Análise:
O Lobo Atrás da Porta (O Lobo Atrás da Porta / 2014 / Brasil) dir. Fernando Coimbra
por
Lucas Wagner
O
Lobo Atrás da Porta é um exemplo perfeito para jogar na cara
dos infelizes que insistem em criticar o Cinema brasileiro. Trabalho intenso,
impecavelmente filmado e montado, minucioso em seus detalhes e irretocável na
construção de personagens, assim como sutil e inteligente na estruturação da trama
e na hora de manipular o próprio espectador para entrar no “jogo”, o filme
insere-se como uma obra de gênero específico (o suspense), algo raro no Brasil,
mas que ainda tem segurança o suficiente para flertar de leve com outros
gêneros, sabendo como cada elemento vai mexer com o espectador e levá-lo para onde
o roteirista e diretor Fernando Coimbra quer. Sim, O Lobo Atrás da Porta é bom desse tanto.
Em termos gerais, a
trama gira em torno do desaparecimento da Clarinha, filha de Bernardo (Milhem
Cortaz) e Sylvia (Fabiula Nascimento). Logo de cara a principal suspeita cai
nas costas de Rosa (Leandra Leal), amante de Bernardo. E é a partir desse
esquema que o detetive interpretado por Juliano Cazarré vai aos poucos
construindo um intrincado mosaico.
Coimbra inicia sua
narrativa de modo interessante ao mostrar as entrevistas iniciais do detetive
com os envolvidos na história, em especial quando começam a se formar tramas
que podem parecer não funcionar em harmonia, já estabelecendo para o espectador
que este não deve confiar em tudo o que vê, já que deve levar em conta o viés
de quem está sendo interrogado no momento. E é fascinante que esse mesmo recurso
seja usado por Coimbra de uma forma inesperada para tornar o final mais
impactante do que naturalmente é (e in
natura ele já é impactante pra caramba), já que, justamente pelo que nos
comunicou a partir do estabelecimento da estrutura nos primeiros minutos de
projeção, seria difícil esperar que não houvessem pontas soltas no cruel
desfecho da trama. E, bem, não há...
Mas O Lobo Atrás da Porta é daquele tipo de
suspense cuja tensão surge a partir da dinâmica entre os personagens, e é
intrigante como Coimbra vai manipulando as relações entre eles a partir dos
dados que aos poucos recebemos. Percebam, por exemplo, como a princípio
Bernardo parece um sujeito controlado por mulheres, mas que, inadivertidamente,
ele mesmo acaba por controlar o desencadeamento de emoções violentas por parte
delas, algo que Coimbra comunica de forma sutil em dois quadros sucessivos, um
em que o homem encontra-se sentado e vestindo roupa enquanto Rosa está deitada,
nua, na cama, e o outro em que dessa vez Sylvia está sentada vestindo-se,
enquanto Bernardo está deitado; a dinâmica nesse último quadro ganha ainda mais
complexidade pelo quarto de Clarinha no canto direito da tela, como lembrete de
mais um elemento de controle. Ou seja, quando com Rosa, pressupõe-se que ele
seja o controlador, enquanto a situação muda quando se trata dele com Sylvia,
ainda mais porque havíamos (como o detetive) recebido uma informação sobre a
suposta passividade do sujeito diante da esposa. Se esse elemento é apenas uma
distração ou não, na construção da trama, não importa, pois é a própria
estruturação da mesma, tão sutil e complexa, que é o centro da obra, e é
louvável os esforços de Coimbra para enriquecer visualmente cada uma das
possíveis cadeias de contingências abertas pelas informações recebidas, além de
apresentar notável atenção a detalhes, como a garrafa de pinga muito escondida
na casa de Rosa ou o rosto atormentado de Bernardo no primeiro dos planos que
citei, revelando uma angústia que o torna mais complexo.
E é por ser um
“suspense de personagens” que é eficaz que o longa funcione também como estudo
psicológico, algo para o qual o sublime elenco tem papel essencial. Assim,
Milhem Cortaz faz de Bernardo uma figura capaz de despertar o riso e a pena do
espectador, diante de seu óbvio nervosismo em relação às mulheres, assim como
sua dificuldade em lidar com situações difíceis. Ainda assim, o sujeito passa
longe de ser manso, e estabelece-se como uma figura mais ameaçadora do que a
princípio pareceria, mais controladora até, o que torna a sua dinâmica inicial
com as mulheres ainda mais complexa. Do outro lado, Fabiula Nascimento pinta um
retrato comovente de Sylvia, complexo na medida em que a mulher é sim, até
certo ponto, controladora, mas também que é uma pessoa cuja “chama” da vida
parece ter apagado faz tempo, e vê-la reencontrando-a em uma outra pessoa
específica soa dramaticamente irônico, além de um tanto maldoso, por parte de
Coimbra.
Enquanto isso, Leandra
Leal mereceria nadar em prêmios por uma performance de extrema complexidade na
criação de Rosa, compondo uma figura tão multifacetada capaz de despertar
emoções idem no espectador. Apenas com uma aparência de inocente, Rosa desde o
princípio possui um controle mais forte daquilo que a cerca, mostrando-se capaz
ainda de usar sua beleza física para alcançar aquilo que almeja. No entanto, a
moça não é um retrato unidimensional da manipulação, e seus sentimentos são
palpáveis, com Leal conseguindo até mesmo a difícil proeza de, em um mesmo
plano, demonstrar emoções ambíguas e até mesmo ambivalentes através de um
olhar, variando desde uma tola esperança juvenil que surge como um respiro em
sua voz e olhos fechados, até a uma profunda tristeza diante do silêncio que
recebe (seus olhos marejados e trêmulos), sendo todo esse momento pontuado por
olhares atentos para o rosto de seu interlocutor, buscando indícios, num misto
de ansiedade e concentração, da reação que sua fala gerará nele. Além disso,
não consegui segurar um sincero sorriso mesmo naquela que é a mais cruel cena
do filme, já que Leal tem um toque de gênio digno de Marlon Brando quando,
depois de aparentar uma frieza gélida durante todo o seu ato, demonstra a
profundeza da perturbação e desconforto daquela mulher diante do que fez pelo
simples ato de não conseguir fechar uma garrafa direito, derrubando o objeto em
sua abafada confusão.
E se Leal compõe Rosa
de forma tão sublime, Coimbra e seu diretor de fotografia, o sempre genial Lula
Carvalho, merecem aplausos pela criação de quadros que transbordam em
informações sobre a personagem. Para ser mais específico, são quatro os quadros
ao longo da projeção que parecem nadar em Rosa, todos eles evocativos ao
isolarem a personagem no seu ambiente (mesmo que, fora do campo, tenha outra
pessoa), ressaltando sua solidão em meio às perigosas consequências que suas
ações podem ter. Interessante ainda que no primeiro deles, a câmera afaste de
Rosa, no segundo permanece parada (num plano sufocante iluminado por relâmpagos,
que traduzem a tormenta emocional da moça) e no terceiro se aproxime do rosto
da personagem, criando uma gradual angústia reforçada pelo choro vergonhoso
dela que, sabemos bem, será uma engrenagem essencial na máquina que está sendo
construída e devastará a todos. Já o quarto plano, aquele que fecha o filme,
cria uma rima sufocante com a primeira vez que vemos a personagem, só que, se
nessa primeira vez ela aparecia ambígua pela sua situação de filha vivendo com
pais mas ao mesmo tempo como que esperando a polícia, no final, num exemplo de
montagem que daria orgasmos a Sergei Eisenstein, o contexto muda, e o abismo de
seus olhos transmite outras e mais trágicas informações, no acertadamente lento
close que vai fechando seu mundo e
sua vida.
Enfim, O Lobo Atrás da Porta é uma obra-prima
de inteligência ímpar que descortina uma estrada de tijolos amarelos para
Fernando Coimbra, uma promessa não apenas para o Cinema brasileiro, mas
mundial.
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