Crítica filme "O Som ao Redor" (O Som ao Redor / 2013 / Brasil) dir. Kléber Mendonça Filho
por Lucas Wagner
Em certo momento de O Som ao Redor, o diretor Kléber Mendonça Filho cria um raccord impecável no qual vemos prédios
tipicamente de classe média, e corta para um plano no qual vemos várias
garrafas de cerveja em cima de uma mesa, o que já funciona como uma metáfora
extraordinária para essa sua obra-prima. Afinal, se O Som ao Redor é um filme praticamente experimental em questão de
estilo e do fazer cinematográfico, funciona ainda como uma reflexão
extremamente profunda sobre a classe média (não só a brasileira, mas qualquer
uma).
A classe média não é como as classes mais
baixas ou as mais altas, e talvez seja por se colocar justamente no meio dessas
que seja provavelmente a mais complexa. É claro que as outras sofrem com muitos
problemas particulares (isso é absolutamente inegável), mas a classe média não
possui um lugar tão bem definido, tão certo, e parece sofrer de crise de identidade.
Essa crise não vem apenas devido a estar entre as outras, mas por sofrimentos
particulares, frustrações, sonhos mortos, individualismo, solidão, desespero
(muitas vezes calado) que muitas vezes vão matando o que há de mais humano em
seus componentes, até que chega o momento de suas mortes físicas, e estes devam
encarar que na verdade sua existência não foi grande coisa afinal. E é por isso
que o raccord que comentei no
parágrafo anterior é tão brilhante, já que liga a existência na classe média
com um dos modos mais comuns de se procurar aliviar a tensão do dia a dia: o
álcool.
Mendonça Filho tem um olhar apurado que não
deixa escapar aspectos mais simples e delicados da vida na classe média, e isso
fica provado ao acompanhar com cuidado a rotina da personagem Bia. Mas o olhar
do diretor é mais profundo e ele não se acanha em mergulhar em aspectos da essência
dos componentes dessa classe, e uma das teclas que o diretor mais parece
apertar é a da solidão. Nas sociedades modernas a solidão é uma constante;
parece que ao mesmo tempo em que estamos cercados de pessoas, estamos também
mais sozinhos. E na classe média pode ser ainda mais sintomático graças à
própria indefinição desta, que não tem grandes impasses econômicos como as
classes mais baixas (embora a preocupação financeira seja quase sempre uma
constante para a classe média) e nem dinheiro suficiente que os afastam de seus
iguais, e torna todos ao redor possíveis inimigos, como é o caso com as classes
mais altas. Dentro dessa luta para se estabelecer, os integrantes da classe média
representados aqui (que são, é claro, um recorte da realidade factual) parecem
sempre buscar o conforto no outro, nos relacionamentos, mas, quando esses casais
estão juntos, não envolvidos em alguma atividade sexual, parece não haver
química, e nem diálogo, e, no entanto, não pode-se negar a influência
esmagadora que essas pessoas que namoramos (ou apenas ficamos) exercem sobre
nós, mesmo que pareça impossível que nos abramos para elas e demonstremos a
dimensão de nossos sentimentos. Assim, Mendonça Filho parece refletir sobre o
individualismo em que vivemos, particularmente sua classe sob enfoque, em que
esse assume proporções mais ambíguas devido à sua indefinição.
Diante disso, o título do filme ganha
contornos de pura genialidade, já que vários dos momentos de maior prazer de
seus personagens parecem vir acompanhados de uma cacofonia de sons que
incomoda, ao mesmo tempo em que foge do silêncio opressor que parece acompanhar
o longa praticamente o tempo inteiro. Um exemplo claro para ilustrar isso é
Bia, que, dona de casa e mãe de dois filhos, parece viver uma existência
infeliz (embora ela mesma pareça não notar isso), melhorada apenas quando fuma
um baseado (e soprando a fumaça por um aspirador) ou se masturba com a ajuda de
uma máquina de lavar roupas (sim, exatamente isso que você leu). Nesses
momentos, o longa se enche dos sons do aspirador e da máquina. Ainda essa
teoria fica mais forte quando vemos Francisco saindo de seu apartamento no meio
da noite para nadar em um mar agitado, e o som do mar fica quase insuportável.
Mas por que isso? Aparentemente para Mendonça Filho poder ilustrar que os
prazeres mais simples vividos por aqueles personagens parecem vir quase como
que com culpa, já que esses estão fugindo da rotina opressora em que vivem,
ultrapassando normas sócias “de bom gosto” para poder satisfazer anseios seus. Aliás,
o design de som de O Som ao Redor é
algo de outro planeta, já que mergulha o longa no silêncio durante a maior
parte do tempo (até os diálogos parecem que estão em volume baixo), para depois
surgir com sons fortes para ajudar a estabelecer ideias. Assim, se alguns
prazeres de Bia surgem sob cacofonia (como a máquina de lavar roupa), outras
vezes surgem sob sons de músicas bonitas, enquanto Mendonça Filho a enfoca em
primeiro plano (e é inesquecível o momento em que ela vai começando aos poucos
a cantar junto com a música, como se estivesse se livrando de sua rotina para
entrar num raro mundo de prazer), sugerindo diferentes tipos de prazer que
possuem diferentes significados no cotidiano. E o que dizer então da tensão
gerada pelo ranger do elevador no final do filme? Fantástico. Ainda vale ser
ressaltada a sabedoria de Mendonça Filho ao enfocar seus personagens muitas
vezes atrás de grades, ou de colocar azulejos na casa que pelo menos lembram
grades, o que possui um significado até que claro depois do que já falei nessa
crítica.
Uma das coisas mais marcantes no que diz
respeito à classe média é sua completa falta de lugar também no que se refere à
visão da realidade, já que parecem viver em um mundo próprio fora do que
acontece no resto de sua nação, sem contar o egoísmo que parece mais forte num
mundo onde todos parecem só olhar para si mesmos. Mendonça Filho é eficiente de
novo ao retratar esses aspectos da classe de forma crítica e objetiva, algo que
fica claro na cena da reunião de condomínio para demitir um funcionário já de
idade: nessa cena, cada personagem parece estar infectado por uma visão de
mundo que não quer deixar de lado, que parece olhar somente para si, sem contar
com os malefícios e a injustiça que significaria demitir o funcionário; e a
situação fica ainda mais sintomática quando o único que poderia mudar essa
situação prefere esquecer-se dela para dedicar tempo ao prazer próprio. Além
disso, o constante medo e neurose que muitos membros dessa classe tem de serem
assaltados ou que pessoas mais pobres as ataquem fica bem ilustrada na cena em
que uma menininha imagina uma grande quantidade de bandidos entrando no quintal
de sua casa (e é interessante que tal imagem tenha vindo de uma criança, já que
evidencia com mais força ainda o quanto essa neurose está incrustada). E o
diretor ainda acerta ao não deixar de lado o fato de que muitas vezes são
jovens da própria classe média quem comete vários crimes, que são imediatamente
relegados a pessoas de classes mais baixas (pelo próprio senso comum).
Ainda assim, Mendonça Filho consegue mergulhar
ainda mais fundo na sua visão crítica e revelar diversas das contradições e
ambiguidades presentes no mundo da classe média, enquanto ainda é capaz de
colocar um espelho na cara no espectador, revelando nosso próprio preconceito
em ação. E isso pode ser muito bem ilustrado pela fantástica sequência em que uma
mãe, com a filha, procuram um apartamento, ao mesmo tempo em que um garotinho
joga bola na rua: o apartamento é ajeitado, mas precisa de uma boa reforma, já
que parece até meio acabadinho, mas já o consideramos em alta pelo visual; já o
garoto jogando bola tem aparência que imediatamente associamos com pobreza.
Depois de perder sua bola, o garoto volta para casa, e o acompanhamos em plano
sequência. A questão é que sua casa é linda (mas de classe média), inclusive
muito mais bonita do que o apartamento que acabamos de ver (aonde a mãe usa uma
desculpa esfarrapada para conseguir desconto). Nessa sequência ainda, o
cineasta é capaz de demonstrar as diversas faces da classe média, que hora se
parece mais com os ricos, hora se parece mais com os pobres, mas que muitas
vezes se torna mistura dos dois. Ainda é interessante que o garotinho sempre
pareça perder sua bola ao longo do filme, de uma forma ou de outra, já que já o
mostra sendo castrado de seus prazeres desde jovem. E é impossível não admirar
Mendonça Filho ao retratar a ambiguidade de Bia, que parece sempre infeliz, mas
nem sempre apreciando o óbvio carinho que seus filhos tem por ela.
Mas o que realmente torna O Som ao Redor uma obra-prima de dimensões
continentais é a mudança de rumo narrativo adotada por seu diretor, que, se de
início parece sempre focar-se no realismo, analisando friamente seu objeto de
estudo, a partir de certo momento adota uma abordagem mais intrapsíquica dos
personagens, explorando suas frustrações em nível mais subjetivo e, muitas
vezes, poético, embora nunca perca a objetividade. Assim, um personagem sai de
casa e, num flashe, enxerga sua rua
como se fosse a de sua infância, e, em outro momento (até mesmo assustador), um
outro personagem tem um pesadelo macabro onde está tomando banho de cachoeira,
feliz, e de repente as águas que o banham se transformam em sangue. Se a
primeira imagem já reflete a visão de uma época mais nostálgica e cheia de
possibilidades, a segunda nos surpreende como uma manifestação simbólica das
frustrações que corroem o personagem. E não há como negar a beleza absurda do
simbolismo no momento em que João e Sofia estão no quarto da última, e esta
enxerga as figuras de estrelas que tinha pregado no teto quando criança; então,
o namorado a levanta no colo para que ela possa tocar novamente essa estrela
infantil (entrar em contato com sua infância e as possibilidades e inocência desta, pelo menos mais uma vez), antes que ela se perca para sempre, já que a casa será demolida. Mendonça Filho parece querer
enxergar a diminuição das possibilidades advindas com o envelhecimento, quando
a carga de toda a nossa vida pesa, e o número de frustrações que vivemos vai se
acumulando, principalmente diante da perspectiva de se fazer parte da classe
média, que mais parece um eterno limbo para se alcançar uma classe mais alta,
que sempre parece mais longe com o acúmulo de dívidas e a rotina, além do
distanciamento de nós mesmos, como comentei, nos levando a ser mais e mais
individualistas.
Assim como disse quando escrevi sobre o
inesquecível Amor, é muito provável
que não tenha conseguido captar logo de cara toda a genialidade desse trabalho.
Há muitos detalhes que ainda precisam ser desvendados por mim nessa obra-prima
máxima de Mendonça Filho. Mas posso afirmar com certeza de que esse é o melhor
filme brasileiro de muito, muito tempo (melhor até do que os maravilhosos O Palhaço ou Tropa de Elite 1 e 2), e é um dos melhores de qualquer país que
passou nos últimos anos. Poucos filmes são capazes de levar o espectador à uma
visão tão absurdamente profunda e complexa de algo que está tão próximo de nós.
De fato, até agora em 2013, esse é o único capaz de combater Amor como filme mais admirável do ano. E
o mais surpreendente é que ainda estamos em fevereiro.
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