Análise:
Inside Llewyn Davis –
Balada de um Homem Comum (Inside Llewyn Davis / 2013 / EUA) dir.
Joel & Ethan Coen
por
Lucas Wagner
Um microfone. De
repente um rosto barbado com um cabelo desgrenhado começa a cantar uma canção,
acompanhado apenas de seu violão e seus sentimentos, sobre ter visto muito do
mundo, ter caminhado bastante e finalmente poder morrer em paz, pois não há
nada mais para ser visto. Depois de um bom tempo focado apenas no rosto do
cantor e no microfone, começamos a ver os espectadores, todos em silêncio
respeitoso, com os rostos encobertos por sombras e fumaça, como se suas
identidades não importassem naquele momento. Depois da apresentação, o cantor
toma uma surra de um desconhecido cujo rosto não conseguimos distinguir (está
muito escuro), e nem sabe o motivo da agressão, mas fica largado no chão de um
beco escuro e gelado...
É assim que os
maravilhosos irmãos Joel e Ethan Coen iniciam seu novo longa metragem, já
estabelecendo o rumo de seu projeto, que acompanha uma semana da vida do cantor
folk Llewyn Davis (interpretado por
Oscar Isaac), cuja paixão pela sua Arte o tornou resiliente o suficiente para
ter chegado no deplorável estado que se encontra: o de um saco de carne
inexpressivo e exausto, que constantemente apanha de sua própria vida sem
motivo aparente a não ser como uma forma de piada cósmica cruel. Nesse
processo, os irmãos não criam uma história torturante mas, como adoram fazer,
exploram o humor que existe naquele universo, embora nunca deixando de se
banharem na doce, bonita e doída melancolia que envolve toda essa história.
Em primeiro lugar, é
notável a sabedoria dos irmãos ao negarem a tentação de realizar seu filme em
preto e branco, uma opção que a atmosfera da narrativa justificaria, mas que
seria dolorosamente óbvia. Ao invés disso, os irmãos e o diretor de fotografia
Bruno Delbonnel (de O Fabuloso Destino de
Amélie Poulain) optam por um trabalho mais singular, onde o último pode
empregar tranquilo o aspecto plástico que limpa a imagem de praticamente toda
granulação e que caracteriza seus trabalhos anteriores, pois o objetivo aqui é
criar um mundo dolorosamente triste (cuja iluminação fria e os ambientes
escuros e esfumaçados criam essa sensação), mas também belo, pois há uma poesia
quase misógna na imagem do artista que passa fome mas não desiste de sua Arte.
Os realizadores ainda são inteligentes ao usar as cores com um sentido
narrativo, já que colorem a obra com tons de um azul escuro e triste (blue, em inglês, também significa
“tristeza”) e também com um sutil e eficientíssimo uso de um verde amarelado
que transmite a idéia de putrefação, estado em que se encontra a vida de muitos
dos personagens.
Pois não é só Davis que
sofre com sua Arte, mas a maioria dos personagens são artistas de alguma forma.
E assim, os irmãos demonstram sensibilidade ao prestar atenção na alegria com
que esses indivíduos cantam suas músicas, ou, no caso do personagem de Garrett
Hedlund, lêem seus poemas. Até mesmo a velocidade dos cortes muda, já que
ganham em velocidade quando, por exemplo, vemos um trio gravando uma canção, e
a energia da montagem contrasta com o restante da projeção. Aliás, contraste é
mesmo a palavra certa para as expressões nos rostos dos personagens, que
claramente se iluminam ao cantar (ou ler) para logo depois voltar a cenhos
fechados e cansados. E os irmãos são ainda mais geniais ao não enfocarem apenas
esse tipo de rosto, mas atentam para o otimismo e bondade existente no soldado/cantor
do início da projeção ou no Jim interpretado com sensibilidade por Justin
Timberlake, que, diferente do resto do elenco, tem uma indumentária com cores
mais alegres e chamativas, embora um tanto desbotadas.
Inteligentemente
ambientado no período do inverno (e é importante ressaltar que, com o decorrer
da projeção, mais neve seja vista nos cenários), Inside Llewyn Davis pode apresentar certa universalidade na
temática do artista sofrido, e isso fica ainda mais evidente quando o
protagonista vai empurrar para debaixo de um móvel uma caixa cheia de seus LPs
ignorados, mas é impedido por outra caixa cheia também do mesmo conteúdo, mas
agora com o nome do rapaz com quem está dividindo o teto naquela noite. Mas o
longa é mesmo um estudo de personagem de Llewyn Davis, o que os Coen reforçam o
tempo todo ao trazerem imagens prosaicas, mas por vezes até divertidas, do
cotidiano do protagonista, como quando deita num sofá e o testa com o seu
corpo, como um especialista em sofás (afinal, dorme de favor na casa de amigos
toda noite).
Davis tem a expressão
constantemente fatigada, e até sua voz, quando não está cantando, não apresenta
particular força, numa demonstração de talento do ator Oscar Isaac ao manter a
inexpressividade sonolenta o tempo todo e a voz baixa e cansada. Davis muda
essa expressão apenas quando canta, pois ai sim seu rosto se contorce em sinal
de dor quando seus sentimentos rasgam por sua garganta, e Isaac acerta novamente
na maior expressividade do rosto nessas cenas, quando chega até mesmo a fechar
os olhos. Mas se sofremos com ele, fica difícil simpatizar com o mesmo, já que
o rapaz há muito já perdeu o orgulho próprio, e não hesita nem mesmo ao,
descaradamente, pedir um teto à um sujeito que nunca antes viu, e ainda fechar
a cara quando perguntam até quando ele vai precisar de abrigo. Seu orgulho só
se mostra mesmo quando se trata de pedir teto ao casal de velhinhos ricos que
sempre estão dispostos a abrigá-lo, mas que ele sempre evita.
Mesmo a paixão ardente
que sente pela música parece vir com certo esforço, como se Davis, em seus
discursos idealistas contra carreiristas, estivesse tentando provar para si mesmo
que lutar ainda vale a pena. Mas mesmo ele sabe a dureza da realidade, e por
isso mesmo um dos momentos mais doídos da projeção é quando, depois de cantar
fervorosamente para conseguir um bico num bar, recebe como resposta do dono que
“Não vê dinheiro ali”, e responde, sem raiva, ou mesmo alterar a expressão:
“Tudo bem”. E é por isso que, quando finalmente parece querer entregar as
pontas, sabemos a dor que vem acompanhando essa decisão, por mais que seus
músculos faciais pareçam não ter força nem mesmo para se contrair.
Inside
Llewyn Davis prova mesmo ser uma verdadeira obra
prima são nas nuances da belíssima direção (para variar) dos irmãos Coen. Em
certo momento, por exemplo, vemos Davis pedindo carona sozinho em uma estrada
noturna, coberta por uma névoa fantasmagórica, numa cena contemplativa que parece sintetizar toda a
obra, toda a existência do personagem e mesmo encontrar eco em temas das
canções típicas do folk, que sempre
tratam de “adeus” (farewell) e
soturnas existências à deriva. Em outro belíssimo momento, Davis dirige, com
sono, em uma estrada de madrugada, escutando ópera, e toda a sequência tem um
caráter transcendental, como se o personagem estivesse atravessando uma outra
dimensão (o plano que mostra a estrada e os flocos de neve em movimento
iluminados por faróis), até que Davis tenha que desviar o carro para não
atingir um gato. Ao ver o pára-choque sujo de sangue, pensa que o bicho morreu,
até que o vê (alucinação?) entrando na mata sombria. E há aqui um belo
simbolismo de uma visão de entrega do protagonista. Aliás, o gato é um animal
recorrente na obra, talvez pelo mito de “ter sete vidas”, como o próprio Davis,
que parece constantemente morrer para tentar renascer de novo.
Além de tudo isso, há o
detalhe dos corredores dos apartamentos em que Llewyn se hospeda, já que a
maioria são tão apertados que causam certa claustrofobia, numa tentativa de ilustrar
os sentimentos de Davis, algo que os Coen, geniais, aproveitam até para fazer
piada, numa cena em que o corredor apertado causa um desconfortável empecilho.
E está aqui outro grande elemento do filme: o humor. Pois Inside Llewyn Davis não é uma obra apenas triste, já que os Coen
encontram espaço de sobra para inserir boas doses de seu peculiar senso de
humor, investindo em diálogos bizarros como aquele que fala sobre um senhor que
gosta de ir a funerais, ou ainda situações mais rasgadas como as desventuras de
Davis para encontrar um gato fujão, o passageiro do carro que dorme mesmo
diante de pesadas turbulências e, é claro, a fala: “onde está o escroto dele?!”.
Qualquer cena com John Goodman também merece destaque nesse sentido.
Por fim, Inside Llewyn Davis é um filme que
funciona à altura de obras literárias tematicamente semelhantes, como Factótum, de Charles Bukowski, pois
abarca em si os sentimentos profundos de uma existência que não faz sentido
fora da Arte mas que também está meio caótica dentro dela. Essa nova obra-prima
dos irmãos Coen é, à sua própria maneira, uma canção folk, como aquelas que tão gentilmente nos guiam durante a
projeção, com todo o carinho pela palavra "adeus" expresso nas letras, o que não deixa de ser um sintoma de uma vida que é também um longo farewell...
OBS: Genial, para os
fãs do folk (como esse que vos fala)
vermos Bob Dylan no início de carreira, no fim do filme. Obrigado, irmãos Coen,
pelo sorriso que me proporcionaram quando percebi isso.
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