Crítica Os Suspeitos (Prisoners / 2013 / EUA) dir. Denis Villeneuve
por
Lucas Wagner
Como o maravilhoso Sobre Meninos e Lobos, de Clint Eastwood, e como o jogo de PS3 Heavy Rain, esse Prisoners (me nego a usar o título nacional) é um suspense
policial que possui em seu cerne dilemas morais, trabalhados em cima de uma
trama que envolve investigação e o comportamento de pais desesperados com a
ausência de seus filhos. Com base nisso, o cineasta canadense Denis Villeneuve
cria um suspense pesado em seu tom melancólico, visando mais a psicologia de
seus personagens do que perseguições e violência.
O roteiro de Aaron Guzikowski trabalha com o
sumiço de duas garotinhas durante o jantar de Ação de Graças. O pai de uma
delas, Keller Dove (Hugh Jackman) começa a ficar insatisfeito com o trabalho da
polícia, nas mãos do detetive Loki (Jake Gylenhaal), e decide que a justiça
será feita mais rapidamente se por suas próprias mãos.
Muitos espectadores imaturos poderiam se
irritar com a calma do longa, mas esse é justamente um dos acertos do projeto,
já que o diretor Villeneuve foca suas forças em desenvolver uma atmosfera de
intensa opressão e melancolia. A opção por ambientar o longa no período do
inverno se dá justamente para que o clima e a geografia dominadas pela neve
possam corroborar para a construção do constante estado de tristeza da obra; e
assim, chuva forte vem em momentos chave para poder representar a catástrofe
emocional que os personagens estão vivendo (e o uso de tal fenômeno como elemento simbólico realça ainda mais
a semelhança do projeto com o supracitado Heavy
Rain).
A
direção de fotografia assinada pelo gênio Roger Deakins (junto com Emmanuel
Lubezki, o melhor em atividade) busca sempre trabalhar com uma paleta de cores
frias e tristes, usando muito o marrom, o branco e o cinza para isso. Também o
jogo de sombras promovido por Deakins é essencial por ressaltar o lado sombrio
que vai surgindo naqueles personagens. O figurino e a direção de arte seguem a
mesma lógica melancólica, sendo ajudados pela trilha sonora de Jóhann
Jóhannsson que usa o violino, violoncelo e o órgão de maneira evocativa.
Marcada por um minimalismo absoluto, a
direção de Villeneuve voluntariamente corre daquilo que seria mais esperado.
Assim, cenas que trariam elementos já batidos dos suspenses (como um policial
descobrindo uma vítima) são delicadamente passados por cima através do uso de fade outs, como se o diretor dissesse: “o
filme já está longo demais, portanto vamos ao que realmente importa?”. Esse
minimalismo também fica evidente na economia com que o diretor transmite informações
valiosas para a compreensão dos personagens, como a foto de jornal que fala
sobre o suicídio do pai de um deles, ou as tatuagens que Loki trás em seu
pescoço e na mão.
Villeneuve parece mais focado é na sutileza da
composição de quadros que surgem evocativos por si só, já que constroem
atmosferas perfeitas apenas com o posicionamento de câmera, seja inclinando-a
ou posicionando de determinada forma no ambiente que transmita noção de
claustrofobia. E também não há como não admirar a habilidade de Villeneuve e
Deakins numa sequência quase transcendental em que acompanhamos um carro (cujo
motorista está ferido e perdendo consciência) em alta velocidade indo para o
hospital, e em que as luzes do tráfego surgem fortes e brilhantes, numa representação
ideal do estado mental do motorista na hora.
Prisoners
carrega em si uma carga religiosa, mais notadamente católica. O longa se
inicia com uma oração, e em diversos quadros podemos vislumbrar cruzes, além do
fato de Loki ter em sua mão uma tatuagem em forma de cruz. Mais acurado talvez
fosse dizer que a obra possui caráter de culpa católica (só que sem o vermelho
característico de Scorsese, cujas obras giram em torno do tema). Aquele
universo opressivo é marcado por indivíduos que, na busca por fazer o bem e
viver uma vida saudável e correta, se desviaram violentamente do curso
(inclusive um padre), e assim, é sintomático que em certo momento um personagem
não consiga terminar a oração do Pai-Nosso, mais especificamente a parte que
envolve “perdoar aos outros como perdoamos aqueles que nos tem ofendido”.
E é por isso que defendo tanto o título
original do filme, que fala de Prisioneiros
e não de Suspeitos. Todos aqueles
indivíduos criaram prisões para si mesmos. Suas crenças baseadas em bondade e
amor no fim são sabotadas pelo destino ou por pessoas cujo destino foi
destruído pelo acaso, e assim se prendem em estados emocionais ou
comportamentos que beiram a patologia. Chega a ser irônico que tenha acontecido
tal incidente trágico contra Keller, cujo lema era sempre “Reze pelo melhor; se
prepare para o pior”. E assim, essas pessoas vão mergulhando em labirintos
infinitos, se perdendo cada vez mais na busca por encontrar a si mesmos ou ao
menos uma ordem para o caos de tudo ao redor (não é atoa que o labirinto surja
também como símbolo concreto na trama).
Pois não é senão em um intricado conflito
moral aquele em que vivem os prisioneiros do filme. O que faria um ser humano
como nós naquelas condições? Até que ponto seríamos capazes de ir para salvar
alguém que amamos? Para lutar pelo que acreditamos? Mais importante: até que
ponto poderíamos responder essas perguntas e não trair a nós mesmos?
Massacrados por essas questões, os
personagens de Prisoners vão se
tornando cascas de carne do que um dia foram humanos. Contando com um elenco
primoroso, é uma pena, no entanto, que os realizadores não tenham conseguido
tirar o maior proveito deles. Quem mais sai prejudicado são Viola Davis e Maria
Bello, presas em personagens que não encontram muito espaço para
desenvolvimento (embora a segunda protagonize uma tocante cena em que entra em confusão
psíquica diante da dor e incerteza). Terrence Howard e Melissa Leo, no entanto, conseguem extrair o máximo
de seus papeis, com o primeiro trabalhando bem a confusão volitiva de Franklin,
ao passo que Leo está simplesmente aterradora como Holly Jones.
Hugh Jackman e Jake Gyllenhaal, no entanto,
são os maiores (dentro os já vários citados!) trunfos de Prisoners. Jackman demonstra entrega total ao papel de Keller, e
cria um indivíduo complexo e trágico cuja própria vida seguindo regras e um
código moral firme traduz amor pelos filhos e uma preocupação em fazer o certo
e estar preparado sempre. E é por isso que o arco dramático do personagem é tão
trágico, pois as contingências que o controlam vão espremendo-o até limites
inimagináveis. Jackman, sempre competente, não permite que Keller, por causa de
seus estouros de raiva, se torne um personagem meramente assustador; suas convicções
são reais e sua determinação, tocante. Não há prazer nos atos de Keller, apenas
pura dor. E assim, Jackman merece aplausos por um momento em que derrama uma
lágrima solitária, como sinal de um pequeno alívio de Keller depois de muita
luta.
Já o detetive Loki é o personagem mais
complexo e fascinante do filme. Não graças ao roteiro, já que, nesse ponto,
este erra ao não explorar as particularidades da personalidade de Loki, já que
sempre o foca no trabalho, e dá poucas informações sobre seu passado (embora dê
uma valiosa, de maneira rápida que pode passar despercebida, na cena em que
agride o padre). Mas Gylenhaal e Villenevue sabem guiar Loki para a perfeição.
Percebam como Villenevue parece filmar diversas vezes o investigador de costas
olhando alguma coisa (inclusive é o modo como o apresenta). Tal estratégia pode
ser para ressaltar (simbolicamente) a determinação do policial, já que o enfoca
dirigindo-se à alguma coisa, algum objetivo. As tatuagens são também
reveladoras por conter carácteres religiosos, pegando elementos do
cristianismo, e o octagrama no pescoço que é sinal de esperança em diversas
crenças. Essas tatuagens também podem ressaltar um caráter de rebeldia contida
no personagem.
Com isso, Gylenhaal entrega um de seus
melhores trabalhos de sua já tão admirável carreira. O Loki de Gylenhaal é um
sujeito honesto cujo maior defeito seja talvez se entregar demais ao que faz,
envolvendo-se emocionalmente com seu trabalho (algo que pode ter origem na sua
infância, como fica claro no ato falho da fala que diz ao padre). Apesar da
aparente calma, Loki é um indivíduo com certa fúria e raiva dentro de si, algo
que busca guardar o máximo possível mas que pode escapar de forma total
(observem o momento em que interroga Alex) ou através de sinais psicossomáticos
como o constante tique nervoso de piscar os olhos (detalhe sublime da atuação de
Gylenhaal). O modo como responde à agressividade alheia também revela um ponto
passivo-agressivo ao, mesmo aturando os estouros de Keller, o fazer carregando
um sorriso no rosto, um sorriso de certo desafio (outro toque de genialidade de
Gylenhaal). Ainda assim, Loki é um bom homem, que se dedica de corpo e alma ao
que faz e que por isso mesmo se perde em seu próprio labirinto, num personagem
fascinante que em muito lembra o detetive Park Doo-man do belo Memórias de um Assassino, de Bong
Joon-ho, ou até mesmo Robert (interpretado pelo próprio Gylenhaal) em Zodíaco, de David Fincher.
Prisoners
ainda entrega uma resolução absolutamente impecável e repleta de ironia
dramática, apesar de que, logo que terminei de ver o filme, quase descartei sua
profundidade como “viagem” minha. Porém, não poderia terminar de escrever uma
crítica sobre essa obra sem falar disso, portanto, quem não viu o filme, pule
para o próximo parágrafo, pois aqui vem spoilers:
Keller ficou preso no calabouço de Holly, e inevitavelmente morrerá (sem
comida, água e com a perna quebrada e sangrando), num símbolo do clímax de sua
loucura, já que, de tanto se trair, o fim do personagem foi justamente o de
confrontar seus próprios demônios e abraçar sua tragédia, se tornando
literalmente um prisioneiro. Assim, quando Loki escuta o assobio distante e
fantasmagórico do apito de Keller, escuta também o chamado de um fantasma,
fantasma esse que vai assombrá-lo pelo resto de sua vida, e ele bem sabe disso,
já que essa é a sua própria prisão.
Com um roteiro competente de Guzikowski
(apesar de martelar algumas pistas óbvias, como o sonho com o apito), Prisoners é um longa policial muito
diferente da maioria de hoje em dia: maduro, desafiador e emocionalmente
complexo. E por isso mesmo merece um lugar como uma das obras mais importantes
do ano.
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