Resenha filme "Deus da Carnificina" (Carnage / 2011 / França, Alemanha, Polônia, Espanha) dir. Roman Polanski
Por Lucas Wagner
Em 1962, o cineasta Luis Buñuel realizou uma de suas maiores obras-primas, O Anjo Exterminador.Nesse filme, acompanhamos uma reunião de pessoas da alta sociedade em um elegante jantar, mas que, ao fim da reunião, não conseguem, sem qualquer explicação, deixar a casa de seus anfitriões. No desenrolar da história, as polidas e educadas máscaras sociais que os personagens usam vão lentamente caindo, revelando animais nada elegantes, pessoas realmente horrendas e que apresentam comportamentos deploráveis. A base desse novo filme do veterano cineasta Roman Polanski, Deus da Carnificina, é extremamente parecida, e em boa parte do tempo mantém um bom índice de qualidade mas, diferente do que aconteceu no filme de Buñuel, aqui o projeto cai de qualidade a partir de certo ponto devido ao regular roteiro.
Escrito por Yasmina Reza (que escreveu a peça Le Dieu du Carnage, que deu origem ao longa) e pelo próprio Polanski, o filme começa a partir de uma briga entre dois pré-adolescente que resulta em dois dentes quebrados e um nervo exposto para um deles. Os casais pais desses garotos, Penelope (Jodie Foster) e Michael (John C. Reilly), e Nancy (Kate Winslet) e Alan (Christoph Waltz), então se reunem para conseguir, de maneira civilizada (à primeira vista, pelo menos), resolver essa situação. A coisa sai do controle e se transforma em uma verdadeira "carnificina verbal".
Polanski, como um diretor inteligente que é, não busca "invencionismos visuais" em sua obra, que se passa toda na casa de um dos casais. Assim como fez em seu inesquecível Busca Frenética (que é, junto com Chinatown, meu filme favorito do diretor, mas que foi muito injustamente criticado) e no ótimo Escritor Fantasma, Polanski tem uma direção que se adequa ao projeto (algo que ele mesmo parece não ter compreendido em seu deplorável O Último Portal) e assim busca contribuir a partir de pequenos elementos, como o latido de um cão (algo que contribui para aumentar a tensão) ou ainda o lento passar do dia até o anoitecer, detalhe que torna o filme mais realista e que só é observado através de janelas de vidro do apartamento. Ainda, Polanski, que mantém sua câmera mais estática no início do longa, vai gradualmente movimentando-a mais quanto mais a situação vai ficando tensa. Esse "crescente de tensão" ainda é beneficiado pela excelente trilha do sempre competente Alexandre Desplat (que compôs trilhas como a de A Árvore da Vida, Harry Potter 7.1 e 7.2, etc), que abre e conclui o longa: esta começa com tons delicados, quase infantis, mas que vão gradualmente se tornando mais intensos e ameaçadores, com direito até mesmo a tambores, representando o próprio percurso que o filme seguirá.
Mas Polanski compreende que este é um filme de atores e que o palco é deles, contratando assim atores de altíssimo nível para estrelar seu trabalho. Kate Winslet (uma das minhas atrizes favoritas por sinal), consegue representar com o talento habitual a gradual "perda de charme" e de paciência de Nancy, que parece sempre a ponto de explodir (desde o início do longa), mas que evita isso até um ponto em que não dá mais. Ainda assim, mesmo que supostamente possa ser devido à proposta do longa, Winslet se entrega sem reservas a um overeacting, a um exagero tão extremo que a transforma em uma caricatura (como dói falar isso dela!). Já Jodie Foster (outra das minhas atrizes favoritas) interpreta de maneira quase impecável Penelope, uma mulher que se diz autruísta e bem intencionada, mas que esconde um nojento materialismo e uma enorme insegurança nas suas atitudes que a tornam mais complexa. Observem como Foster foi inteligente ao mostrar com sutiliza a expressão de surpresa e quase que de medo ao notar o caos que desencadeou. Diferente de Winslet, Foster não transforma sua personagem em uma caricatura, mas por pouco, já que o roteiro oferece armadilhas suficiente para isso.
O sempre carismático John C. Reilly interpreta Micheal como um homem que parece sempre tentar agradar, muitas vezes não convencendo em seus esforços, que são óbvios demais. Notem como Reilly adota uma voz sempre alta, quase irritante, mas que demonstra sua tentativa de permanecer cordial. Esse pseudo-cordialismo esconde comportamentos, desejos e sentimentos bem mais sombrios, que vão sendo revelados por Reilly de maneira gradual. Notem até mesmo a expressão de Reilly na primeira vez que briga com um personagem do filme, como fica claro que ele está tentando a todo custo manter a calma, mas está quase explodindo. É interessante ainda a dinâmica que este estabelece com sua mulher, uma dinâmica que no início do filme tem uma aparência, mas quanto mais as máscaras vão caindo, mais esta se revela diferente. A relação de "dominância" muda de dominador.
Mas a melhor atuação fica por conta mesmo de Christoph Waltz, como Alan. Este é um sujeito materialista, aparentemente sem sentimentos, enganador, irônico e manipulador (é hilário um momento em que Alan, de propósito, "confunde" o nome de Michael com Stephen, apenas para demonstrar o desprezo que sente por aquele homem) . Waltz é genial ao mostrar que Alan está claramente se divertindo enquanto o circo pega fogo ao seu redor, observando aquelas "criaturas" brigarem sempre com um sorriso, e sempre colocando "lenha na fogueira". Mas Waltz foi impecável mesmo ao mostrar que Alan é um sujeito mais humano, embora completamente niilista. Observem como ele chama seu próprio filho de maníaco, mas que parece um verdadeiro monstro ao defendê-lo (mesmo que re-afirme que ele seja um maníaco!), ou ainda quando, mesmo depois de defender um remédio claramente defeituoso que defende como advogado, este diz para uma senhora (mãe de Michael) não o usá-lo temporariamente, ao mesmo tempo em que ri dela por chamá-lo de doutor. É uma atuação nível Oscar aqui. Eu me surpreendi pelo fato de que, dentre todos no elenco, Waltz é o que eu menos era fã (principalmente se comparado a Foster e a Winslet), mas que se revelou como o grande intérprete do longa.
Mas agora vamos ao roteiro. Este começa de forma quase impecável, construindo com calma a interação entre os personagens e desenvolvendo sua tese de maneira perfeita. O roteiro explora com prazer a falsa cordialidade entre os personagens e vai desenvolvendo o processo de desintegração da ordem apartir de tiradas estilosas, em que os casais alfinatam uns aos outros, de uma maneira que, de início, essas alfinetadas são facilmente perdoadas, mas que aos poucos vão se tornando mais severas. O roteiro ainda se diverte produzindo momentos claramente cômicos em seu absurdo sutil, como na cena em que, depois de uma puta discussão entre os casais (a primeira realmente "quente"), eles se sentam para tomar café e tentam fingir que nada aconteceu.
Mas o filme quase afunda por completo quando deveria realmente empolgar, ou seja, quando "o circo pega fogo", e assim o longa, que estava excelente, cai para bom. Isso ocorre porque as discussões que guiam os casais se tornam falsas e cheias de falas expositivas demais, mesmo para alguém bêbado (embora eu admita que gostei do momento em que Winslet diz: "Eu limpo o cú com os Direitos Humanos!"). Não que as discussões que surjam não sejam interessantes. Pelo contrário. Vemos aqui discussões sobre relacionamentos, niilismo, materialismo (essa sendo a discussão mais imprecionante e bem construída, além de cínica, do roteiro), visão de vida, etc, que são valiosas, mas que simplesmente foram jogadas aqui sem adequado desenvolvimento (tirando a do materialismo)! Reza e Polanski ficaram ambiciosos demais nesse momento e faz com que o filme entre em áreas que não possui estrutura para entrar. Ainda, a idéia dos roteiristas de incluir, em toda a bagunça, discussões acerca do relacionamento íntimo de cada um dos casais, em que esses "lavam a roupa suja", é imprestável, e leva o longa a momentos que poderiam gerar bons frutos, mas que são muito mal trabalhados.
Mas o pior de tudo é algo que não aconteceu de modo algum em O Anjo Exterminador: exagero. As situações se tornam exageradas demais! Embora eu compreenda isso dentro da proposta do roteiro de mostrar aqueles adultos se comportando de forma absurda, chega um ponto em que tudo deixa de ser verossímel e o filme perde completamente seu rumo, principalmente no clímax, se transformando em um festival de babaquices e putaria desenfreada que não chega a lugar algum, que não possui nem mesmo um sentido! É claro, a falta de sentido aqui faz sentido dentro do que se propôe o roteiro, mas ainda assim percebe-se que este foi mal construído para se chegar a este ponto, mesmo que no início tenha mostrado tão belo desenvolvimento, desenvolvimento este que se perdeu quando os casais começaram a discutir (ainda sóbrios!) questões íntimas sobre seus relacionamentos na frente de estranhos! O longa atinge tal grau de artificialidade que mesmo a construção da tensão de Polanski vai por água abaixo.
Agora, os planos com que Polanski inicia e termina seu filme me dão vontade de até assistí-lo novamente. Depois de mostrar a briga entre os garotos, Polanski os filma em reconciliação pacífica e carinhosa, mostrando-os como seres humanos sábios em sua inocência que, mesmo diante da adversidade, não perderam a sua humanidade, enquanto seus pais então em uma luta sanguinária e sem sentido. É o mesmo que o seriado South Park mostra com tanta perfeição: as crianças são o futuro, e a geração de adultos mergulha em uma onda de estupidez e ignorância, caracterizada por uma inegável cegueira social. E isso eleva novamente a qualidade de Deus da Carnificina.
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