sexta-feira, 25 de outubro de 2013


Crítica O Conselheiro do Crime (The Counselor / 2013 / EUA) dir. Ridley Scott

por Lucas Wagner

  O Conselheiro do Crime é um filme estranho, para dizer o mínimo. Usando uma máscara de thriller de suspense/ação, o longa é mais uma desculpa para seu roteirista, Cormac McCarthy, estreante na função (ele é romancista), discorrer sobre temas profundos e complexos, utilizando-se de diálogos exemplares. Assim, mesmo imperfeito, O Conselheiro do Crime é uma obra que desafia os costumes e clichês de Hollywood, deixando de lado a adrenalina para apostar na reflexão.

  Na trama, o advogado interpretado por Michael Fassbender pretende se casar com a bela Laura (Penélope Cruz), e para isso suas economias precisam aumentar. Decidido a explorar os caminhos criminosos oferecidos por sua profissão, o advogado se une a Westray (Brad Pitt) e Reiner (Javier Bardem) e, por cima de tudo, a perigosa famme fatale Malkina (Cameron Diaz).

  Encontrando certa dificuldade para fazer a transição para a Arte enxuta que é o Cinema em comparação à Literatura, McCarthy despende um tempo desnecessário em mostrar cenas no deserto, com pessoas de rosto marcado e sofrido que trabalham no transporte das drogas. Pelo menos essas cenas criam um bom contraste com aquelas que mostram o luxo das pessoas de alto escalão envolvidas no negócio. Também é problemático que, acostumado à descrição e não ao trabalho audiovisual do Cinema, McCarthy não demonstre finésse na construção de, por exemplo, pistas e recompensas, que aqui surgem inseridas bruscamente em diálogos e não em imagens (me refiro, é claro, à descrição do mecanismo da corda de aço).

  McCarthy, no entanto, trás para a obra um talento mais literário que a enriquece. O autor explora temas extremamente violentos de uma forma visceral, mas também trazendo uma certa sensibilidade que enxerga a condição humana por trás de todo o sangue, como é evidente em livros seus como Onde Os Fracos Não Tem Vez, Meridiano de Sangue ou A Estrada. Seus personagens são brutais, condicionados à uma realidade darwiniana onde quem não se adapta, morre. Em O Conselheiro do Crime, McCarthy resgata muito da melancolia e violência de suas obras literárias, e estrutura o longa não a partir de reviravoltas ou sequências de ação, mas de diálogos e monólogos que, à primeira vista, parecem desconectados do todo, situação que muda quando percebemos que esses diálogos e monólogos são o todo.

  Essas falas são escritas com soberba maestria pelo roteirista, explorando temas como a morte, a culpa, a redenção e a violência. Trazendo sua brutalidade típica, o autor consegue trazer algumas peças singularmente poéticas (“Presentear uma mulher com uma joia é reconhecer sua imperfeição, ao mesmo tempo em que reconhece a nobreza dessa imperfeição”), dissecando com perfeição a personalidade dos personagens (o primeiro diálogo de Malkina e Reiner é sublime), e ainda conseguindo tocar esferas profundas da condição humana, conferindo ao longa um tom quase apocalíptico em sua melancolia.

  Mas se parece que o roteirista viaja à deriva sobre diversos temas, ele na verdade ancora em um que não tinha investigado tanto antes em sua carreira: as mulheres e, mais evidentemente, o poder que essas tem sobre os homens. O Conselheiro do Crime é um longa cujas figuras mais marcantes são as femininas. Pode-se observar que a grande maioria dos diálogos tratam do relacionamento dos homens com as mulheres, e muitas vezes aprofundam em temas relacionados à perversão sexual. E se figuras imponentes e poderosas como Westray e Reiner tem um ponto fraco, esse é o sexo oposto, algo que fica bem evidente no primeiro diálogo de Westray e o protagonista. Este que, aliás, vive sob o controle (não aversivo, no entanto) de sua noiva, Laura, que é seu mundo e vida (“A vida é estar na cama com você. O resto é só espera”, diz ele em certo momento).

  As personagens femininas do filme são Malkina e Laura, figuras completamente opostas. Laura é uma mulher doce e religiosa, cuja sexualidade só é liberada com seu noivo, e ainda assim, não é de forma toda escancarada, mas com um certo indício de culpa, o que a torna até mais charmosa. Observem a cena inicial, dela e o noivo na cama, e enxerguem os elementos: a excitação abundante (comentada pelo protagonista) e quando, depois de admitir querer sexo oral, tentar fugir. Para isso, a linda Penélope Cruz tem uma performance ideal, compondo Laura como uma criatura sensível e tímida, permitindo que o espectador compreenda a forte paixão que o protagonista nutre por ela.

  Se Laura é um anjo, Malkina é o demônio, e por isso mesmo, mais tentadora ainda. Mulher forte, poderosa, segura de si e cheia de energia sexual, Malkina parece procurar o máximo prazer orgástico que pode sentir, extraindo-o de seu cotidiano através do poder que sabe ter sobre os outros. Assim, é interessante que, ao notar a timidez de Laura, Malkina assuma uma posição de predadora e comece a se insinuar para a moça, demonstrando desejo à ela principalmente para ver sua reação (e o modo com tem seu corpo nu – e que corpo! – enrolado em toalhas, é altamente sensual). Movida pelo sexo, Malkina é como uma Cleópatra que fica jogando com seus súditos, observando todo o quadro a partir de uma posição superior, movendo as peças do jogo de modo a se beneficiar e massacrar os outros, simplesmente porque isso lhe excita. E é por isso que o momento em que “fode uma Ferrari” (isso mesmo que você leu) é tão icônico: ao mostrar a mulher (antigo sexo frágil) fodendo um símbolo de potência, força e virilidade como a Ferrari, Malkina se sobrepôe à máquina como criatura superior, pois com o sexo conseguiu “destruí-la” (e é sintomático que a mulher tenha chegado a gozar nesse momento). Mais fascinante é que McCarthy sugira algo de seu passado através do já citado primeiro diálogo dela com Reiner no filme; sem escancarar nada, fica claro que ela já sofreu o suficiente para adquirir resiliência e uma frieza que oberva como um modo natural de enxergar a realidade (“A verdade não tem temperatura” ela diz).

  E se Malkina é uma figura tão fascinante, muito disso se deve à impecável performance de Cameron Diaz, provavelmente a melhor de sua carreira (que até então não tinha nada muito singular). Ciente de sua beleza e sexualidade, Diaz encarna Malkina com uma entrega impressionante, não ficando com o pé atrás nem em cenas mais “tensas” e convencendo a todo momento sobre a imponência e poder dessa mulher tão intensa, nunca deixando o espectador duvidar de suas intenções e do que ela seria capaz para alcançá-las. Diaz tem uma presença de cena tão forte, tão intensa, que eu não hesitaria em indicá-la ao Oscar de Melhor Atriz, já que sua atuação não é só a melhor desse filme, mas uma das melhores do ano.

  Portanto, temos Laura e Malkina como dois tipos opostos de mulheres, mas que, a seu próprio modo, controlam os homens. No entanto, é inegável que Malkina seja a mais “adaptada” (trazendo para o contexto darwiniano dos livros do autor), e para se notar isso é só prestar atenção no desenrolar da história. Ela é uma mulher que se sobressaiu em um mundo de homens (o mundo do crime, dos negócios, do dinheiro), conquistando seu espaço com ferramentas únicas e repletas de veneno, o que deixa mais significativo seu momento “íntimo” com a Ferrari. Como reflexão pessoal, acredito existir esses dois tipos de mulheres na vida real, e inclusive, duas das que me relacionei encaixariam com perfeição uma no perfil de Laura e outra no de Malkina, e mesmo que a “Laura” tenha mexido comigo, foi a “Malkina” quem realmente entrou na minha cabeça, me manipulou, me destruiu e, no entanto, a que mais marcou minha vida até então.

  O elenco masculino não fica atrás das duas tão invejáveis performances femininas, embora nenhum dos homens tenha uma atuação tão marcante quanto a de Diaz. Javier Bardem se diverte como Reiner, conseguindo trabalhar bem a bizarrice do sujeito, mas também sua inferioridade/submissão frente à Malkina. Michael Fassbender trabalha muito bem a devoção à Laura e a ambiguidade moral do protagonista, ressaltando sua insegurança e falta de preparo para entrar no perigoso terreno onde está se aventurando, permitindo assim certa fragilidade para que o espectador se aproxime do personagem. Brad Pitt tem uma performance excepcional como Westray, sujeito extremamente ambíguo e complexo, com uma tremenda autoconfiança adquirida em anos de experiência, que o permitiu aceitar o que tem, valorizando a própria vida, numa calma e complacência que podem revelar certa agressividade latente (represada com dificuldade), que só se evidencia mais depois de ser muito provocado (como no seu último diálogo cara-a-cara com o protagonista). Vale dizer, ainda, que foi um lance de gênio do diretor Ridley Scott contratar o ator Dean Norris para ser um traficante de drogas, já que isso funciona como piadinha interna para os fãs da minha tão amada série Breaking Bad, onde Norris interpretou o policial da DEA Hank Schrader, o chefe na caça ao grande imperador das drogas Heisenberg.

  Falando em Scott, o diretor acerta ao reconhecer que o astro em ação aqui é McCarthy, e investe numa direção que não chama muita atenção para si (algo raro para esse cineasta). O diretor investe num uso exacerbado da violência gráfica para ressaltar o perigo daquele universo (a morte de um personagem no final do terceiro ato é assustadora) e utiliza muito bem a belíssima trilha sonora de Daniel Pemberton, além de demonstrar inteligência no trabalho de figurino do protagonista, que parece usar tons claros perto de Laura e tons mais escuros quando cuidando de seus negócios, ressaltando sua dualidade. No entanto, Scott bem que poderia ter cortado fora as horas de filmagem do transporte de drogas no deserto, enxugando mais o longa. Mas fazer o que, não é? Vale ainda dizer que a fotografia de Dariuzs Wolki é belíssima na composição das imagens do deserto e sugestiva no seu jogo de luz e sombras.

  Massacrado pela crítica especializada, não temo em defender O Conselheiro do Crime como uma obra complexa, erótica e corajosa por ir contra padrões hollywoodianos, conseguindo ainda fechar com chave de ouro numa impecável cena de diálogo que traduz, de forma simbólica (como a história dos leopardos), a ironia de tudo aquilo, finalizando com crueza e crueldade a vitória do melhor adaptado e do poder das mulheres sobre os homens.

*Outras críticas minhas de filmes dirigidos por Ridley Scott:

  

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