Crítica The World’s End (The World’s
End / 2013 / Reino Unido) dir. Edgar
Wright
por
Lucas Wagner
A chamada Trilogia “Sangue e Sorvete” (ou
Trilogia Cornetto) lançou o que hoje é um dos mais interessantes cineastas da
atualidade, o britânico Edgar Wright, além de apresentar a excelente dupla de
comediantes Simon Pegg e Nick Frost. Assim, é natural que esse último capítulo,
The World’s End, tenha gerado tanta
expectativa entre cinéfilos do mundo todo (inclusive este que vos fala). E
posso dizer, muito feliz, que o filme cumpre perfeitamente essas expectativas,
sendo tão inteligente, divertido e empolgante como os dois capítulos
predecessores, Chumbo Grosso e a obra-prima
Todo Mundo Quase Morto.
Novamente escrito por Wright e Simon Pegg
(que interpreta o protagonista dos três filmes), o longa trata do reencontro de
cinco amigos de infância, arduamente reunidos por Gary King (Pegg), para tentar
realizar o desafio de, em uma noite, beber em todos os pubs de sua pequena
cidade natal até chegar no último, o The World’s End, empreitada que tentaram
uma vez, quando jovens, e falharam. Porém, esse desafio pode ser maior ainda,
agora que a cidade parece tomada por alienígenas.
Os filmes da Trilogia “Sangue e
Sorvete”/”Cornetto” são, em sua base, homenagens/paródias de gêneros
consagrados. Em Todo Mundo Quase Morto,
eram os filmes de zumbis de George Romero (diretor do clássico Noite dos Mortos-Vivos), ao passo que em
Chumbo Grosso o alvo eram os longas
policiais da década de 90. Aqui, obviamente, são os filmes de invasão
alienígena, mas mais particularmente o clássico Vampiros de Almas, além de diversos
trabalhos do diretor John Carpenter. Mais interessante é notar a inteligência
de Pegg e Wright ao aprofundarem mais no significado desta homenagem. Assim
como em Todo Mundo Quase Morto eles
criaram uma metáfora social através dos zumbis (como Romero fazia em seus
filmes), em The World’s End compreendem
que Vampiros de Almas trazia uma
crítica à sua época (o Macartismo).Assim, Pegg e Wright criam uma trama repleta de camadas críticas e sociais que
enriquecem enormemente o trabalho.
A verdadeira genialidade de The World’s End esta em justamente saber
adequar o contexto crítico advindo da homenagem cinematográfica à questões em
que Wright já demonstrou preocupação e interesse, particularmente em Todo Mundo Quase Morto e Scott Pilgrim – Contra o Mundo. Wright
parece se interessar pela temática do jovem-adulto (ou adulto) tentando se
adaptar à uma sociedade pré-estabelecida, sendo obrigado a assumir
responsabilidades e abrir mão de prazeres antes tão queridos em sua
imaturidade. Se em Scott Pilgrim tal
adaptação era vista com bons olhos, Todo
Mundo Quase Morto trazia uma complexidade maior na ambiguidade da questão dos benefícios dessa adaptação. Ambiguidade essa que retorna em The World’s End, que acerta ao não assumir um lado. Afinal, a vida
dos amigos “maduros” de Gary não é tão grande coisa assim, mas parece sem cor,
segura e certinha demais, ao passo que a animação e loucura de Gary não é lá
muito saudável, já que a realidade é dura com aqueles que se prendem ao
passado. Mas onde é que está o erro então? Como devemos conduzir nossa vida? E
é aqui que o longa busca uma complexidade ainda maior do que nos outros trabalhos
de Wright.
O que enfrentamos é na verdade uma sociedade
doente. Por que será que o considerado correto é se adaptar à normas e regras
do que é “certo”? Até onde fazer o “certo” é o mais saudável? Afinal, não é a
toa que crises existenciais sejam algo tão frequente naqueles que chegam na
média dos 40 anos. A sensação de que a vida deveria ser algo a mais, de que nos
foi feita uma promessa quando éramos jovens, e que essa promessa se revelou uma
mentira (algo que é dito quase literalmente em um dos melhores diálogos do
filme). Em nome do progresso, nos rebaixamos à uma existência monótona que joga
fora todo o amor, o desejo e a paixão (outro diálogo literal). Assim, os
alienígenas do filme são uma clara metáfora para a sociedade adulta (não é a
toa que em certo momento eles são comparados à professores), que na tentativa
de “educar” (ou adaptar) acabam é extirpando a humanidade que nos era cara, nos
condenando à uma vida repleta de arrependimentos e ligada no passado.
Como se não bastasse, a complexidade temática
dessa comédia apocalíptica alcança ainda maior abrangência ao abrir caminho
para diversas discussões que, no entanto, exigem maior número de visitas ao
longa. É interessante que seja na cidade onde cresceram que esse grupo de
amigos agora esteja enfrentando tamanho risco de vida, como se metaforicamente
enfrentassem o desconhecido de uma cidade que mudou com o envelhecimento.
Também, a caminhada deles pela cidade, quando voltam adultos, revela diversos
cidadãos envelhecidos (indo contra a lembrança jovial que eles tem de lá) e
alguns jovens bem diferentes do que eles foram (e assim, a tomada que mostra os
amigos descendo uma rampa no caminho contrário de alguns adolescentes é
particularmente interessante). Wright e Pegg também acertam ao lembrar de
alguns tristes efeitos da globalização, como no fato de os pubs, tão singulares
e charmosos antigamente, agora estarem se "starbuckzando", se
padronizando. Os efeitos da alta tecnologia também não são esquecidos, e todas
essas questões são perfeitamente incluídas na metáfora geral dos alienígenas.
Mas The
World’s End, mesmo tratando de questões sérias, não deixa de ser um filme de comédia e ação extremamente eficaz.
Edgar Wright possui um estilo inconfundível e insano, com cortes rápidos,
chicotes (movimento rápido da câmera de um lado para outro) e movimentos
malucos com a câmera, sob um som que traduz essa velocidade, além de uma
inventividade técnica sublime. Durante a metade inicial da obra, Wright se
mostra até mais tímido do que o habitual, mas isso é narrativamente adequado, e
é alterado quanto mais a trama ganha velocidade, e o diretor nos delicia com
sequências de luta espetaculares e estupidamente bem coreografadas e engraçadas
(Gary tentando beber sua cerveja enquanto luta é genial!), além de
brilhantemente filmadas, em planos longos que conferem um tom de continuidade ideal,
além de uma leve aceleração das imagens, dando um toque ainda mais louco e
divertido. Em questão de humor (físico e verbal), The World’s End pode não ser tão hilário como os filmes anteriores
do diretor, mas com certeza garante muitas risadas. Para completar, a trilha
sonora de Steven Price (o mesmo de Gravidade)
está fantástica, inventiva e frenética como deveria ser, ao passo em que Wright
demonstra o mesmo bom gosto na seleção de músicas já existentes, como no toque
de gênio ao incluir um momento ao som de Alabama
Song, de The Doors.
À tudo isso se adiciona um elenco impecável.
Eddie Marshal, Paddy Considine e Martin Freeman (o Bilbo de O Hobbit, e Watson do seriado Sherlock) estão perfeitamente adequados
como, respectivamente, Steven, Peter e Oliver, mostrando a gradual insanidade e
leveza que eles vão adquirindo ao longo da projeção, enquanto Rosamund Pike
representa muito bem o papel feminino do longa, Sam, e que mais uma vez (como
em todos trabalhos do diretor) representa a voz da razão entre um grupo de
machos claramente confusos. Pierce Brosnan empresta um enorme charme numa
composição ideal como o ex-diretor da escola, principalmente no trabalho de
voz, que transmite zombaria e pomposidade; falando em trabalho de voz, Bill
Nighy (um dos colaboradores habituais do diretor) surpreende em um diálogo
interessante. Já Simon Pegg está ótimo como sempre, compondo Gary King como um
sujeito ao mesmo tempo cômico e comovente em seu apego ao passado, mas é Nick
Frost quem dessa vez rouba a cena numa performance mais complexa do que o
habitual, criando um Andrew ambíguo e tridimensional em sua seriedade e na
transformação que vai sofrendo ao longo do filme.
Exemplo raro de longa de ação/comédia
preocupado não apenas em divertir mas também em fazer pensar, The World’s End é mais um acerto no
currículo até agora impecável de Edgar Wright, como eu já disse, um dos
cineastas mais interessantes da atualidade. Mas bem que eu queria mais filmes
“Sangue e Sorvete”...
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