Crítica filme "Depois de Lúcia" (Despúes de Lucía / 2012 / Méxivo, França) dir. Michel Franco
por Lucas Wagner
Alejandra é uma adolescente comum, que adora
sair com os amigos, estuda e de vez em quando puxa um baseado. Sua mãe morreu
em um acidente de carro, o que levou seu pai à um comportamento mais
introspectivo, depressivo. Para mudar de ares, eles se mudam para outra cidade,
e Alejandra passa a estudar em uma nova escola, onde faz novos amigos. Numa
noite, depois de beber muito, ela e seu amigo José transam, e ele filma tudo,
com ela sabendo, mas sem se importar. Esse vídeo vaza na internet, e Alejandra
vai sendo cada vez mais reprimida e agredida, a ponto de quase explodir.
Vemos esse tipo de coisa até que com certa
frequência na mídia ou em meios acadêmicos, e sempre manifestamos desgosto e
repugnância. Mas é certo que o impacto que esses meios traduzem para questões
como essa é bem menor do que o impacto que o Cinema pode trazer. Como já disse
o filósofo Julio Cabrera, o Cinema atinge o espectador com verdades até mesmo
comuns só que com uma força que um livro de sociologia ou psicologia nunca
seria capaz de trazer. Te atinge no estômago. E esse talvez seja o maior mérito
desse Depois de Lúcia, do mexicano
Michel Franco, que enxerga o bullying e
sua força destrutiva com crueza e brutalidade, ainda enxergando a ambivalência
do adolescente nesse processo.
Franco parece querer estabelecer uma
atmosfera de normalidade durante a maior parte do tempo, enxergando momentos
prosaicos na vida dos seus personagens, de modo até mesmo para desenvolver o
universo em que estes vivem. Assim, vemos diversas cenas em que Alejandra e
seus amigos jogam conversa fora, contam piadas, e em outra vemos a protagonista
com seu pai assistindo um filme no computador logo depois de comerem pizza. Franco
ainda acerta na primeira cena do longa, no longo plano que acompanha o pai de
Alejandra tirando o carro do mecânico, até que do nada para, tira as chaves, e
sai do carro, deixando-o no meio da rua. A meu ver, embora recebamos uma
explicação do porque disse posteriormente, Franco procurou nos acostumar com
uma cena normal do dia a dia (uma pessoa dirigindo um carro) para logo depois
arrebatar-nos com algo tão estranho quanto o que acontece logo em seguida; o
que parece ilustrar com perfeição o próprio caminho que a narrativa segue ao
mergulhar a vida normal de Alejandra na tortura do bullying. No entanto, é meio broxante que Franco, assim como
Kiarostami fez em seu ótimo Um Alguém
Apaixonado, pareça cozinhar seu filme em fogo baixo, num ritmo extremamente
parado, sem quase nunca mover a câmera ou arriscar um plano mais fechado, o que
acaba tornando o longa um pouco maçante, já que tal estilo não encontra
qualquer propósito narrativo. Qual, por exemplo, é o sentido do diretor demorar
tanto tempo em planos como o final, quando o pai volta para terra firme com uma
lancha? Mas acaba que, no fim, esse problema não incomoda muito.
Mais interessante é como Franco vai
desenvolvendo Alejandra e seu pai. Se o pai vai se afundando numa sufocada
depressão depois da morte da mulher, algo que o impede de pelo menos suportar a
presença de outras pessoas vivendo seu cotidiano normalmente (como fica
belamente ilustrado no momento em que pede demissão de seu serviço simplesmente
porque estava ouvindo seus funcionários conversarem casualmente, o que o
irritou), Alejandra já parece mais conformada, e vive a vida normalmente, mesmo
que ainda sofra pela mãe, como podemos perceber quando ela afasta o assunto da
mãe quando conversa com as amigas. Esse modo de trabalhar a protagonista, com
seu sofrimento calado, sem incomodar os outros, se revela eficaz para que
Franco possa garantir ainda mais impacto à tortura que passará a seguir a
personagem. Quando começa a sofrer bullying,
a protagonista não parece afundar de uma vez no desespero, mas fica mais na
dela, meio que torcendo para que aquilo acabe logo, se desesperando
silenciosamente quanto mais a tortura aumenta. E como qualquer adolescente
(ainda mais uma garota) Alejandra não se abre para o pai (que, sofrendo com
seus próprios problemas, parece incapaz de enxergar a filha direito) e nem com
qualquer outro adulto.
Mais curioso, porém, é o trabalho de
figurino. Dá para enxergar que todos os adolescentes, ou adultos, usam cores
mais escuras, sombrias, e só Alejandra, a que mais sofre que, paradoxalmente,
usa as cores mais felizes ao longo do filme. Acredito que Franco traçou essa
ideia como forma de ilustrar a protagonista como elemento inocente, claro, num
mundo sombrio e ameaçador. E é fascinante que, mais pro terceiro ato, Alejandra
passa a usar cores mais sombrias, representando sua dor e perda da inocência.
O mais interessante, porém, desse Depois de Lúcia, é o modo como Franco
explora a adolescência. É muito provável que aqueles jovens não sejam
exatamente pessoais ruins, mesmo tendo comportamentos deploráveis, mas que
sejam simplesmente imaturos e não saibam a extrema dor que causam à colega. Não
é atoa que se desesperam quando percebem que podem ter feito algo terrível, que
trará consequências irremediáveis para o resto da vida. A adolescência é a fase
mais estranha da vida, onde nada faz muito sentido, algo que fica bem
evidenciado por Franco quando, numa festa, um casal começa a se pegar de uma
maneira extremamente explícita, quase transando: nesse momento, Franco coloca o
casal no ponto de fuga esquerdo da tela, para chamar menos a atenção. A questão
é que, se através de um vídeo de Alejandra transando todo mundo começou a
torturá-la, por que quando uma transa aconteceu quase que na frente deles
ninguém notou? E está ai uma das muitas contradições presentes na adolescência:
por que algo em vídeo, distanciado, pareceu ter tanto impacto a mais do que
algo ao vivo? Por que certas coisas polêmicas causam tanto choque e outras não?
E, se Depois
de Lúcia não é uma obra-prima, e nem seja tão genial quanto parece achar (o
filme acaba sendo bem presunçoso), Michel Franco merece todos os aplausos do
mundo por um plano em especial, quando vários adolescentes (inclusive
Alejandra) entram em um mar turbulento, de noite. Enquanto todos brincam e se
divertem, sem se importar com as fortes ondas, Alejandra vai se deixando
arrastar, sem se importar ou conseguir tomar alguma atitude; esse plano é
magistral pelo seu valor simbólico: a adolescência é uma época conturbada,
turbulenta (o mar), mas que a maioria não encontra muita dificuldade, já que
estão sempre se divertindo com seus amigos, numa “eterna” farra; mas para
alguns a turbulência do período da adolescência é muito maior, já que estão
sozinhos, e são inevitavelmente engolidos pelos problemas que os rodeiam, sem
ter caminho de volta, e tendo toda sua vida comprometida.
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