Crítica Frances Ha (Frances Ha / 2013 / EUA) dir. Noah Baumbach
por
Lucas Wagner
Em seus trabalhos, o cineasta Noah Baumbach merece
méritos por buscar explorar temas íntimos com uma abordagem direta que pode
acabar assustando quem não está preparado. É justamente esse o grande mérito de
seu A Lula e a Baleia, obra prima
absoluta que colocava um microscópio nos membros de uma família destruída. Mas
o cineasta também é sensível o suficiente para sempre nos fazer aproximar de
seus personagens, por mais difíceis que sejam. E é aqui que Frances Ha se insere na carreira do
diretor de modo levemente diferente, como virei a explicar no decorrer do
texto.
Escrito pelo próprio diretor ao lado da atriz
protagonista, Greta Gerwig, Frances Ha é
um estudo da personagem título e seu universo. Com 27 anos de idade, Frances ainda
não amadureceu o suficiente para pelo menos ser considerada adulta. Uma
personagem que não usa cartão da crédito, apenas de débito, por não se
considerar uma “pessoa de verdade” ainda (leia-se: adulta). Apostando em um
sonho parado de se tornar uma bailarina oficial de uma determinada companhia de
dança, Frances parece mais preocupa em se divertir com sua colega de quarto e
melhor amiga, Sophie, do que se dedicar a conquistar sua independência e
sucesso profissional, ou mesmo pessoal. Assim, não é surpresa que, ao surgir
uma oportunidade de emprego dentro da companhia, sem que seja voltado para a
dança em si, Frances nem considere, numa atitude infantil para alguém passando
por apuros financeiros.
Uma dentre várias atitudes infantis. Porém,
nunca observamos Frances como uma preguiçosa inútil, mas sim como uma criatura
um tanto pura em sua inocência. Pois, de fato, ela não é mais que uma garotinha
presa no corpo de uma adulta. Sim, ela bebe, fuma e transa, mas a inocência com
que enxerga o mundo é de uma doçura palpável, sem maldade alguma. Ela realmente
acha, como uma criancinha, que tudo se resolverá por si só, e que ela pode se
divertir, por mais que solte verbalizações constantes sobre a necessidade de
dinheiro. E essa personagem em muito funciona devido à excelente performance de
Greta Gerwig (que já trabalhou com Baumbach no bom Os Solteirões), que, através de maneirismos e gestos juvenis, além uma
eterna expressão de inocência e olhar distante de sonhadora, transforma a
protagonista numa figura tridimensional e verossímil, além de difícil de não
adorar.
O caso é que Frances é uma espécie de ser
ideal em um mundo de certo modo corrupto. A fotografia totalmente em preto e
branco, por sinal, é uma ótima sacada de Baumbach por inserir aquela personagem
angelical num mundo sem cor/sem vida, que é o mundo da vida adulta. Aliás, os
maiores erros que acabam com Frances residem justamente em ela não adaptar sua
cabecinha juvenil às constantes e inevitáveis mudanças, perdas e traições da
idade adulta. Assim, é um fato que os melhores amigos da infância/adolescência tendem
a seguir seus próprios caminhos, independente de como isso pode afetar aqueles
próximos deles, mas Frances acredita que tudo será sempre um conto de fadas
divertido, e chega a deixar ótimas oportunidades de amadurecimento (como morar
com o namorado) acreditando que sua melhor amiga faria o mesmo. E é claro que
ela não faz: ela é uma adulta no mundo real.
É constante enxergar como as pessoas sempre
estão se traindo, se mostrando capazes de atitudes e comportamentos que antes
desprezariam, como aqui fica evidente em uma personagem que dizia desprezar
certo tipo de homem, mas se casa com um que possui todas as características que antes desprezava. E essas pessoas, que
abandonam seus predicados em prol de “amadurecimento”, em um tom exagerado,
muitas vezes acabam percebendo seu erro tarde demais, procurando assim uma
espécie de “retorno” simbólico para a juventude. É enxergando isso, esse tipo
de fato da vida, que Frances vai completando seu arco dramático, adquirindo uma
forma de sabedoria que só alguém com aquele tipo de inocência poderia alcançar.
Só alguém que, mesmo admitindo a infantilidade de um sonho, ainda assim ousa em
continuar acreditando numa ideia fantástica de conexão verdadeira com algum
outro especial (e o monólogo em que Frances revela esse sonho revela o ápice da
atuação de Gerwig).
E é assim que Baumbach vai conduzindo seu
longa: com uma doçura contagiante que acaba revelando uma melancolia por trás
da história que conta. Só que essa melancolia não faz de Frances Ha um longa triste e mórbido. De modo algum. E isso é algo
que Baumbach e Gerwig trabalham com genialidade através do arco dramático da
protagonista, que permite que ela amadureça não de modo a se tornar mais fria e
cínica (características, infelizmente, essenciais para se viver no mundo
capitalista moderno), mas de um modo no qual ela não traia sua própria autenticidade,
mantendo sua inocência mas sabendo se comportar no mundo com uma sabedoria
tácita que só alguém com alma de criança alcançaria. E assim é linda a rima que
o diretor cria com o próprio nome do filme.
Não que Baumbach seja infalível na direção. A
cronologia é bem confusa: o tempo em que o longa se passa é muito curto para
tudo aquilo, que parece durar muito mais mas não leva, na prática, muito mais
que um ano. Além disso, a finalização do longa, embora com acertos e poesia
inegáveis, surge falha ao ser por demais abrupta, não permitindo que a trama se
feche com devida naturalidade. Por outro lado, é interessante que o cineasta
invista numa trilha sonora evocativa, com tons infantis e músicas “jovens”, que
às vezes surgem repetidas justamente para dar a ideia de fadiga; além disso, a
sequência em que Frances visita os pais no Natal é interessantíssima, por
Baumbach criar uma montagem que revela o caráter enfadonho e tedioso daquelas
visitas anuais; não poderia deixar de comentar a inteligência do cineasta na
construção, bem no final do filme, de uma mise en scène que revela com economia a mudança de
Frances em relação ao seu passado*.
Se A
Lula e a Baleia (ainda melhor filme do cineasta) e Os Solteirões traziam em si mais melancolia em suas resoluções,
embora fosse uma melancolia funcional, Frances
Ha consegue ousar em manter uma visão de que, mesmo num mundo dominado pela
frieza, por adultos sempre competitivos, isolados e tristes em vidas
conformistas e individualizadas, a inocência poderia ter lugar, desde que se
adaptasse, mesmo que só em parte, ao mundo ao seu redor.
*SPOILER: Me refiro à
cena em que, logo depois da apresentação do número de dança, Frances converse
com Benjy (sempre moleque mimado) enquanto está sentado numa posição superior.
Excelente crítica Lucas Wagner!
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