domingo, 2 de março de 2014


Análise:

O Passado (Le Passé / 2013 / França, Itália) dir. Asghar Farhadi

por Lucas Wagner

O que faz do iraniano Asghar Farhadi um dos melhores diretores e autores da atualidade é a sua capacidade de criar personagens que soam reais, palpáveis, repletos de minúcias e personalidades tão imensamente complexas, mas ainda se comportando como pessoas do cotidiano, permitindo que estabeleçamos uma profunda ligação com cada um deles, principalmente por sabermos que poderíamos encontrar alguém daquele jeito no padeiro da esquina, ou no estranho que senta ao seu lado no cinema. Dito isso, esse seu novo filme, O Passado, é uma obra humana e impiedosa, que investe, nos seus 131 minutos de duração, numa dolorosa dissecação de seus personagens, desnudando-os para si mesmos e para o espectador.

O roteiro do próprio Farhadi tem início quando Ahmed (Ali Mosaffa) viaja à Paris para reencontrar a mulher, Marie-Anne (Bérénice Bejo – suspiros apaixonados), e finalizar o processo de divórcio que estava pendente. Reencontrando enteadas, Ahmed se vê em meio à uma intrincada teia familiar cujos sentimentos não expressos estão se transformando em ácido e corroendo as paredes da prisão que aquelas pessoas construíram para si.

Os personagens de O Passado são seres humanos verossímeis e tridimensionais, agindo como pessoas do mundo real ao buscarem manter um clima afável e evitar confrontos o máximo que podem, muito embora isso vá se tornando cada vez mais difícil. Pois cada um daqueles indivíduos parece sufocado pelas coisas que não dizem e pelos sentimentos que não conseguem evitar e os fazem sofrer por jogar nos ombros de outros uma responsabilidade que ninguém pede. E a consciência disso aparentemente faz com que eles sofram muito mais, já que em sua maioria, as pessoas que aqui acompanhamos demonstram compreender que muito de suas tormentas se refere a eles mesmas, e que culpar outro alguém seria uma tentativa de escape injusta e insatisfatória, embora possa ser irresistível em sua facilidade.

Vejamos o exemplo de Samir. Novo namorado de Marie-Anne, o sujeito vive às sombras do relacionamento anterior da companheira, que ela, apesar das inúmeras verbalizações do contrário, parece ainda ligada. Ainda assim, ao invés de criar caso e um clima desconfortável, Samir busca agir civilizadamente e até prestativamente, muito embora esteja claro seu desgosto com a presença de Ahmed. Alérgico à tinta, o homem busca mostrar-se dedicado com a namorada quando insiste em pintar a casa desta, mesmo ficando com os olhos irritados; mas, apesar de tudo isso, pode-se notar certa hostilidade que acaba escapando pelas frestas, como quando diz que quem deve dar determinada bronca no garotinho Fouad é ele, porque este é seu filho. E muitos de seus comportamentos prestativos podem ser fruto de culpa, devido à conturbada situação de sua esposa, agora em estado de coma devido à uma tentativa fracassada de suicídio, e à consciência de que, aparentemente, qualquer forma que agir resultará em dor para alguém para quem só quer o bem. O caso é que Samir é um indivíduo complexo e multifacetado (interpretado com sensibilidade por Tahar Rahim) cujos comportamentos ambíguos e caóticos ao longo da projeção revelam toda a confusão que ele se encontra diante de si mesmo.

E confusão seria uma palavra adequada para definir Marie-Anne. Mulher de quase meia idade, Marie parece pular por vários relacionamentos e nunca conseguindo manter um, talvez por culpa de si mesma, de algo que diz respeito à sua personalidade. É aparente que há nela uma vontade latente de chutar o balde, e ela mesma não resiste a isso em diversos momentos, e às vezes até através de atitudes de revolta tolas e um tanto pueris como fumar em seu estado atual. Mas o que fica mais evidente é a sua tentativa de calar seus anseios, de buscar manter dentro de si muito do que quer gritar, para não acabar ferindo as pessoas que ama, e se muitas vezes não consegue resistir à vontade de ferir alguém, isso vem de algo que é natural de qualquer ser humano. Pois, em certo momento, mesmo diante de uma calma, porém insatisfatória, conversa, Marie não resiste e solta informações desnecessárias e venenosas a seu interlocutor, algo que ela sabe ser incrivelmente injusto, mas não consegue evitar. E toda a ambiguidade dessa figura tão fascinante é explorada brilhantemente por Bérénice Bejo (por quem nutro uma paixão platônica já faz tempo), criando uma mulher que, mesmo quando age de forma desprezível, não desperta a antipatia do espectador, que consegue sentir afeto por aquela figura tão demasiadamente humana.

Mesmo os mais jovens não são poupados, e vemos a adolescente Lucie (Pauline Burlet) sofrendo pela incompreensão de si mesma e do que quer, e assustando-se pelas atitudes maldosas das quais se mostra capaz, sendo, no entanto, incapaz de olhar na cara aquelas pessoas que feriu, e assim preferindo assumir uma postura hostil diante de quem, por mais errado que tenham agido, ainda assim não merecem o que Lucie fez. Até mesmo o pequeno Fouad (Elyes Aguis) já apresenta uma ambiguidade juvenil na confusão sentimental à qual foi inserido devido aos adultos que o cercam. Dentre todos os tão intensos personagens da obra (aqui não falei de todos até porque deixaria o texto longo demais), o único que parece mais calmo e pacífico é Ahmed, e muito pelo seu conturbado passado envolvendo depressão e tentativas de suicídio. Agora, o homem aparenta mais é tentar ser justo com todos em seu meio, sabendo seu lugar e buscando não ultrapassar limites, muito embora toda a calma que expressa contenha em si uma melancólica angústia.

Asghar Farhadi adota o mesmo estilo naturalista que já é marca registrada de seu trabalho, e mais uma vez exclui a trilha sonora, optando apenas por sons diegéticos, e um uso constante da câmera na mão, inquieta. Mas, assim como fez em seu soberbo A Separação, Farhadi consegue inserir nuances significativas na maneira como conta a história, e logo na primeira cena, o diretor demonstra sua inteligência quando Ahmed e Marie-Anne tentam conversar através de um vidro no aeroporto, falhando nessa tentativa pois não conseguem ouvir ou ao outro, numa bela demonstração de sua dificuldade de comunicação. É curioso ainda que a casa de Marie-Anne esteja em reforma, revelando assim portas e paredes descascadas, sofás cobertos por plásticos e latas de tinta espalhadas, num reflexo do próprio estado psicológico da anfitriã. Mais curioso ainda, nesse sentido, é que seja Namir quem esteja fazendo o trabalho de reforma, numa maneira metafórica de Farhadi explicitar o significado daquele indivíduo para a mulher. Falando em Namir, o diretor merece créditos pelo plano evocativo em que coloca esse personagem e Ahmed no mesmo quadro, durante vários segundos, causando um desconforto no espectador que é próximo do que aquele que os dois estão sentindo, ao mesmo tempo em que o diretor é mestre ao colocá-los usando indumentárias praticamente idênticas, ressaltando assim a semelhança entre os eles, que foi o que aproximou Marie-Anne de Namir. Bacana observar também como a chuva torrencial aqui serve como representação dos dilemas emocionais dos personagens

No fundo, O Passado merece mesmo status de obra-prima pela já martelada compreensão de Farhadi daquilo que significa ser humano. Os anseios incontroláveis, os sentimentos poderosos e confusos, a vontade de machucar outra pessoa, a sombra que nossas atitudes no passado lançam sobre nosso presente... toda a fragilidade que é o quebra-cabeça humano, cujas peças não estão muito unidas e equilibradas. Os personagens de Farhadi, assim como as pessoas do mundo real, são enigmas para si mesmos, e se inserem em complexos labirintos emocionais, chegando num ponto em que seria válido perguntar, afinal, qual seria o sentido daquilo tudo. Muito provavelmente não há sentido algum, mas é inegável que as teias de relacionamentos que criamos, por mais venenosas que possam vir a ser, são também o que garante algum sentido à nossa curta existência.

E é por me provocar reflexões como essa, mesmo aparentemente sem esse objetivo explícito (o filme é mais um drama de personagens do que uma reflexão sobre a humanidade como um todo), que coloco Asghar Farhadi em um pedestal. E se sua genialidade, por incrível que pareça, não tenha ficado óbvia durante o filme inteiro, o sublime plano final tirará qualquer dúvida disso, por conter em si toda a complexidade de um gesto ou da não existência desse gesto... e tudo o que isso pode significar.

*Outras análises minhas de filmes dirigidos por Asghar Farhadi:
  
     

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