Crítica filme A Morte do Demônio (Evil Dead / 2013 / EUA) dir. Fede
Alvarez
por
Lucas Wagner
Conseguindo criar um clima de claustrofobia e
tensão extremamente eficazes, investindo em movimentos de câmera e efeitos de
fotografia e de som específicos que mergulhavam o espectador na insanidade,
além de investir num divertidíssimo uso do gore
criando um efeito agridoce de humor bizarro, o então jovem estudante de
Cinema Sam Raime, em 1981, criou um dos maiores clássicos de terror de todos os
tempos: Evil Dead. Com tamanho (e
inesperado) sucesso, o longa se transformou numa franquia, que tomou um rumo
bastante diferente e criativo no ótimo Evil
Dead 2 e no razoável Evil Dead 3:
ao invés de serem voltados para o terror (como o primeiro), os dois últimos
buscavam ficar na fronteira entre horror e a comédia pastelão (“Groovy!”),
sendo que apenas Evil Dead 2 conseguiu
um resultado realmente eficaz nessa questão. Agora, mais de vinte anos desde o último
filme, Raime retorna como produtor na refilmagem do original dirigida pelo
estreante Fede Alvarez, que consegue se transformar quase que num longa à
parte, fugindo de apenas repetir o que fez sucesso no primeiro filme, e assim
cria algo próprio, mesmo que com inegáveis problemas e sendo infinitamente
inferior ao clássico original.
Buscando mostrar que esse se trata de um
filme próprio e não apenas uma refilmagem, Alvarez mergulha o longa num tom
constantemente sombrio e macabro, não deixando espaço algum para qualquer
humor. Assim, esse novo Evil Dead já
abre com um prólogo que surge demoníaco por si só, mostrando uma morte violenta
e dolorosa antes mesmo de o título aparecer na tela, já nos preparando para o
tipo de coisa que iremos presenciar na próxima hora e meia. Assumindo também
uma perspectiva mais séria e emocionalmente densa do que a que Raime explorou,
Alvarez e o coroteirista Rodo Sayagues criam personagens que dessa vez não
procuram apenas um final de semana de descontração junto aos amigos, mas sim
pessoas que, mesmo jovens, são marcados por tragédias e problemas interpessoais
e que se uniram naquela cabana (também cheia de memórias) com o objetivo de
ajudar a amiga Mia (Jane Levy) à passar por um doloroso processo de desintoxicação
das drogas, nas quais mergulhou depois da morte da mãe. A cada segundo de Evil Dead o espectador se sente
oprimido, desgastado e cansado diante de tanta tragédia que domina a vida
daqueles personagens, sendo que essas sensações são ainda mais ressaltadas pela
câmera sempre inquieta/nervosa de Alvarez e por seus planos na maioria fechados. A
fotografia de Aaron Morton busca também mergulhar o longa quase sempre na neblina,
apoiando-se numa paleta baseada no cinza e no preto (exceto quando os personagens principais são apresentados, onde resquícios da luz do sol representam um fragmento de esperança que os domina, mesmo que fracamente), criando um constante tom de
melancolia. E
também é preciso reconhecer que a própria direção de arte acerta ao criar a cabana
não só como um ambiente sombrio que remete ao original (até mesmo o banco de
balanço está lá) mas também como um perfeito símbolo para um passado mais
alegre que contrasta com o horrível presente, e assim é um toque de
brilhantismo do design de som colocar
sons distantes e fantasmáticos de risadas e conversas que veem à memória de Mia
ao olhar para fotografias na cabana.
Sabendo aproveitar bem suas ideias, Alvarez e
Sayagues exploram a tênue linha que diferencia a desintoxicação de Mia de uma
verdadeira possessão, criando uma narrativa orgânica que liga o processo de
recuperação da personagem com a liberação dos espíritos malignos que irão
atormentar todo o grupo. Do clássico original, Alvarez busca, acertadamente,
não repetir as cenas clássicas, mas sim criar outras que funcionam dentro de
sua própria narrativa e lembram o trabalho de Raime. Assim, o inesquecível
momento em que uma jovem era estuprada por uma árvore ganha uma certa memória
numa cena similar, mas não igual. O mesmo pode ser dito em relação ao momento
em que uma personagem é mordida na mão por uma possuída (desta vez recordando
um momento icônico de Evil Dead 2).
Mas também existem homenagens mais sutis ainda, como a corrente que David
(Shiloh Fernandez) dá à sua irmã (que é a mesma que Ash dá à namorada no
original), a câmera subjetiva do demônio, a serra elétrica, e até mesmo quando
vemos Mia sentada em um Delta 88, carro no qual Sam Raime é apaixonado e inclui
em praticamente todos os seus filmes.
Alvarez desce a mão pesadamente mesmo é sobre
o gore, à um nível de violência
insana que aqui, diferente de antes (especialmente nos dois últimos filmes),
não tem qualquer pretensão de humor. Se antes acharíamos graça de uma
personagem vomitando sangue em outra, aqui qualquer graça que poderia existir
nesse exagero é sugado para fora do filme por uma atmosfera tão densa que
elimina humor. O diretor também usa o grafismo extremo enfocando, por exemplo,
tendões e ligamentos de um braço se rompendo, com o objetivo de tornar aquilo
tudo mais real, e não fantasioso (e não poderia deixar de citar outro acerto do
design de som no que se refere ao
terrível barulho de uma personagem se automutilando no escuro). Essa violência
também serve à um outro propósito além de nos fazer levar a sério o que estamos
vendo e deixar tudo mais real: o nível vai crescendo a ponto de adquirir um ar
mais surrealista apocalíptico, culminando numa chuva de sangue. Alvarez também
demonstra inteligência ao usar o mínimo possível de efeitos criados em
computador, preferindo assim trucagens mecânicas e uma maquiagem grotesca que
conferem maior verossimilhança à obra, mesmo que a maquiagem deste não tenha nem
um pouco da inventividade e originalidade que tanto enriqueceram os filmes
anteriores, que contaram com o grande Greg Nicotero (hoje bem conhecido por seu
trabalho na maquiagem no seriado The
Walking Dead) como responsável por essa área.
Uso a questão da maquiagem para entrar nos
demônios: aqui, apesar de ameaçadores, eles não se destacam como criaturas
minimamente memoráveis. São apenas zumbis, com olhar perdido e tendências
malignas cujo único objetivo é ferir suas vitimas. O que é uma pena, já que um
dos grandes acertos do original (e do segundo filme também) residia justamente
nos monstros, que surgiam como criaturas irônicas e sarcásticas que não visavam
ferir apenas fisicamente seus adversários, mas destruí-los psicologicamente
também. É bem verdade que o sarcasmo dos demônios não cairia bem na versão de
Alvarez, mas ele poderia ter explorado o potencial deles em mergulhar suas
vítimas na loucura/desespero. Aqui e ali Alvarez flerta com essa possibilidade
(como quando a porta do espelho fecha sozinha na frente de uma personagem,
revelando um reflexo satânico que prevê o que acontecerá a seguir), mas são
muito raros para significar muita coisa. Acaba que esses monstros se tornam até
mesmo um pouco cansativos durante o segundo ato, prejudicando o longa por
torná-lo um pouco repetitivo.
Alvarez pode ser promissor na direção, como
já deixei claro ao ressaltar aspectos de seu trabalho aqui, mas ele ainda
precisa crescer bastante. Se é um acerto que ele invista em planos mais
fechados para criar claustrofobia, e também mantenha a câmera sempre inquieta,
esses mesmos aspectos acabam prejudicando diversas cenas de ataques de monstros
à pessoas, já que fica muito difícil distinguir exatamente o que está
acontecendo na tela. Assim também vale ser ressaltado quanto à fotografia de
Aaron Morton que, embora faça um bom trabalho ao conseguir tornar visíveis cenas
que se passam no breu total (e outros acertos que já comentei), peca ao deixar
escuro demais certos momentos (o beijo lésbico de uma possuída mutilada com a
loira bonita, por exemplo, é quase impossível de enxergar). Mas o diretor
Alvarez acaba encontrando seus maiores problemas ainda ao não conseguir
encontrar maneiras mais criativas de explorar o terror (sem ser só a violência
e o gore), não alcançando assim a
sensação de pura insanidade que Raime alcançou no original, principalmente no
final. Outro grave problema reflete-se na dificuldade que Alvarez encontra para
desenvolver seus personagens, apelando até mesmo para a trilha sonora constante
para isso.
Os personagens, aliás, em sua maioria, quase
nunca conseguem encontrar um grau maior de tridimensionalidade, algo que também
era evidente nos antigos mas que lá acabava não incomodando tanto pela
abordagem descompromissada que Raime adotou, diferente da seriedade deste aqui.
Eric é um cara arrogante e meio burro, sobre o qual nunca compreendemos muito a
não ser que tem algum problema com David que nunca fica bem esclarecido. A
loira Elizabeth Blackmore como Natalie só pode ser bonita e calada, encontrando
pouquíssimo momentos nos quais pode fazer algo a mais. A linda Jessica Lucas
consegue conferir pelo menos alguma força para sua Olivia. Já David é um
personagem meio sem graça mas com alguns aspectos interessantes: em primeiro
lugar porque é evidente que os roteiristas compreenderam que o que tornou (no
primeiro filme) o protagonista Ash num personagem mais memorável, foi
justamente sua fragilidade e inocência, características que divide com David,
seu sucessor; em segundo lugar, porque todo o background de covardia e culpa que dominam o personagem lhe
conferem maior tridimensionalidade e tragicidade, criando para ele até mesmo um
arco dramático bem resolvido. O problema fica por conta da atuação de Shiloh
Fernandez, ator inexpressivo e incompetente que não consegue trabalhar bem nem
mesmo emoções mais básicas de David.
É, no entanto, na figura de Mia que Evil Dead parece encontrar rumos mais
ambiciosos. A questão é que, quando acabamos de ver o filme, a sensação que
temos é (não leia o resto deste parágrafo se não tiver assistido. Continue no
próximo parágrafo) de termos presenciado uma verdadeira e dolorosa recuperação
de Mia do mundo das drogas. Ela ficou mergulhada numa personalidade
completamente alheia quando estava possuída (como quando ficava quando sob o
efeito das drogas) até que, depois de ser ressuscitada (como havia acontecido
depois que sofreu overdose) ela tem a chance de encontrar forças novamente para
lutar contra demônios internos (e externos também). Também devemos considerar que um dos aspectos mais problemáticos em relação à pessoa de Mia se refere à ausência de seu irmão, David, que sempre parece fugir de responsabilidades e dificuldades maiores; dessa forma, é realmente muito admirável observar como os roteiristas colocaram David como salvador de sua irmã, sendo o responsável por sua ressuscitação (literalmente do inferno e simbolicamente do mundo das drogas), finalmente abraçando lados mais difíceis e maduros com aqueles com quem tem responsabilidades. E era o que Mia precisava para conseguir se recompor: da figura do irmão, que agora se sacrifica por ela (literalmente). Assim, o terceiro ato ganha
uma força extrema que o filme não tinha encontrado até então, já que encontra
simbolismos interessantíssimos desde a chuva de sangue até o fato de o demônio
contra o qual Mia luta ter a exata aparência dela mesma. Dessa forma, é como se
ela estivesse lutando contra si mesma, contra demônios internos e externos e
assim encontrando a salvação que tanto procurava. O final do filme surge feliz,
pela primeira vez em qualquer Evil Dead,
mas isso não foi um erro, mas um acerto que revela até coragem dos realizadores
(tenho certeza que muito fã ignorante dos antigos não gostará muito de um final
em que alguém sobreviva). E se Jane Levy não é uma grande atriz, a personagem e
o seu arco dramático são muito bem escritos e simbolizados para que Mia ganhe
força suficiente como protagonista.
Se mostrando como um filme de terror
realmente bom depois de muito tempo de apenas bobagens ou coisas inúteis no
gênero, Evil Dead ganha mais se o
enxergarmos não como uma refilmagem, mas como um longa de terror com problemas
e acertos que faz parte do mesmo universos dos clássicos. Agora, interessante é
o fato de Sam Raime estar voltando ao mundo de Evil Dead para escrever e dirigir a continuação do terceiro filme e
que Fede Alvarez já planeja uma continuação deste sobre o qual acabei de
escrever. Imaginem como será que os dois cineastas farão uma ligação entre os
dois filmes? Já aguardo ansioso.
PS 1: A cena
pós-créditos levará fãs dos originais, como eu, à loucura.
PS 2: A letra inicial
do nome de cada um dos personagens formam a palavra DEMON (“demônio”, em
inglês): David, Eric, Mia, Olivia, Natalie... DEMON!
Nota: 8.0 / 10,0
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