém “relevante”. Isso fica muito claro quando o protagonista, Jep Gambardella (Toni Servillo), retruca para sua convencida amiga os motivos pelos quais tudo o que ela falou sobre seu trabalho e sua vida não passam de farsa (numa cena que inclusive insita a questão: uma obra de Arte ganha mais valor por tratar de algo externo e “relevante” como política e perde quando trata de algo íntimo como exploração das próprias percepções?). Sorrentino já escancara sua tese logo no início de seu filme, quando vemos imagens contemplativas acompanhadas por música sacra, mostrando grandes esculturas e peças arquitetônicas de Roma, e logo depois corta para uma longa sequência em uma festa de artistas famosos, regada a álcool, drogas e puro sexo. Aliás, sexo que é o único objetivo desses “intelectuais”, que aqui citam Marcel Proust não com o intuito de discutir sua obra e seu significado, mas para mostrar-se superior e conseguir tirar a calcinha de alguém. Há nessa sequência também um plano significativo onde uma mulher seminua dança dentro de um cubículo fechado por um vidro transparente, e enquanto o público de fora a observa dançando, ela aprecia a si mesmo através do reflexo que o vidro lhe proporciona.

E nem precisa ir muito longe para encontrar esse tipo de gente carente de atenção. Na verdade é só entrar no feed de notícias do Facebook e ver alguma postagem citando Clarice Lispector ou Mark Twain, que acompanham fotos de meninos em academia ou bebendo, ou de garotas empinando suas bundas na frente do espelho. Somos todos passageiros de um barco que navega águas turbulentas e, como tão lindamente diz Jep, porque não aproveitamos essa situação para conversar e brincar? A insistência de martelar para o mundo (e para si) sua própria importância, não só irrita, como ainda desperta nojo e pena.

Dentro desse caótico meio, Jep se insere como um indivíduo que só publicou um romance em toda a sua vida, não conseguindo voltar a escrever por não ter encontrado algo como uma “grande beleza”, que faça valer a pena ser eternizada no papel. Mas uma coisa que fica sempre muito clara é o sofrimento de Jep, que assim como Guido de 8 ½, não consegue organizar o seu caos interior para trabalhá-lo através da Arte. No caso de Jep é não apenas essa organização, mas algo que valha a pena escrever sobre. Assim, somos levados através de passagens belíssimas em que Sorrentino viaja através dos pensamentos de Jep, empreendendo até mesmo uma visão surrealista como o oceano no teto. Passeamos na infância de Jep, na época da perda de sua virgindade, nas memórias de uma antiga paixão, e podemos sentir um pouco da carga que os sentimentos despertados por essas lembranças tem para ele.

Jep que, interpretado de forma genial, divertida, melancólica e charmosa por Toni Servillo, é uma figura fascinante em todos os sentidos. Ele compreende a mediocridade do meio artístico, mas ao mesmo tempo faz parte dele, e não porque é arrastado, mas faz isso de bom grado. É um personagem nostálgico e sensível à sua própria maneira (vide a pergunta que responde no primeiro diálogo que trava com o espectador), que observa a destruição do mundo ao seu redor tentando entendê-lo, captá-lo, encontrar algo nele (e em si mesmo) que justifique ser traduzido em palavras.

O que Jep não entende é que as “grandes belezas” não estão distantes, em algo metafísico ou macrossocial. Está na poesia do envelhecimento do rosto humano, na observação da beleza de um animal, ou ainda na simples constatação de que uma desconhecida tem o mesmo nome de uma personagem de Dostoiévski. E se citei exemplos vistos no filme, peço licença ainda para extrapolar o material disponibilizado por Sorrentino, e dizer que essa “grande beleza” pode ser sentida com toda a força do mundo no ato de segurar a delicada mão de uma garota especial para você, brincando distraído com o peculiar anel que tem em seu indicador, ou ainda quando observamos a beleza de um dia chuvoso. O escritor russo Joseph Conrad certa vez escreveu que “o mundo dos vivos encerra maravilhas e mistérios suficientes que agem sobre nossas emoções e nossa inteligência de maneiras tão inexplicáveis que quase bastariam para justificar a concepção de vida como um estado de encanto”. O cotidiano é repleto de histórias tão espetaculares, sentimentos tão profundos, atos tão heróicos, e o passado é tão cheio de nostalgia e pontas soltas, que toda uma história poderia ser criada a partir de um simples olhar. Basta uma sensibilidade que permite desnudar o que tudo isso significa para si. E Jep tem toda a capacidade do mundo para isso, mas seu maior obstáculo é ele mesmo, por talvez subestimar a sua própria importância, ou também a relevância de tudo o que o cerca, já que o excesso de estímulos acaba por anestesiar suas percepções.

Pois o fazer Arte tem sua essência não só no encontro das “grandes belezas”, mas como elas nos afetam e nos tocam, e como podemos expor esses sentimentos a outros seres humanos, buscando um amparo para o nosso profundo desamparo. E assim, ver uma garotinha sendo usada como produto por seus pais, que a obrigam a pintar um quadro na frente de estranhos, se torna não só uma crítica (os pais usando Arte apenas pelo dinheiro) mas também algo belíssimo quando percebemos que a pintura dela está se transformando num reflexo de si, da fúria que sente frente à falta de respeito de seus pais, e quando a raiva passa e ela começa a organizar as caóticas cores que jogou na tela, o que vemos é uma artista usando sua angústia para organizar seus anseios e confusões, criando uma obra belíssima e profundamente íntima. Aliás, não seria Arte o que a freira de 104 anos aqui faz, quando sobe uma Escada Santa? Não é isso para ela uma realização que contém níveis pessoais profundos e significativos? Nesse sentido, a insistência da mulher de 42 anos em ser stripper também não é Arte?

Com sua belíssima trilha sonora e planos elaborados, por vezes insanos e muitas vezes contemplativos, Paolo Sorrentino cria em A Grande Beleza um filme que tem a Arte como tema, contemplando sua destruição atual frente a uma sociedade que, em seus excessos, perde a sutileza que essa tão bela ferramenta proporciona. Afinal, quando o objetivo passa a ser apenas financeiro (“Qual a sua profissão?”, “Ser rica”) e para conseguir “status”, é como se escarracem em todo o sofrimento esculpido na escrita, na música, na tela, ou onde quer que seja. E por isso vivemos num mundo em decadência, onde “as grandes belezas” parecem sempre invisíveis. Afinal, como poderiam ser vistas se a maior parte da população está cega?


domingo, 2 de março de 2014


Análise:

O Passado (Le Passé / 2013 / França, Itália) dir. Asghar Farhadi

por Lucas Wagner

O que faz do iraniano Asghar Farhadi um dos melhores diretores e autores da atualidade é a sua capacidade de criar personagens que soam reais, palpáveis, repletos de minúcias e personalidades tão imensamente complexas, mas ainda se comportando como pessoas do cotidiano, permitindo que estabeleçamos uma profunda ligação com cada um deles, principalmente por sabermos que poderíamos encontrar alguém daquele jeito no padeiro da esquina, ou no estranho que senta ao seu lado no cinema. Dito isso, esse seu novo filme, O Passado, é uma obra humana e impiedosa, que investe, nos seus 131 minutos de duração, numa dolorosa dissecação de seus personagens, desnudando-os para si mesmos e para o espectador.

O roteiro do próprio Farhadi tem início quando Ahmed (Ali Mosaffa) viaja à Paris para reencontrar a mulher, Marie-Anne (Bérénice Bejo – suspiros apaixonados), e finalizar o processo de divórcio que estava pendente. Reencontrando enteadas, Ahmed se vê em meio à uma intrincada teia familiar cujos sentimentos não expressos estão se transformando em ácido e corroendo as paredes da prisão que aquelas pessoas construíram para si.

Os personagens de O Passado são seres humanos verossímeis e tridimensionais, agindo como pessoas do mundo real ao buscarem manter um clima afável e evitar confrontos o máximo que podem, muito embora isso vá se tornando cada vez mais difícil. Pois cada um daqueles indivíduos parece sufocado pelas coisas que não dizem e pelos sentimentos que não conseguem evitar e os fazem sofrer por jogar nos ombros de outros uma responsabilidade que ninguém pede. E a consciência disso aparentemente faz com que eles sofram muito mais, já que em sua maioria, as pessoas que aqui acompanhamos demonstram compreender que muito de suas tormentas se refere a eles mesmas, e que culpar outro alguém seria uma tentativa de escape injusta e insatisfatória, embora possa ser irresistível em sua facilidade.

Vejamos o exemplo de Samir. Novo namorado de Marie-Anne, o sujeito vive às sombras do relacionamento anterior da companheira, que ela, apesar das inúmeras verbalizações do contrário, parece ainda ligada. Ainda assim, ao invés de criar caso e um clima desconfortável, Samir busca agir civilizadamente e até prestativamente, muito embora esteja claro seu desgosto com a presença de Ahmed. Alérgico à tinta, o homem busca mostrar-se dedicado com a namorada quando insiste em pintar a casa desta, mesmo ficando com os olhos irritados; mas, apesar de tudo isso, pode-se notar certa hostilidade que acaba escapando pelas frestas, como quando diz que quem deve dar determinada bronca no garotinho Fouad é ele, porque este é seu filho. E muitos de seus comportamentos prestativos podem ser fruto de culpa, devido à conturbada situação de sua esposa, agora em estado de coma devido à uma tentativa fracassada de suicídio, e à consciência de que, aparentemente, qualquer forma que agir resultará em dor para alguém para quem só quer o bem. O caso é que Samir é um indivíduo complexo e multifacetado (interpretado com sensibilidade por Tahar Rahim) cujos comportamentos ambíguos e caóticos ao longo da projeção revelam toda a confusão que ele se encontra diante de si mesmo.

E confusão seria uma palavra adequada para definir Marie-Anne. Mulher de quase meia idade, Marie parece pular por vários relacionamentos e nunca conseguindo manter um, talvez por culpa de si mesma, de algo que diz respeito à sua personalidade. É aparente que há nela uma vontade latente de chutar o balde, e ela mesma não resiste a isso em diversos momentos, e às vezes até através de atitudes de revolta tolas e um tanto pueris como fumar em seu estado atual. Mas o que fica mais evidente é a sua tentativa de calar seus anseios, de buscar manter dentro de si muito do que quer gritar, para não acabar ferindo as pessoas que ama, e se muitas vezes não consegue resistir à vontade de ferir alguém, isso vem de algo que é natural de qualquer ser humano. Pois, em certo momento, mesmo diante de uma calma, porém insatisfatória, conversa, Marie não resiste e solta informações desnecessárias e venenosas a seu interlocutor, algo que ela sabe ser incrivelmente injusto, mas não consegue evitar. E toda a ambiguidade dessa figura tão fascinante é explorada brilhantemente por Bérénice Bejo (por quem nutro uma paixão platônica já faz tempo), criando uma mulher que, mesmo quando age de forma desprezível, não desperta a antipatia do espectador, que consegue sentir afeto por aquela figura tão demasiadamente humana.

Mesmo os mais jovens não são poupados, e vemos a adolescente Lucie (Pauline Burlet) sofrendo pela incompreensão de si mesma e do que quer, e assustando-se pelas atitudes maldosas das quais se mostra capaz, sendo, no entanto, incapaz de olhar na cara aquelas pessoas que feriu, e assim preferindo assumir uma postura hostil diante de quem, por mais errado que tenham agido, ainda assim não merecem o que Lucie fez. Até mesmo o pequeno Fouad (Elyes Aguis) já apresenta uma ambiguidade juvenil na confusão sentimental à qual foi inserido devido aos adultos que o cercam. Dentre todos os tão intensos personagens da obra (aqui não falei de todos até porque deixaria o texto longo demais), o único que parece mais calmo e pacífico é Ahmed, e muito pelo seu conturbado passado envolvendo depressão e tentativas de suicídio. Agora, o homem aparenta mais é tentar ser justo com todos em seu meio, sabendo seu lugar e buscando não ultrapassar limites, muito embora toda a calma que expressa contenha em si uma melancólica angústia.

Asghar Farhadi adota o mesmo estilo naturalista que já é marca registrada de seu trabalho, e mais uma vez exclui a trilha sonora, optando apenas por sons diegéticos, e um uso constante da câmera na mão, inquieta. Mas, assim como fez em seu soberbo A Separação, Farhadi consegue inserir nuances significativas na maneira como conta a história, e logo na primeira cena, o diretor demonstra sua inteligência quando Ahmed e Marie-Anne tentam conversar através de um vidro no aeroporto, falhando nessa tentativa pois não conseguem ouvir ou ao outro, numa bela demonstração de sua dificuldade de comunicação. É curioso ainda que a casa de Marie-Anne esteja em reforma, revelando assim portas e paredes descascadas, sofás cobertos por plásticos e latas de tinta espalhadas, num reflexo do próprio estado psicológico da anfitriã. Mais curioso ainda, nesse sentido, é que seja Namir quem esteja fazendo o trabalho de reforma, numa maneira metafórica de Farhadi explicitar o significado daquele indivíduo para a mulher. Falando em Namir, o diretor merece créditos pelo plano evocativo em que coloca esse personagem e Ahmed no mesmo quadro, durante vários segundos, causando um desconforto no espectador que é próximo do que aquele que os dois estão sentindo, ao mesmo tempo em que o diretor é mestre ao colocá-los usando indumentárias praticamente idênticas, ressaltando assim a semelhança entre os eles, que foi o que aproximou Marie-Anne de Namir. Bacana observar também como a chuva torrencial aqui serve como representação dos dilemas emocionais dos personagens

No fundo, O Passado merece mesmo status de obra-prima pela já martelada compreensão de Farhadi daquilo que significa ser humano. Os anseios incontroláveis, os sentimentos poderosos e confusos, a vontade de machucar outra pessoa, a sombra que nossas atitudes no passado lançam sobre nosso presente... toda a fragilidade que é o quebra-cabeça humano, cujas peças não estão muito unidas e equilibradas. Os personagens de Farhadi, assim como as pessoas do mundo real, são enigmas para si mesmos, e se inserem em complexos labirintos emocionais, chegando num ponto em que seria válido perguntar, afinal, qual seria o sentido daquilo tudo. Muito provavelmente não há sentido algum, mas é inegável que as teias de relacionamentos que criamos, por mais venenosas que possam vir a ser, são também o que garante algum sentido à nossa curta existência.

E é por me provocar reflexões como essa, mesmo aparentemente sem esse objetivo explícito (o filme é mais um drama de personagens do que uma reflexão sobre a humanidade como um todo), que coloco Asghar Farhadi em um pedestal. E se sua genialidade, por incrível que pareça, não tenha ficado óbvia durante o filme inteiro, o sublime plano final tirará qualquer dúvida disso, por conter em si toda a complexidade de um gesto ou da não existência desse gesto... e tudo o que isso pode significar.

*Outras análises minhas de filmes dirigidos por Asghar Farhadi:
  
     

sábado, 1 de março de 2014


Análise:

Instinto Materno (Pozitia Copilului / 2013 / Romênia) dir. Calin Peter Netzer

por Lucas Wagner

Em diversos aspectos, esse Instinto Materno lembra a obra prima Mother – A Busca Pela Verdade, de Bong Joon-ho, mas os dois filmes se diferenciam em algo essencial: sua protagonista. Se o longa sul-coreano acompanhava uma senhora doce e humilde, que logo de cara cativava o espectador, esse romeno dirigido por Calin Peter Netzer acompanha uma mulher que, mesmo claramente amando seu filho, se revela manipuladora, calculista e um tanto perversa.

O roteiro do próprio Netzer e Razvan Radulesco inicia sua ação quando Barbu (Bogdan Dumitrache) acidentalmente atropela um garoto de 14 anos, podendo, então ir para a prisão. Sua mãe superprotetora, Cornelia (Luminita Gheorghiu), então vai fazer de tudo para impedir isso.

Netzer logo de cara agride o espectador ao abrir o longa com um corte abrupto que já nos lança no meio de um diálogo tenso entre Cornelia e sua irmã, quando a primeira desabafa sobre suas brigas com o filho. Assim já estabelece a abordagem crua que vai usar, e durante todo o longa prevalecem os cortes secos e a câmera instável que não se cansa de usar primeiros planos fechadíssimos no rosto dos atores, utilizando-se também de close-ups­ bruscos que contribuem para o sentimento de angústia. Os ambientes sempre fechados contribuem ainda para uma sensação de claustrofobia, corroborada por uma fotografia sombria em seus tons azuis e pretos, que contrastam com o amarelo quente que caracteriza algumas das cenas iniciais que mostram o aniversário de Cornelia, antes do acidente provocado pelo filho. Ainda, o diretor acerta na construção de uma mise en scène inteligente, em especial na cena em que estão presentes dois policiais, Barbu e Cornelia, e se esta é enquadrada na mesma altura de um policial, o seu filho já se encontra sentado ao lado de uma policial de pé, estabelecendo-se assim numa posição de ameaçado que é diametralmente oposta à situação da mãe com o outro policial.

Mãe esta que se revela uma personagem extremamente complexa e ambígua. Cornelia não parece aceitar que Barbu já é um homem feito, e constantemente busca se inserir no contexto da vida do filho, o que fez com que esse desenvolvesse uma personalidade que visa sempre agredir a mãe, como uma forma de buscar seu próprio espaço (por isso um diálogo que ocorre entre os dois quase no fim da obra é tão fascinante, como se coisas que já deveriam ser ditas finalmente estivessem vindo à tona). Rica, influente, poderosa e vivendo em um meio idem, o freneticismo da vida social de Cornelia já é adequadamente capturada por Netzer no inicío do filme, na festa de aniversário, quando o diretor corta com velocidade gritante através de apertos de mão e cumprimentos. O ponto fraco da mulher é mesmo o filho, e quando recebe a notícia do acidente, uma das primeiras perguntas que faz é se Barbu estava correndo, buscando, como tantas mães, ver se seu filhote não estava fazendo algo errado.

Mas sua relação com o rapaz (?) apresenta características mais perversas, até mesmo edipianas, e a cena em que a senhora faz uma massagem no filho tira qualquer dúvidas em relação à isso, tamanho o poder erótico do momento. E talvez seja por esses sentimentos mais ambíguos que Cornelia se sinta tão ameaçada por Carmen (Ilinca Goia – atuação adequadamente melancólica), namorada de Barbu, algo que fica bem evidente na excelente sequência em que a senhora finge não estar no apartamento do filho enquanto a nora bate na porta, indignada.

Mas uma das características que melhor define Cornelia talvez seja mesmo a de manipuladora. Desde o início mantém uma postura de ataque que revela certo calculismo de ações, embora um tanto desesperadas (como mandar o filho alterar o depoimento da polícia na frente dos tiras) e, às vezes, fica evidente a dimensão de sua perturbação quando apóia-se em esperanças tolas que, antes que alguém lhe mostre isso, não lhe parecem muito pueris, como ter alguma esperança de que a autópsia da criança morta possa livrar a cara do filho. Mas, muito embora ame o filho, é notável como a senhora busca sair ganhando frente às diversas negociações que trava, como quando conversa com a testemunha, naquela que é a melhor cena do filme: Cornelia tem dinheiro suficiente para pagar o que a testemunha exige, assim salvando a cara do filho, mas busca conseguir uma forma de não pagar e ainda ter o que quer; o problema (e o que torna a cena tão fascinante) é que a testemunha é tão manipuladora quanto ela. Aliás, a dimensão da personalidade controladora de Cornelia ganha contornos ainda mais notáveis no rápido gesto (capturado com maestria pelo diretor) do olhar que Barbu lança a ela quando lhe é exigido um exame de sangue, recebendo um discreto meneio de cabeça em resposta, e tal cumplicidade revela algo de extraordinariamente complexo da relação dos dois: muito embora ele esteja sempre em posição de ataque à mãe, esse olhar revela um ato de perguntar se deve ou não obedecer às ordens dos policiais, revelando uma atitude dependente que, se não fica muito evidente no plano consciente, pelo menos inconscientemente se estabelece com força.

Pois se há algo que grita em Instinto Materno é a influência destruidora que Cornelia exerceu em Barbu, transformando-o num homem neurótico e claramente confuso quanto ao que quer, o que leva Carmen à um comportamento de triste desamparo justamente por não saber como se comportar com o namorado, encontrando que talvez a única solução possível seja o término. E para que a influência esmagadora de Cornelia tenha verossimilhança, Luminita Gheorghiu tem uma performance poderosa sem a qual o longa não funcionaria tanto. Mas os maiores méritos da atriz se referem ao final do filme, simplesmente impecável, já que o que começa como uma tentativa de manipulação por parte da protagonista logo se transforma em emoção verdadeira, doída e massacrante, em um momento que poderia render prêmios à Gheorghiu.

Angustiante do primeiro ao último plano, Instinto Materno é uma obra que dificilmente agradará espectadores desejosos de muito suspense escancarado, mas certamente surpreenderá aqueles que sabem ler nas entrelinhas de uma destrutiva relação entre mãe e filho que, no entanto, não deixa de guardar em si um pouco do afeto que há nesse tipo de relacionamento.


Análise:

O Sonho de Wadjda (وجدة  / Arábia Saudita / 2013) dir. Haifaa Al Mansour

por Lucas Wagner

O Sonho de Wadjda é uma obra doce com uma protagonista idem, e ainda é relevante por ser o primeiro filme totalmente filmado na Arábia Saudíta e, o que é mais importante, é o primeiro longa metragem dirigido por um mulher árabe. Isso mesmo. E o filme dessa talentosa estreante, Haifaa Al Mansour, trata justamente da opressão sob a qual vivem as mulheres de seu país. Só que ao invés de criar uma obra densa, a diretora e roteirista optou por uma abordagem mais leve, contando a história de uma garotinha cujo objeto de desejo é algo capaz de deixar as mulheres do país chocadas: uma bicicleta, para apostar corrida com seu melhor amigo.

Al Mansour usa sua história simples de maneira eficaz para mostrar o cotidiano daquelas mulheres e meninas. Vivendo numa realidade na qual permitir ser vista por um homem é sinal de impureza, elas se cobrem completamente e, à vista de um ser do sexo masculino, desaparecem de vista. Não que as garotas aqui sejam muito diferentes das encontradas no resto do mundo, já que manifestam interesse por outros garotos e por fofocas sobre relacionamentos. E se a única possibilidade de se engajarem em uma relação amorosa é através do casamento, a notícia de que uma delas (garotas de no máximo 12 anos) se casou é motivo para congratulações e até mesmo piadinhas de outras meninas, tão imaturas no que diz respeito à relacionamentos. Elas manifestam sinais claros de uma existência alienada da sexualidade, e se já estava na hora de pararem de dar risadinhas  ao som de uma palavra como “menstruação”, ainda não resistem a rir cheias de vergonha.

A diretora acerta na sensibilidade de mostrar várias dessas meninas escapando pelas frestas das leis, como ao planejarem encontros fugazes com rapazes (isso são as mais ousadas que fazem) ou até em vista de prazeres simples, mas vistos como pecados, como pintar as unhas dos pés, algo que deve ser feito as escondidas e sempre com alguém de guarda. As hipocrisias existentes não são deixadas de lado pela cineasta, e a figura da coordenadora do colégio, Ms. Hussa (Ahd), é um sinal claro de ambivalência, pois ela pode pregar com toda a força e paixão a disciplina e reserva com que as mulheres devem viver, mas ela mesma usa roupas estilosas quando no colégio (no que seria um péssimo exemplo para as alunas, segundo a lógica daquela sociedade), como se por colocar-se no pedestal que criou tivesse direito a esses agrados, e ainda existem boatos que falam sobre ela e um amante que a visita de noite.

Assim, Al Mansour demonstra sua inteligência ao ir contra o mais senso comum, abordando sua temática com mais riqueza, e isso muito também através da personagem da mãe da protagonista, figura extremamente complexa. Não é surpresa que naquela sociedade os homens tenham mais de uma esposa, mas como fica o sentimento dessas mulheres ao terem que dividir o marido? E é esse o grande dilema da personagem, já que o pai de sua filha está à caça de mais uma mulher, e ela passa a sentir um profundo desamparo e fazer o pouco que pode para tentar convencer o marido do contrário (e é mais um acerto da obra que esse homem não seja visto como um antagonista, mas como um cara tridimensional e amoroso, que faz o que faz não por maldade, mas porque foi criado assim). Ora, não é só porque vive numa sociedade na qual essa situação é comum que ela vai deixar de sentir ciúmes. E ainda a excelente performance de Reem Abdullah permite que a personagem se torne mais e mais complexa, pois é uma mulher repleta de energia com talentos que talvez nunca sejam explorados, algo que pode ser evidente também pelo figurino, com as roupas elegantes e de cores vivas que usa em casa, em contraponto à burca que usa nas ruas. Quando canta (lindamente) perto de sua filha, a pequena sugere que a mãe poderia ser cantora, algo que deveria vir como um elogio mas é recebido como ultraje. Até mesmo coisas mais simples, como o possível emprego no hospital, é algo que se ela chega a pensar sobre, é com muita culpa e relutância. Esses comportamentos em nenhum momento lhe tiram as características de mulher forte e amorosa que tão bem lhe definem.

Mas falar de O Sonho de Wadjda é mesmo falar de...Wadjda. A garotinha vai contra o estereótipo de meninas de sua idade e nacionalidade, já que gosta de rock, é extrovertida, brinca tranquilamente com meninos, bate boca com homens, gosta de usar adereços que são visíveis, e ainda é esperta e um tanto maliciosa. Assim, o seu figurino é eficaz ao permitir que vejamos claros sinais de sua personalidade, algo pouco comum dentre as mulheres árabes, e desde a primeira cena do filme a diferença dela com as outras meninas fica clara quando a vemos usando um All-Star com cadarços azuis enquanto suas colegas usam o sapato preto do uniforme. Não que Wadjda seja alguma espécie de revolucionária (embora seja possível que ela amadureça para tal), mas é simplesmente uma garota que gosta de ser e expressar-se como bem lhe agrada, e se ela obedece leis e costumes sociais, é só até o ponto em que isso não se torna inconveniente para ela. Aliás, a menina encontra soluções um tanto criativas para contornar dilemas que surgem, como pintar de preto a parte branca de seu All-Star depois que leva uma bronca por não usar os sapatos do uniforme.

Nenhuma garota pode andar de bicicleta, e todo mundo repete isso à ela, mas sua determinação e desligamento das regras acaba encantando muitas pessoas em seu caminho. E se nós mesmos nos encantamos com a menina, é também em grande parte devido à bela performance de Waad Mohammed, expressiva e sapeca o tempo todo, mas também sendo capaz de demonstrar emoções mais íntimas, como no olhar de carinho que muitas vezes tem pela mãe, compreendendo um pouco a dor dela e tendo maturidade o suficiente para não oferecer soluções infantis para a mãe, sabendo respeitar seus sentimentos frente à sua complicada situação.

Al Mansour consegue empregar um bom humor exemplar à obra, até mesmo frente à alguns absurdos do Islamismo, como quando Wadjda recebe uma bronca da mãe por ter deixado o Alcorão aberto, pois assim “o diabo iria cuspir nele”. A diretora demonstra ainda inteligência ao confrontar materiais do mundo moderno (como celulares), com aquele universo que parece ter parado no tempo. A trilha sonora do fascinante músico Max Richter também é outro elemento de qualidade na obra, principalmente pela parcimônia com que suas composições são usadas pela diretora, muito embora alguns dos belos temas criados pelo músico por vezes soem um pouco densos demais para uma obra que almeja a leveza.

Dito tudo isso, O Sonho de Wadjda é um filme delicioso de assistir, conseguindo cativar o seu espectador para tratar de uma temática séria que, por incrível que pareça, não soe datada em pleno século XXI.