Crítica Cores (Cores / 2013 / Brasil) dir. Francisco Garcia
por
Lucas Wagner
Na época do ensino médio, lembro de passar
muito tempo com amigos meus, discutindo ideias sobre o que estava errado com o
mundo e o que poderíamos fazer para o melhorar; discutíamos sobre nossos sonhos
e, por mais que falássemos que “sabíamos que seria difícil”, na verdade,
tínhamos uma leve noção de que seria difícil e que precisaríamos lutar muito.
Tudo parecia muito distante. Hoje, mesmo ainda sendo bastante jovens, nossas
conversas carregam um ar muito mais niilista. De madrugada, esparramados no
chão de tão bêbados, não conseguimos pensar que algum dia mudaremos o mundo de
alguma forma, só sabemos que tudo está tão ruim que a tendência é piorar; por
mais que alguns de nós (eu, em especial) ainda nos agarremos aos nossos sonhos,
o quão difícil será está bem mais evidente, e nos vemos obrigados a, desde já,
desfazermos de muitos dos nossos ideais para conseguir realizar alguma coisa.
A passagem da proteção da infância para a
constante batalha na selva que é a vida adulta (ou vida real) nunca é fácil. Perceber
que muitos dos nossos sonhos não passavam de delírios juvenis, que teremos que
nos contentar com empregos que antes julgávamos medíocres; perceber que estamos,
aos poucos, nos transformando em nossos pais, pessoas que criticávamos
justamente por parecerem tão passivos e conformistas frente ao mundo. Nada
disso é fácil, muito menos agradável. Aceitar que somos só nós responsáveis por
nós mesmos muitas vezes gera uma angústia difícil de curar. São em questões tão
profundas e complexas como essas que o cineasta Francisco Garcia baseia seu
retrato da vida de três jovens amigos, Luiz, Luara e Luca, que dividem sonhos e
desilusões enquanto vivem seu cotidiano enfadonho.
Fotografado todo em preto e branco, Garcia já
cria assim uma certa ironia para um filme chamado Cores. Mas não fica difícil imaginar o por que da estratégia de
Garcia, já que fica claro que é porque aqueles indivíduos vivem uma vida “em
preto e branco” enquanto sonham com um mundo colorido, que parece sempre mais
distante no tédio e mormaço em que vivem (“que ótimo, mais um final de semana
sem ter porra nenhuma para fazer” comenta Luara em certo momento). Cada um dos
três jovens acabam servindo como um recorte para o diretor explorar diferentes
âmbitos envolvendo essa passagem para a vida adulta que comentei. Luara, que
trabalha como funcionária numa loja que vende peixes, sonha com uma vida
diferente num lugar diferente, mas compreende que, para isso, é preciso sempre
mais esforço desgastante, que vai matando um pouco dela a cada dia da semana; assim,
é evidente que as esperanças e sonhos da garota são apenas vagas imagens num
horizonte enevoado, mas que é uma forma de combustível para fazer com que ela permaneça
em movimento; nesse aspecto, por sinal, a performance de Simone Iliesco é
impecável por conseguir traduzir esse ar sonhador e niilista da personagem.
Luiz trabalha numa farmácia mas, clandestinamente, trafica remédios tarja preta;
constantemente triste e preocupado, o jovem ainda mantém em si a rebeldia de
adolescente que enxerga uma vida normal, com um emprego normal, apenas como uma
forma mais dolorosa de morrer (“às vezes tenho mais medo da vida do que da
morte”), e assim se fecha num ciclo mortal de pequenos desastres cotidianos do
qual não conseguirá sair. Já Luca tem a aparência de rebelde punk, cheio de tatuagens, e “trabalha”
como “fazedor de tatoos” (ele quase nunca tem clientes e pouco se esforça para
conseguir), mas sua imagem é traída pela barriga de chopp e por ainda morar com a avó, cuidando dela (mas ainda assim
apela quando essa, mesmo velhinha, não atende o telefone); demonstrando carinho
pela velha, ele na verdade morre de medo do dia em que ela ir embora, já que
será precisamente quando ele terá que largar seu jeitão de moleque para poder
encarar a vida de verdade, algo que, na inércia em que vive, parece impossível
e assustador.
Desenvolvendo seus protagonistas com calma,
Garcia demonstra notável carinho pelos personagens, nunca taxando-os de
irresponsáveis ou imaturos, mesmo que ficar bebendo cerveja e se drogando
largados no sofá reclamando não seja exatamente algo imune a julgamentos. O
diretor já inicia seu filme mergulhando-nos no mundo particular de cada um deles
através da trilha sonora, que evidencia um pouquinho de suas personalidades. Buscando
explorar diferentes lados da personalidade de cada um, Garcia cria momentos
notáveis como aquele em que Luiz se mostra realmente envergonhado por estar, de
novo, atrasando o aluguel, ou ainda os diversos momentos em que fica claro o
carinho de Luca pela avó. Ainda, há sequências de puro ouro no longa, como a
que (minha favorita) Luara e Luiz tentam convencer Luca a ir numa festa,
enquanto este diz que deve cuidar de sua avó; nesse momento, Garcia desenvolve
um diálogo pesado e niilista entre os três em que fica bem delineada a visão de
mundo de cada um, sendo mais fascinante ainda que essa sequência termine com
uma dança de Luara à uma música que os três curtiam muito, como se, nesse
momento, ela se deixasse levar pelo som, esquecendo um pouco das desilusões do
dia-a-dia e da conversa pesada que acabaram de ter. Garcia ainda surpreende em
detalhes como quando filma Luara, na loja, através dos aquários, como se ela
mesma vivesse presa dentro de um, ou ainda pelo fato de essa mesma personagem
viver ao lado de um aeroporto, onde o barulho constante de aviões parece lhe
jogar na cara que ela, provavelmente, não viajará tanto quanto planejava. Ainda,
ambientar o longa em um ambiente de São Paulo
extremamente propício para inundações, acaba gerando um final belíssimo,
poético e triste.
Mas é ao aprofundar em questões ainda mais
complexas que Garcia transforma Cores em
uma obra-prima cada vez mais fascinante. Os ideais de cada um dos três
protagonistas parece ser sempre colocado em jogo ao se verem constantemente
tendo que renega-los para sobreviver de algum modo, algo que vamos percebendo
quanto mais vamos crescendo e tendo que fazer coisas que não nos orgulhamos.
Luara, muito provavelmente, não se orgulha de mentir para a mãe que faz
faculdade apenas para usar o dinheiro que ela lhe manda todo mês, ainda mais
porque a mesma Luara diz que “sem faculdade não há sucesso”. Mais fascinante
ainda é perceber como Garcia busca mostrar a passividade da juventude (e dos
jovens adultos) de hoje em dia, que parecem descartar cada vez mais rápido seus
sonhos, enquanto, antigamente, as pessoas lutavam bem mais pelo que queriam e
desistiam apenas depois de muito esforço. Talvez isso seja um sintoma da
pós-modernidade em que vivemos, onde o prazer instantâneo é a única coisa que
temos em vista, e não sabemos realmente batalhar por algo a longo prazo. Também
é impossível não notar a alfinetada que Garcia faz ao governo quando ouvimos
Lula (possivelmente o filme se passa quando ele era presidente, mas isso não
fica claro) na televisão falar sobre os incríveis progressos econômicos da
nação enquanto acompanhamos pessoas que vivem num terrível ciclo de miséria sem
escapatória aparente.
Compondo uma dobradinha com outro recente
longa brasileiro, o extraordinário O Som
ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, ao lidar com temas como frustações e
desilusões (mesmo que o longa de Mendonça Filho se foque mais nessas questões
dentro da classe média), Cores é um
filme pesado e triste, mas sem dúvidas uma obra-prima fascinante por encarar
com olhos compassivos a inércia da juventude, a morte dos sonhos e,
principalmente, a dificuldade de agir diante da trágica percepção dessas
questões.
OBS: Não consegui
inserir na minha análise, mas não poderia deixar de citar o fascinante monólogo
do piloto, no momento em que este discorre sobre uma música que o emociona.
Esse momento é maravilhoso tanto pela fala do personagem, quanto pelo detalhe
de, pela primeira vez no filme, ele tirar os óculos escuros, como se estivesse
deixando de se esconder sob a áurea de mistério e promessas que representava
para Luara, justamente por agora estar se descascando como ser humano. Um
momento sinceramente lindo que, confesso, me encheu os olhos de lágrimas.
Nota:
10,0 / 10,0
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