Crítica filme "Os Miseráveis" (Les Misérables / 2012 / Reino Unido) dir. Tom Hooper
por Lucas Wagner
Os Miseráveis é
uma das obras mais importantes da literatura mundial. E não é para menos, já
que o romance de Victor Hugo é uma obra prima de valor imensurável que discorre
sobre desigualdades sociais, a gritante distância entre os mais ricos e os mais
pobres na França do século XIX, e onde personagens fortes e inesquecíveis
transitam e buscam sobreviver à dura realidade em que estão inseridos. Li o
livro quando tinha apenas 14 anos e foi uma experiência que me marcou e
amadureceu profundamente. Assim, qualquer cineasta que decida adaptar o romance
aos cinemas já tem uma responsabilidade assustadora em mãos. Tem que ser um
diretor firme e decidido, que não se deixe levar apenas pelo estilo. Tom Hooper
não seria a minha escolha ideal, mas o cineasta até que se sai bem no projeto,
embora falhe um pouco depois da confiança excessiva que parece ter adquirido
depois de ganhar vários Oscars por seu O
Discurso do Rei.
A opção de trabalhar a
adaptação na forma de musical, com as belas canções compostas por Claude-Michel
Schönberg, é interessante, já que estas não deixam de funcionar quase que como
belíssimos monólogos onde os personagens discorrem sobre suas angústias. Os
melhores momentos do longa se encontram em alguns desses números musicais, em
especial os ainda bem no início, cantados por Jean Valjean (Hugh Jackman), ou,
e principalmente, o momento em que Fantine (Anne Hathaway) canta “I Dreamed a
Dream”. As letras das canções são repletas de poesia, além de inteligentes e
emocionantes ao traduzir com beleza as profundas emoções dos personagens (como
não se emocionar com um trecho como: “A vida matou um sonho que sonhei”?). E
não são só essas as boas canções, já que o longa ainda é enriquecido com
aquelas da revolução (como “Do You Hear The People Sing?”) ou ainda com a
divertidíssima “Dog Eats Dog”, cantada pelos personagens de Sacha Baron Cohen e
Helena Boham Carter. No entanto, o roteiro peca um pouco por depender
exclusivamente das canções para desenvolver seus personagens, o que soa muito
como uma muleta, sendo que se aproveitar de outros recursos que poderiam ter
enriquecido ainda mais muitos dos personagens seria bem inteligente; mas esse
erro acaba sendo contrabalanceado por algumas atuações poderosas, como
discutirei mais adiante. O que é imperdoável no filme é a ideia podre de fazer
o longa inteiro em falas cantadas. As canções não são problemas, mas é ridículo
e vergonhoso ver os personagens travando conversas sérias de forma cantada, e
eu sinceramente não consegui segurar o riso em diversos momentos. Simplesmente
não dá para levar a sério, não importa a boa vontade. Em diversos momentos,
inevitavelmente, os atores desafinam, e cansa muito ter que ouvir a cantoria o
tempo inteiro. E isso já diminui muito a qualidade do longa.
Ainda assim, Os Miseráveis é um filme incrivelmente satisfatório na sua metade
inicial, alcançando uma força impressionante, desenvolvendo muito bem seus personagens,
apesar de ser bastante apressado para o meu gosto (e olha que o filme tem quase
3 horas de duração). Mas da metade para o final, o longa despenca de qualidade,
adquirindo uma estrutura absurdamente falha, perdendo seu rumo, já que Hooper
se embaralha, investindo muito tempo no ridículo romance entre Cosette (Amanda
Seyfried) e Marius (Eddie Redmayne), deixando a revolução e o protagonista,
Jean Valjean, em segundo plano, chegando até a tornar muitas de suas atitudes
em atos completamente sem sentido, além de desenvolver terrivelmente mal o amor
que ele cria por Cosette (a quem considera uma filha). E é até vergonhoso se
lembrarmos da perfeição dessa metade final no livro de Hugo.
A direção de Tom Hooper se mostra, durante
boa parte do tempo, bastante satisfatória, principalmente na metade inicial do
longa. O cineasta demonstra inteligência da criação de planos que traduzem
jogos de poder, como muitos em que trazem Javert (Crowe) em algum plano superior
a Valjean; Hooper ainda é extremamente feliz em uma sequência particularmente
eficiente, quando Valjean está cantando em uma igreja sobre a decisão de mudar
completamente de vida, deixando de ser Jean Valjean e se tornando completamente
outra pessoa, e a câmera, que estava em um plano mais fechado no ator, se
afasta dele, revelando um ambiente bonito e grandioso que remete à própria
liberdade que o personagem adquire no momento (e o fato de acompanharmos um
determinado pedaço de papel nesse momento torna a cena ainda mais eficiente). Hooper
compreende que muito da força de diversos números musicais vem das poderosas performances,
e assim filma muitos de seus atores em planos mais fechados nos rostos que
visam permitir ao espectador uma observação mais próxima do trabalho dos
atores. E é uma decisão feliz de Hooper ao filmar o número musical de “I
Dreamed a Dream” em um longo plano (sem cortes) no rosto de Hathaway,
compreendendo a força da atuação da atriz e que é isso que torna a cena tão
memorável, e assim não nos deixa perder nenhum segundo do maravilhoso trabalho dela.
Ainda, Hooper cria enquadramentos que muitas vezes surgem elegantes e bonitos,
ressaltando a atmosfera épica do filme, ou ainda detalhes poéticos (o plano em
que Seyfried canta uma canção de amor enquanto está escorada em uma parede com
um papel de parede rosa e com flores é bem bacana), e muitas vezes adotando
planos inclinados que ressaltam a própria instabilidade do que estamos vendo. Da
metade para o final, no entanto, o diretor coloca o estilo acima da narrativa,
e prefere apenas extrair beleza, sem se importar na melhor maneira em que
filmará as para contar a história e desenvolver os personagens. Até mesmo, então, os planos inclinados
surgem gratuitos. O diretor se mostra tão perdido na metade final, que não
consegue balancear a história de amor com a de guerra, e muito menos
desenvolver seus personagens, que se aproximam mais de caricaturas nessa etapa
final. Chega a ser vergonhoso o desespero do diretor quando cria uma canção
conjunta trabalhando a revolução, a dor de Valjean, o romance dos dois
pombinhos motherfuckers, e a dor da friendzone de uma outra personagem.
Tecnicamente, no entanto, o longa é sublime.
A direção de arte cria ambientes vigorosos e épicos, até nos menos chamativos,
como aquele da “montanha de destroços” construída pelos rebeldes. Mas a direção
de arte acerta mais ao não romantizar muito a França do século XIX, preferindo
retratá-la com ambientes sujos, pobres e assustadores, que refletem bem a situação
das classes mais baixas do país nessa época. O figurino também é eficiente ao
criar vestimentas que diferenciam os mais ricos e os mais pobres, sendo capazes
ainda de incluir detalhes mais sutis no seu trabalho (observem que, na fábrica,
Fantine usa uma vestimenta com tons rosados, diferente das outras mulheres,
cujas roupas se baseiam no azul). A fotografia é bela, mas peca por nos
mergulhar em tons escuros demais, muito embora tenham o objetivo de criar a
atmosfera sombria necessária para o filme (e é interessante a opção de
ambientar boa parte da narrativa no período da noite).
Agora vamos ao elenco: Amanda Seyfried mais
uma vez prova que só sabe ser bonita, e não faz o menos esforço de tornar sua
desinteressante Cosette em uma figura minimamente tridimensional. Eddie
Redmayne tem alguns bons momentos como Marius (como aquele em que canta uma
canção em um apartamento destruído), mas basicamente fica preso a um personagem
lamentável, que fica com uma tremenda viadagem com seu amorzinho artificial por
Cosette e seu ideais de revolução. Samantha Barks esta esforçadíssima como
Eponine, mas sua personagem é ridícula, e fica só chorando pelo amor não
correspondido por Marius (e, mesmo tendo Seyfried como objeto de amor, o fato
de Marius nunca olhar para uma mulher tão linda como Eponine com um desejo,
para mim só pode ser sinal de homossexualidade). Sasha Baron Cohen e Helena
Bonham Carter estão divertidíssimos como o casal Thenardie, embora estes sejam
personagem que só servem como distração, e que inclusive acabam atrapalhando o
ritmo da narrativa. O garotinho Daniel Huttlestone rouba todas as cenas em que
aparece como o menino revolucionário Gavroche. O grande Russel Crowe leva a
sério seu papel como Javert, e extrai toda e qualquer complexidade existente no
papel, tornando-o uma figura ambígua, com um passado obscuro que explica um
pouco seu comportamento atual. E se o personagem não fica ainda melhor, isso é
porque o roteiro o desenvolve porcamente, embora em algumas canções, as letras
sirvam maravilhosamente bem para descrever o interior emocional de Javert.
Mas são mesmo Hugh Jackman e Anne Hathaway
quem compõe performances realmente poderosas. Jackman faz por merecer sua
indicação ao Oscar (algo que já merecia há muito tempo, principalmente por seu
trabalho em O Grande Truque) e se
entrega completamente ao papel, tornando palpáveis os sentimentos e a
complexidade de Valjean, principalmente em cenas como o número musical na
capela de uma igreja (cena que por si só já deveria conceder ao ator algumas
indicações a prêmios). Jackman ainda é feliz em pequenos detalhes de sua performance,
como quando evita, com medo, o olhar de Javert. No entanto, o roteiro castra o
trabalho de Jackman na metade final que, muito embora o ator continue fazendo
um trabalho admirável, perde a força principalmente pelo completo desleixo que
o roteiro passa a demonstrar com o personagem. Ainda assim, é uma atuação
admirável. Mas Anne Hathaway consegue ser ainda melhor, e em pouquíssimo tempo
em tela. Interpretando Fantine como uma mulher frágil e sonhadora, Hathaway faz
um trabalho de entrega absoluta, não deixando que deixemos de sentir a
humilhação e tortura da moça. E é no maravilhoso número musical de “I Dreamed a
Dream” que ela se sobressai completamente, cantando com uma força crescente como
que se desabafando todos os seus problemas e angústias atoladas no peito. A cena
é tão emocionante que cada centímetro do meu corpo se arrepiou, eu fiquei sem
ar, e quase chorei. Só essa cena já vale o filme inteiro.
No todo, Os
Miseráveis é um filme bacana. Não faz jus à obra original, mas as poderosas
atuações de Jackson e Hathaway, algumas belas canções, o espetáculo visual e a
direção competente (durante algum tempo) de Hooper fazem com que os 157 minutos
de duração sejam bem aproveitáveis. Mas não é tudo isso que estão dizendo sobre
o longa, de forma alguma. Passa longe de ser um grande filme.
Nenhum comentário:
Postar um comentário