Crítica filme "Amor" (Amour / 2012 / França, Áustria, Alemanha) dir. Michael Haneke
por Lucas Wagner
Em uma
das primeiras cenas de Amor, o
diretor e roteirista Michael Haneke adota um longo plano no qual mostra uma plateia
esperando para assistir a um músico tocar. Nesse momento, o diretor posiciona o
casal protagonista no ponto de fuga inferior esquerdo da tela, que é o que
menos atrai a atenção do espectador. Como ainda não somos totalmente
familiarizados com os rostos dos dois personagens, é difícil assim
distingui-los dentre os outros espectadores na plateia. Mas qual o objetivo de
Haneke com esse longo plano? Nós, a plateia em um cinema observando uma plateia
aguardando o início de um show, olhando diretamente para a câmera. Qual o sentido?
Nós estamos olhando para eles ao mesmo tempo em que eles olham para nós. Só
esse plano já seria um belo estopim para uma discussão sobre o valor da Arte: essa
forma de comunicação tão sofisticada e cada vez mais complexa produzida pelo
ser humano nos leva a encarar verdades sobre nós mesmos, sejam essas boas ou
ruins; então ao mesmo tempo em que observamos aquelas pessoas comuns, sem nada
de especial, elas nos observam, pessoas nada especiais também, se não adotarmos
um olhar mais atento, e é como se Haneke estivesse nos preparando para o que
veremos nas próximas duas horas: a dolorida história de um casal que caminha
aos poucos para o fim da vida. Que é, acima de tudo, uma história extremamente
comum, assim como as histórias de todos aqueles indivíduos na plateia do músico
e como todas as que carregamos com nós mesmos. O cotidiano está cheio de
histórias trágicas e felizes, sorrisos e choros, e é um dos grandes papeis da
Arte nos fazer encarar temas comuns só que com maior sensibilidade, algo que é
anestesiado pelo cotidiano.
Esse plano também se insere com perfeição na
carreira de seu diretor, que em quase todos os seus filmes parece ter um prazer
quase maligno em demonstrar como é capaz de manipular o espectador e seus
sentimentos durante o tempo em que estamos à sua mercê, e ainda estabelecer um
contato quase que direto com o espectador (vide Violência Gratuita). Porém, no resto da projeção, embora Haneke
ainda apresente sua predileção por planos longos e ausência de trilha sonora, o
diretor parece assumir um ponto de vista mais doce e sensível quanto a um projeto seu, não nos obrigando a encarar como somos podres e deploráveis como espécie
(como fez em quase todos seus outros filmes), mas encarar nossa fragilidade
enquanto seres vivos, que, no mísero espaço de tempo em que passamos nesse
pálido ponto azul chamado Terra, vivemos em busca de dar algum sentido à nossa
existência, mesmo que inevitavelmente um dia tudo isso acabe. Dessa forma, o diretor
constrói com Amor uma obra-prima
sublime e profundamente complexa, que não nos trata como crianças mas como
adultos perfeitamente capazes de encarar nossa fragilidade existencial. E faz
isso através de um estudo de personagens impecável.
Concentrando basicamente toda a narrativa
dentro da residência de Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuele
Riva), Haneke já nos obriga a um mergulho profundo na vida daquele casal. Com o
casal já confortável com a convivência a dois, já que já passaram mais da
metade da vida juntos, o diretor opta por uma estratégia eficiente na direção
de arte, que é a de mergulhar quase todo o ambiente da casa em móveis que
possuem cor marrom ou em um tom mais pastel, que são cores que transmitem uma
sensação de melancolia e de envelhecimento. No entanto, na biblioteca do casal,
Haneke demonstra sua inteligência ao colocar na sala diversos livros com cores
mais fortes e chamativas, além de joviais, como azul, verde, ou,
principalmente, amarelo. A partir disso o diretor se mostra genial ao inserir
os personagens em um universo particular de forma econômica mas não menos
complexa. Observamos que Anne é uma personagem mais orgulhosa, que é obrigada a
encarar uma doença degenerativa que a corrói lentamente e tira praticamente
qualquer juventude dela e a obriga a encarar a própria mortalidade, por mais
que doa e fira seu orgulho. Assim, Haneke, quando o casal está na biblioteca,
filma os planos em que Anne aparece sem que sejamos capazes de vislumbrar algum
livro com alguma cor mais forte: pelo contrário, nesses momentos os livros que
aparecem perto e ao redor dela possuem cores pasteis. Com Georges já é
diferente, já que esse personagem ainda não seja obrigado a encarar de frente sua
condição de estar perto da morte, embora não a ignore. Haneke então, na
biblioteca, o posiciona sempre de frente a um conjunto de livros amarelos, e,
aos poucos durante o filme, vai posicionando sua câmera de modo que esses
livros fiquem mais e mais difíceis de serem notados, o que é lindo para
representar o próprio arco dramático do personagem, e chega a ser sintomático
que, no final (SPOILER! Continue depois do próximo ponto final, se não tiver
assistido), depois do clímax, Georges se acomode em um quarto com livros com
capas de cores sem graça e apresentando óbvio envelhecimento; a mensagem á
clara: o personagem tenta encontrar conforto em seu passado, representado pelos
livros, que agora não apresentam a juventude de antes, já que sua visão de si
mesmo mudou. Aliás, o diretor vai tornando qualquer capa de livro colorida mais
e mais difícil de serem enxergadas, nos mergulhando cada vez mais no mundo de
velhice dos personagens; e é lindo o momento em que o jovem personagem Alexandre
está de pé (e podemos ver livros coloridos no fundo do campo do quadro) e se
senta, com a câmera acompanhando o movimento, em plano médio, sendo que nesse
momento, os livros agora atrás dele apresentam as cores habituais do resto da
casa, como se o personagem estivesse literalmente mergulhando no mundo
envelhecido e triste dos protagonistas (nessa perspectiva, o fato de o plano em
que o vemos sentado ser tão exageradamente longo é perfeito por gerar agonia no
próprio espectador, refletindo a agonia do personagem).
Haneke ainda é sábio no figurino, e transmite
diversas mensagens a partir deste. As cores habituais das roupas de Georges e
Anne são sempre escuras. Mas no primeiro momento em que vemos sua filha, Eva
(Isabelle Rupert), esta está discutindo sobre sua difícil vida amorosa e
profissional, e está vestindo uma roupa amarela coberta por uma blusa preta.
Isso pode representar como a correria e os problemas do cotidiano
(representados pela cor preta) vão consumindo sua jovialidade (amarelo). No
entanto, mais para frente do filme, quando sua mãe vai definhando mais e mais,
o figurino de Eva vai ficando mais escuro, a ponto de chegar o momento em que
entra na casa dos pais totalmente coberta pela cor preta. De fato, a morte do
pai ou da mãe é um momento crucial na vida de qualquer indivíduo, já que é
quando primeiramente encaramos nossa própria mortalidade. E é o que está
acontecendo com Eva: consumida pela iminente morte da mãe, a moça vai encarando
sua própria futura morte. E Haneke é mais do que genial ao, nessa mesma
sequência em que Eva aparece completamente coberta pela roupa preta, quando
inicia uma discussão com o pai, abrir a blusa revelando uma vestimenta de cor
vermelho escuro, uma cor mais viva naquele universo, só que ainda assim triste;
é como se ela juntasse suas forças para brigar com o pai, jogando contra ele o
que ele não mais tem: a juventude. E tudo isso através de cores. O Cinema é
lindo mesmo.
Conduzindo a narrativa de forma extremamente
lenta, Haneke presta atenção especial a pequenos detalhes do cotidiano do
casal, desde Georges ajudando Anne a fazer exercícios, e até suas refeições. E
o diretor ainda consegue criar pequenos momentos de brilhantismo como quando
usa o som de uma torneira aberta para criar uma tensão quase que insuportável. E
não são só nas coisas tristes que ele presta atenção: são de grande beleza
momentos como quando Anne experimenta sua cadeira de rodas motorizada ou quando
Georges conta histórias de sua juventude durante o jantar (que gera até uma
linda frase; “Não me lembro do filme, mas me lembro do sentimento”). E não há como não encher os olhos de lágrimas nos dois momentos da projeção em que Georges ajuda Anne a sair de sua cadeira de rodas ou a voltar para ela, quando pega a esposa nos braços como que num abraço, só que agora num gesto repleto de dramaticidade. Porém,
toda essa técnica e estratégia é tão bem sucedida graças ao sucesso de Haneke
ao trabalhar sua temática: de mortalidade, envelhecimento, e da importância do
outro em nossa vida.
Sem desviar a câmera nem em momentos mais
embaraçosos e tristes, Haneke desenvolve seus personagens com uma perfeição
absoluta, e com uma objetividade impecável. E para isso, os dois atores
protagonistas são dignos de todos os prêmios do mundo por conseguirem
interpretar com força absoluta seus difíceis personagens. A indicada ao Oscar, Emmanuele
Riva, se entrega completamente à performance de Anne, interpretando-a como uma
senhora orgulhosa (observem sua cabeça inclinada para cima em diversos
momentos) mas ferida, que vai perdendo a sanidade de forma gradual e
inexorável. Atentem para momentos como o que Anne fala para Georges sobre como
ela só piorará, e perceberão a impecabilidade da performance dela, do movimento
preciso de cada músculo do corpo. Já Jean-Louis Trintignant interpreta Georges
com o mesmo grau de atenção aos detalhes, o que fica bastante claro na sua
calma desorientação ao primeiro sinal da doença de Anne e logo depois quando
fala disso com a filha. Observem como Trintignant é gênio ao interpretar com
tanta eficácia a lenta deteriorização de seu personagem que, diante da cada vez
mais próxima morte da companheira, vai morrendo ele mesmo também. E Haneke cria
sequências de ouro para que estes personagens possam ser desenvolvidos e que ele
possa trabalhar sua temática. Sequências como aquela do sonho do Georges são de
valor inestimável: olhem como Haneke é um Deus ao, através dessa pequena
sequência, trabalhar a questão de como o envelhecimento vai tornando o mundo
exterior ao conforto do lar mais e mais aterrorizante (prestem bem atenção no
corredor escuro do sonho, do material de aparência destruída do elevador, ou
até de como, mesmo não sendo no sonho, as janelas estão praticamente todas
cobertas por uma cortina). Ainda vale lembrar de como Haneke filma a
desorientação de Anne diante do fato de ter urinado na cama, e de como ele é
bruto ao não respeitar a privacidade dessa personagem em um momento em que ela
mais do que necessita, quando diz para Georges parar de observá-la, e a coisa
imediata que o diretor faz é lançar um primeiro plano na face dela. Aliás,
Haneke aqui emprega bem mais planos fechados do que usualmente faz em sua carreia,
o que nos aproxima da psicologia de seus personagens.
No fim, Amor
é mais do que um estudo de personagens porque, através deste estudo, visa
analisar a própria fragilidade de nossa existência. Quando Anne vai sucumbindo
mais à insanidade, ela passa a clamar pela mãe, de maneira profundamente
dolorosa. Por um viés psicanalítico, podemos enxergar isso como uma forma
inconsciente da personagem clamar por sua infância, por uma época em que tudo
era mais simples e que havia uma promissor futuro pela frente. Mas são chamados
fúteis, e que só se acalmam quando Georges pega a mão da esposa e a acaricia
lentamente. Esse é o momento mais lindo do filme e que me fez derramar algumas
lágrimas. Na nossa inexorável caminhada para a morte, para o esquecimento, a
única coisa que faz algum sentido e que realmente marca nossa jornada pela vida
são os laços que criamos, as pessoas que amamos. Georges consegue trazer, mesmo
que por um breve momento, Anne de volta à realidade, e ele estava lá do lado
dela para ajudá-la nessa passagem. Todos nós morreremos, e a única coisa que
importa no fim são as pessoas queridas a nós, um simples carinho em nossas mãos,
ou um olhar. Quantas pessoas não constroem suas próprias vidas com base em
olhares (e eu sou um deles)? Nós interagimos com os outros de forma que esses
construam uma parte de nossas histórias e nós construamos uma parte da delas.
Tudo o que no fundo precisamos é da atenção que alguém ceda a nós, mesmo que
seja ao cortar alguns pedacinhos de flores para nos enfeitar. E se Georges vai
definhando diante da degradação da esposa, é porque ela já era uma grande parte
dele que, quando morre, o mata também. Isso é extremamente real, e inclusive
aconteceu em minha própria família. Assim, Haneke acerta em cheio ao dar ao seu
filme o simples, mas grandioso nome Amor,
que é, de certa forma, o próprio sentido de nossa vida, o que nos separa de
outras espécies de animais, e que nos faz grandes e frágeis ao mesmo tempo,
embora paradoxalmente seja a única coisa que possa acalmar um pouco a
turbulência que é viver e morrer. Como já disse o grande poeta Pablo Neruda: “Se
nada nos salva da morte, que pelo menos o amor nos salve da vida”.
Ainda assim um gesto de carinho perde sua
força quanto mais caminhamos para a morte, e nem isso pode acalmar o nosso
coração ou nos trazer de volta à sanidade. Mas não deixa de ser tudo, como fica claro no maravilhoso
símbolo do pássaro (geralmente símbolo de liberdade) no filme (SPOILER ahead,
continuem no próximo parágrafo se não tiverem assistido ainda): na primeira vez
em que aparece, Georges o pôe para voar de novo, mas na segunda, depois da
morte de Anne, Georges o encurrá-la e sufoca, como se sufocasse a si mesmo e
sua própria liberdade que tinha nos resquícios de vida que o prendiam à
existência. E que resquícios eram esses? Anne.
Não consegui descrever com perfeição a beleza
sufocante desse filme, ou a complexidade com que ele foi realizado, ou muito
menos as profundas reflexões que ele despertou em mim. Mas fiz o que pude e só
de escrever sobre o longa me sinto alguém mais amadurecido. Creio que uma
sessão em um mesmo dia com obras-primas como esse Amor, Sinédoque, Nova York e
A Árvore da Vida nos fariam seres
humanos mais atentos e sensíveis, caminhando para o fim inevitável, mas sabendo
encarar com mais admiração e respeito a tragédia que é amar e morrer...ou
simplesmente existir.
Parabéns pela resenha. Impecável.
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