sexta-feira, 27 de setembro de 2013


Crítica Só Deus Perdoa (Only God Forgives  / 2013 / França, Dinamarca) dir. Nicolas Winding Refn

por Lucas Wagner

 Assim como o cineasta coreano Park Chan-Wook, o dinamarquês Nicolas Winding Refn tem sua filmografia calcada na violência. Só que se nos trabalhos do coreano seus personagens iam abraçando as trevas gradativamente (vide meu texto sobre seu Segredos de Sangue), os trabalhos de Refn contam com personagens com uma natureza inerentemente violenta que por vezes buscam abraçar com prazer (Bronson) e outras vezes causam sofrimento e os obriga a tentar escapar (Drive, Guerreiro Solitário). Nesse Only God Forgives o diretor mais uma vez abraça esse tipo de personagem, fazendo de seu foco a criação de um universo obscuro que faz dessa obra uma quase literal viagem ao Inferno.

  Escrito pelo próprio diretor, Only God Forgives começa mostrando os eventos que levam à morte de Billy (Tom Burke). Debaixo de uma rede de corrupção policial está o seu assassinato, e essa rede colide com a vida de Julian (Ryan Gosling), irmão de Billy, a quem a mãe, Crystal (Kristin Scott Thomas), manipula para encontrar e matar os responsáveis pela morte do irmão.

  Como dito, Refn busca nos levar à um passeio ao inferno, algo que deixa claro logo no início do filme, quando, junto com o diretor de fotografia Larry Smith, mergulha o clube de boxe tailandês onde Julian trabalha numa coloração vermelha forte. Aliás, a temática infernal fica literalmente ilustrada pela enorme imagem demoníaca que existe no clube, ou quando Billy, sem motivo aparente, diz: “vamos encontrar o diabo”. Durante todo o longa o vermelho é a cor principal, o que causa constante incômodo no espectador por ampliar a sensação de podridão e perversão do que estamos vendo, além de ressaltar a natureza violenta dos personagens. Mas Refn e Smith buscam “endemoniar” ainda mais as coisas na criação de planos repletos de significados, como quando Crystal está parada na frente de uma abertura na parede que, coberta por detalhes de pedra, deixa entrar uma luz amarela forte (lembrando fogo) misturada com o vermelho, transformando-a num verdadeiro demônio. O que é fascinante se observarmos a construção da ironia cristã que o longa desenvolve em relação ao seu título, já que o que acompanhamos nesses 90 minutos são almas condenadas e à deriva no Inferno.

  Mas a inteligência de Refn e Smith não acaba ai. Parece que apenas as mulheres apresentam algum sinal de pureza, e a cor predominante para ilustrá-las fica sendo o azul, cor que entra em constante choque com o vermelho. Mas não é com qualquer mulher que essa lógica funciona aqui, mas em específico com Mai (Ratha Phongam), que aparece banhada em um azul suave, trazendo a ideia de pureza e leveza, algo bem especificado em um plano que divide com Julian, quando esse fica banhado no vermelho e ela no azul suave. Quanto às outras mulheres, elas aparecem também sob coloração azul, mas geralmente num tom tão exagerado e forte que faz com que a pureza dê lugar à ideia de perversão, sujeira. Aliás, vai de acordo com a ideologia cristã que a noção de exagero venha junto com a de pecado.

  O vilão Chang (Vithaya Pansringarm) também merece citação pelo modo como Refn vai construindo-o. Policial corrupto, Chang apresenta uma visão distorcida de moralidade logo de cara, quando trai sua própria palavra de maneira fria, talvez usando sua promessa como desculpa para ver mais violência e justificar sua própria, numa psicopatia assustadora. E não é a toa que Refn o filme, em certo momento, fumando um cigarro tranquilamente, com o olhar distante e frio, enquanto um ato de extrema violência ocorre não muito longe. Mais interessante ainda é observar que alguns dos poucos momentos em que a fotografia aparece “limpa”, sem tom forte de alguma cor, é quando mostra Chang com sua família, o que deixa o personagem mais complexo ainda, apenas utilizando uma sutil estratégia visual: como se ele pertencesse a dois mundos distintos. A emoção forte que esse homem frio demonstra quando canta (algo que faz umas três vezes ao longo da projeção) também entra em choque com a psicopatia, deixando-o mais ambíguo do que já era.

  O protagonista interpretado por Ryan Gosling segue muito da lógica de outros personagens de Refn, só que ligeiramente mais suave. Afinal, por trás de sua frieza, podemos enxergar em Julian uma espécie de criança indefesa e carente, principalmente devido à sua relação disfuncional com a mãe. Sempre preferindo o irmão mais velho, Billy, ao mais novo, Crystal constantemente menospreza Julian como sendo bem menos do que ela esperaria como filho (em certo momento ela faz até mesmo um comentário embaraçoso sobre o tamanho de seu pênis). Refn sugere uma relação incestuosa dela com os filhos, já que a sexualiza de modo a transformá-la em uma criatura libidinosa (a roupa com que é apresentada no filme, lembrando uma ninfeta tarada, serve justamente à esse propósito). Em certo momento, Refn quase escancara essa situação, ao construir uma mise en scène em que ela surge acariciando os músculos de Julian, ao mesmo tempo em que o manipula sutilmente. A atuação de Kristin Scott Thomas se revela, nesse ponto, fenomenal, pois a atriz consegue trabalhar a personagem de modo a transformá-la em uma criatura manipuladora e peçonhenta como uma serpente, investindo em pequenos movimentos faciais para evidenciar a complexidade da personagem (o seu deleite orgástico ao ser beijada no rosto por Julian é bem evidente, assim como o ciúme que demonstra do filho em certo momento, que fica claro sem que ela “desça do salto”).

  Julian então foi criado por uma mulher que apresentava todas as características necessárias para desenvolver uma psicose no filho. Sem nunca deixar de menosprezá-lo, a mãe ainda o seduzia para conseguir que ele fizesse serviços sujos para ela. Assim, Julian se transformou num indivíduo solitário, extremamente carente e com uma séria tendência para a violência, que ele tenta deixar guardada dentro de si, mas que às vezes não consegue evitar que extravaze. Sua carência, aliás, é a característica mais interessante, que Refn busca trabalhar na sua relação com a prostituta Mai, por quem o protagonista é apaixonado.

  O que fica evidente é que Julian evita tocá-la, embora deseje. Talvez não o faça para não “sujá-la” com seu mundo podre. E assim prefere entrar em delírios sexuais que muito revelam sobre sua personalidade. Quando está atado à uma cadeira (detalhe importante) enquanto a vê se masturbar, delira com um corredor sombrio e, é claro, vermelho (com alguns tons azuis!), caminhando para uma abertura escura (simbolismo para a vagina de Mai?), e quando ele insere a mão por essa abertura, seu braço é cortado por Chang, representando assim a castração mas também o medo que o personagem tem do vilão (embora tenhamos aqui que imaginar que ele sabe da fama do vilão, pois aparentemente ainda não se conhecem). Mas Refn demonstra delicadeza naquela que é a melhor cena do filme, quando Julian delira de novo, vestindo uma camiseta preta, enquanto vê Mai dançar atrás de uma cortina vermelha; nesse momento, seu delírio o mostra com uma camiseta branca enquanto Mai (sutilmente iluminada de azul), guia sua mão para debaixo de sua saia. Tal momento, confesso, me lembrou da belíssima cena do beijo no elevador de Drive já que, em essência, tem significados parecidos.

  Aliás, o mais interessante de Only God Forgives é como ele parece representar uma espécie de prelúdio espiritual de Drive. Podemos ver aqui o nascimento do motorista calado, taciturno, solitário e psicopata de lá. Os eventos de Only God Forgives (tirando, é claro, um possível elemento bem no finalzinho do longa, que deixa uma ambiguidade) poderiam justificar psicologicamente o por quê do motorista sem nome ter aparecido sem passado algum na oficina do personagem de Bryan Cranston, e ainda justificaria o por quê dele ter se fechado tanto e ter tamanha carência por contato humano. Além disso, a parceria entre Ryan Gosling e Refn se revela novamente acertada, com o minimalismo do ator representando com perfeição a complexidade interna e violenta de Julian, ressaltando sua solidã, sem deixar de lado seu lado mais calejado emocionalmente (a falta de expressão ao ser humilhado pela mãe na frente de Mai é assustadora).


  Refn pega uma história clichê e desinteressante e transforma num longa complexo e sombrio, não poupando o espectador do desconfortável passeio ao Inferno que propõe. E por isso mesmo, apesar de tão controverso (o filme foi vaiado no Festival de Cannes), Only God Forgives representa mais um esforço admirável de um cineasta sempre interessante.

*Críticas minhas de outros filmes dirigidos por Nicolas Winding Refn:



2 comentários:

  1. Lucas, creio que você se confundiu um pouco com o filme. Chang não se trata do vilão, muito pelo contrário. O filme é uma grande analogia, Chang, na verdade, seria deus e seus parceiros policiais seriam seus anjos. Já Julian seria um dos demônios, sua mãe seria o diabo em si. Como o próprio nome diz "Only God Forgives", por isso a cena final é de Chang "perdoando" Julian, mas ao custo de seus punhos.

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  2. Curti sua interpretação! Não consegui enxergar esse lado, mas dá uma análise bacana. Não acho q anula o q eu enxerguei, mas se for assistir de novo, tentarei ver por esse ângulo :)

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