Análise:
O Passado (Le Passé / 2013 / França, Itália) dir. Asghar Farhadi
por
Lucas Wagner
O que faz do iraniano
Asghar Farhadi um dos melhores diretores e
autores da atualidade é a sua capacidade de criar personagens que soam
reais, palpáveis, repletos de minúcias e personalidades tão imensamente
complexas, mas ainda se comportando como pessoas do cotidiano, permitindo
que estabeleçamos uma profunda ligação com cada um deles, principalmente por
sabermos que poderíamos encontrar alguém daquele jeito no padeiro da esquina,
ou no estranho que senta ao seu lado no cinema. Dito isso, esse seu novo filme,
O Passado, é uma obra humana e
impiedosa, que investe, nos seus 131 minutos de duração, numa dolorosa dissecação
de seus personagens, desnudando-os para si mesmos e para o espectador.
O roteiro do próprio
Farhadi tem início quando Ahmed (Ali Mosaffa) viaja à Paris para reencontrar a
mulher, Marie-Anne (Bérénice Bejo – suspiros apaixonados), e finalizar o
processo de divórcio que estava pendente. Reencontrando enteadas, Ahmed se vê
em meio à uma intrincada teia familiar cujos sentimentos não expressos estão se
transformando em ácido e corroendo as paredes da prisão que aquelas pessoas
construíram para si.
Os personagens de O Passado são seres humanos verossímeis
e tridimensionais, agindo como pessoas do mundo real ao buscarem manter um
clima afável e evitar confrontos o máximo que podem, muito embora isso vá se
tornando cada vez mais difícil. Pois cada um daqueles indivíduos parece
sufocado pelas coisas que não dizem e pelos sentimentos que não conseguem
evitar e os fazem sofrer por jogar nos ombros de outros uma responsabilidade
que ninguém pede. E a consciência disso aparentemente faz com que eles sofram
muito mais, já que em sua maioria, as pessoas que aqui acompanhamos demonstram
compreender que muito de suas tormentas se refere a eles mesmas, e que culpar
outro alguém seria uma tentativa de escape injusta e insatisfatória, embora
possa ser irresistível em sua facilidade.
Vejamos o exemplo de
Samir. Novo namorado de Marie-Anne, o sujeito vive às sombras do relacionamento
anterior da companheira, que ela, apesar das inúmeras verbalizações do
contrário, parece ainda ligada. Ainda assim, ao invés de criar caso e um clima
desconfortável, Samir busca agir civilizadamente e até prestativamente, muito
embora esteja claro seu desgosto com a presença de Ahmed. Alérgico à tinta, o
homem busca mostrar-se dedicado com a namorada quando insiste em pintar a casa
desta, mesmo ficando com os olhos irritados; mas, apesar de tudo isso, pode-se
notar certa hostilidade que acaba escapando pelas frestas, como quando diz que
quem deve dar determinada bronca no garotinho Fouad é ele, porque este é seu filho. E muitos de seus
comportamentos prestativos podem ser fruto de culpa, devido à conturbada
situação de sua esposa, agora em estado de coma devido à uma tentativa
fracassada de suicídio, e à consciência de que, aparentemente, qualquer forma
que agir resultará em dor para alguém para quem só quer o bem. O caso é que
Samir é um indivíduo complexo e multifacetado (interpretado com sensibilidade
por Tahar Rahim) cujos comportamentos ambíguos e caóticos ao longo da projeção
revelam toda a confusão que ele se encontra diante de si mesmo.
E confusão seria uma
palavra adequada para definir Marie-Anne. Mulher de quase meia idade, Marie
parece pular por vários relacionamentos e nunca conseguindo manter um, talvez
por culpa de si mesma, de algo que diz respeito à sua personalidade. É aparente
que há nela uma vontade latente de chutar o balde, e ela mesma não resiste a
isso em diversos momentos, e às vezes até através de atitudes de revolta tolas
e um tanto pueris como fumar em seu estado atual. Mas o que fica mais evidente
é a sua tentativa de calar seus anseios, de buscar manter dentro de si muito do
que quer gritar, para não acabar ferindo as pessoas que ama, e se muitas vezes
não consegue resistir à vontade de ferir alguém, isso vem de algo que é natural
de qualquer ser humano. Pois, em certo momento, mesmo diante de uma calma,
porém insatisfatória, conversa, Marie não resiste e solta informações desnecessárias
e venenosas a seu interlocutor, algo que ela sabe ser incrivelmente injusto,
mas não consegue evitar. E toda a ambiguidade dessa figura tão fascinante é
explorada brilhantemente por Bérénice Bejo (por quem nutro uma paixão platônica
já faz tempo), criando uma mulher que, mesmo quando age de forma desprezível,
não desperta a antipatia do espectador, que consegue sentir afeto por aquela
figura tão demasiadamente humana.
Mesmo os mais jovens
não são poupados, e vemos a adolescente Lucie (Pauline Burlet) sofrendo pela
incompreensão de si mesma e do que quer, e assustando-se pelas atitudes
maldosas das quais se mostra capaz, sendo, no entanto, incapaz de olhar na cara
aquelas pessoas que feriu, e assim preferindo assumir uma postura hostil diante
de quem, por mais errado que tenham agido, ainda assim não merecem o que Lucie
fez. Até mesmo o pequeno Fouad (Elyes Aguis) já apresenta uma ambiguidade
juvenil na confusão sentimental à qual foi inserido devido aos adultos que o
cercam. Dentre todos os tão intensos personagens da obra (aqui não falei de
todos até porque deixaria o texto longo demais), o único que parece mais calmo
e pacífico é Ahmed, e muito pelo seu conturbado passado envolvendo depressão e
tentativas de suicídio. Agora, o homem aparenta mais é tentar ser justo com
todos em seu meio, sabendo seu lugar e buscando não ultrapassar limites, muito
embora toda a calma que expressa contenha em si uma melancólica angústia.
Asghar Farhadi adota o
mesmo estilo naturalista que já é marca registrada de seu trabalho, e mais uma
vez exclui a trilha sonora, optando apenas por sons diegéticos, e um uso
constante da câmera na mão, inquieta. Mas, assim como fez em seu soberbo A Separação, Farhadi consegue inserir
nuances significativas na maneira como conta a história, e logo na primeira cena,
o diretor demonstra sua inteligência quando Ahmed e Marie-Anne tentam conversar
através de um vidro no aeroporto, falhando nessa tentativa pois não conseguem
ouvir ou ao outro, numa bela demonstração de sua dificuldade de comunicação. É
curioso ainda que a casa de Marie-Anne esteja em reforma, revelando assim
portas e paredes descascadas, sofás cobertos por plásticos e latas de tinta
espalhadas, num reflexo do próprio estado psicológico da anfitriã. Mais curioso
ainda, nesse sentido, é que seja Namir quem esteja fazendo o trabalho de reforma,
numa maneira metafórica de Farhadi explicitar o significado daquele indivíduo
para a mulher. Falando em Namir, o diretor merece créditos pelo plano evocativo
em que coloca esse personagem e Ahmed no mesmo quadro, durante vários segundos,
causando um desconforto no espectador que é próximo do que aquele que os dois
estão sentindo, ao mesmo tempo em que o diretor é mestre ao colocá-los usando
indumentárias praticamente idênticas, ressaltando assim a semelhança entre os
eles, que foi o que aproximou Marie-Anne de Namir. Bacana observar também como
a chuva torrencial aqui serve como representação dos dilemas emocionais dos
personagens
No fundo, O Passado merece mesmo status de obra-prima pela já martelada compreensão de Farhadi
daquilo que significa ser humano. Os anseios incontroláveis, os sentimentos
poderosos e confusos, a vontade de machucar outra pessoa, a sombra que nossas atitudes no passado lançam sobre nosso presente... toda a fragilidade
que é o quebra-cabeça humano, cujas peças não estão muito unidas e
equilibradas. Os personagens de Farhadi, assim como as pessoas do mundo real,
são enigmas para si mesmos, e se inserem em complexos labirintos emocionais,
chegando num ponto em que seria válido perguntar, afinal, qual seria o sentido
daquilo tudo. Muito provavelmente não há sentido algum, mas é inegável que as
teias de relacionamentos que criamos, por mais venenosas que possam vir a ser,
são também o que garante algum sentido à nossa curta existência.
E é por me provocar
reflexões como essa, mesmo aparentemente sem esse objetivo explícito (o filme é
mais um drama de personagens do que uma reflexão sobre a humanidade como um
todo), que coloco Asghar Farhadi em um pedestal. E se sua genialidade, por incrível
que pareça, não tenha ficado óbvia durante o filme inteiro, o sublime plano
final tirará qualquer dúvida disso, por conter em si toda a complexidade de um
gesto ou da não existência desse gesto... e tudo o que isso pode significar.
*Outras análises minhas
de filmes dirigidos por Asghar Farhadi:
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