Crítica Blue Jasmine (Blue Jasmine /
2013 / EUA) dir. Woody Allen
por Lucas Wagner
Em
toda a sua longa carreira, o cineasta Woody Allen pareceu particularmente
interessado em investigar o caos que compõe os sentimentos e relacionamentos
humanos, muitas vezes utilizando-se de um viés cômico, e outras um mais
melancólico. Assim, Blue Jasmine revela-se
uma exploração tragicômica de diversas figuras sentimentalmente ambíguas, mas é
principalmente um angustiante estudo de uma personagem destruída.
Com roteiro do próprio Allen (como sempre), o
longa tem como protagonista Jannette, que trocou seu nome por um mais chique:
Jasmine (Cate Blanchett). De rica e poderosa, frequentadora de uma sociedade de
classe alta, Jasmine passa a mulher pobre e psicologicamente debilitada, que é
obrigada a morar com a irmã bem mais humilde, Ginger (Sally Hawkins).
Jasmine seria um caso clínico interessantíssimo
para estudar em Psicologia. Mulher completamente desadaptada, Jasmine prefere
viver em seu próprio mundinho, sempre virando a cara para o que possa se
revelar aversivo, o que nem sempre é algo feito conscientemente pela personagem.
Mentindo até a alma para garantir sua imagem, Jasmine parece correr sempre de
uma auto-análise, e é essa completa desestrutura que ela tem para se enxergar e
se comportar de forma adequada ao ambiente que serve como elemento definitivo para
que ela sucumba à um colapso nervoso quando fica impossível virar a cara para a
realidade.
Diante disso, é até irônico que ela ambicione
(pelo menos é o que ela diz) se tornar designer de interiores, o que é curioso
se lembrarmos que outra das mais problemáticas personagens de Allen tinha essa
mesma profissão, a Eve do trágico Interiores, de 1978. É irônico porque, como essa
outra personagem, Jasmine não tem qualquer capacidade de enxergar seu próprio
interior, e parece procurar na decoração de um ambiente externo a falta de
estrutura de seu ambiente interno. Com seu colapso nervoso, Jasmine se fecha de
maneira mais preocupante ainda, e começa a estabelecer não diálogos com
interlocutores, mas sim monólogos delirantes sobre sua finada vida como rica.
Mais sintomático ainda é quando ela literalmente começa a falar sozinha,
olhando pro espaço vazio à sua frente e repetindo diálogos que aconteceram no passado, como mecanismo de defesa
contra um presente aversivo. Assim, é perdoável que Allen tenha optado por uma
estrutura toda em flashbacks, já que
isso encontra sentido narrativo de forma orgânica nos delírios de volta ao
passado da protagonista, além de ser uma estrutura que serve para resguardar
uma importante revelação no terceiro ato.
E é Cate Blanchett a grande rainha do filme.
Dona de uma carreira repleta de performances memoráveis (O Aviador, Não Estou Lá, Notas Sobre Um Escândalo, etc),
Blanchett consegue um de seus melhores trabalhos (senão o melhor). Abraçando
com vontade a antipatia dessa personagem, a atriz em nenhum momento aposta numa
atuação mais doce ou que tente redimir Jasmine de alguma maneira. Realmente, é
uma pessoa detestável e com quem ninguém suportaria conviver na vida real. Ainda
assim, é surpreendente que Blanchett consiga permitir que nós nos compadeçamos
dela, e isso principalmente pelo fato de a atriz investir em sutilezas que
denunciam todo o dano interno da protagonista, como na tremedeira involuntária
que passa a ser quase constante a partir da metade da projeção, ou ainda
através do estado quase catatônico que assume quando paralisa seu olhar num
ponto fixo no horizonte ou quando começa a repetir seus diálogos do passado. E
é divertido ainda que a atriz sempre mantenha a cabeça erguida, representando a
tentativa de Jasmine de “manter a classe” mesmo quando no fundo do poço.
E Allen também merece elogios no tratamento
da personagem. Sem buscar suavizá-la, o direotr/roteirista acerta ao criar
momentos intimistas que permitem que o espectador se aproxime da protagonista,
como quando ela chora um choro doído porém aliviado depois de receber o
telefonema de um possível namorado. Ainda, o diretor é hábil ao conseguir fazer
com que o espectador perceba a clara distância das duas vidas de Jasmine através
da fotografia de Javier Aguirresarobe, ou da direção de arte (a casa da irmã e
sua antiga mansão) e a escolha de localizações, que antes eram ambientes
luxuosos e limpos e depois passam a ruas sujas e movimentadas. O uso da trilha
sonora também é altamente eficaz. Abusando do jazz (como de hábito), Allen evita o silêncio angustiante de outros
dramas seus (Interiores, Setembro, A Outra, etc) e usa os sons de saxofones e baterias tanto em
momentos mais cômicos como nos mais dramáticos/pesados, como se ressaltando o caos de
tudo que estamos vendo. No geral, o diretor mantém seu estilo de sempre, com
diversos planos sequências discretos, além de closes e primeiros planos reveladores.
Mas como disse no primeiro parágrafo, Woody
Allen volta a explorar o caos dos relacionamentos humanos através de uma
coleção de personagens extremamente ambíguos que se comportam de forma aparentemente
desordenada, mas que na verdade só estão agindo de acordo com os sentimentos. Assim,
Ginger é uma figura fascinante ao demonstrar diversas facetas na sua relação
com Al (Louis C.K.) e Chili (Bobby Cannavale): ela viaja desde a excitação sexual
pelo segundo (musculoso) até o interesse pela estabilidade prometida pelo
primeiro (gordo e feio), e faz isso de forma natural (ponto para a atuação de
Sally Hawkins), realmente sentindo diversas e complexas emoções. Já Chili é um
personagem extremamente complexo no seu comportamento contrastante, violento e
apaixonado, numa atuação impecável de Bobby Cannavale. Enquanto isso, Louis C.K. (comediante genial cujo seriado, Louie,
tem grande inspiração nos filmes de Woody Allen) consegue interpretar muito bem
um sujeito com auto-estima alta (diferente da auto-crítica que constantemente
faz em seus stand-ups), e Alec
Baldwin acerta na frieza da performance do ex-marido de Jasmine, ao passo que
Peter Sarsgaard acerta ao transformar Dwight num sujeito melancólico na falta
que ainda parece sentir da finada esposa. Todos esses personagens ressaltam, à
sua própria maneira, o universo caótico dos sentimentos humanos, em subtramas
lindamente escritas por Allen.
Com um senso de humor adequadamente sutil (a
velhinha falando sobre como são especiais os dias em que faz colonoscopia é um
perfeito exemplo), Blue Jasmine é no
geral uma obra profundamente dolorosa, que teria sido ainda melhor se tivesse
acabado uma cena antes do que acabou, já que reforçaria ainda mais o caos
imprevisível dos sentimentos. Ainda assim, o plano final é perfeito pela
melancolia massacrante com que lança o espectador para fora do cinema, permitindo
que a tragédia da história de Jasmine continue ressoando em nossas cabeças
durante um bom tempo.
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