Análise:
Frank (Frank / 2014 / Reino Unido, Irlanda) dir. Lenny Abrahamson
por Lucas Wagner
Ao término da projeção,
é bem provável que a primeira impressão que se tenha de Frank caiba na fala: “que filme peculiar”.
A estranheza perpassa todo o projeto, tornando difícil encaixá-lo em rótulos.
Ainda assim, o que não pode ser negado é que este filme dirigido por Lenny
Abrahamson a partir de um artigo jornalístico de Jon Ronson é dotado de
profunda maturidade emocional, na criação de uma obra tragi-cômica que
acompanha o aspirante a músico, Jon (Domhall Gleeson), em sua jornada dentro da
bizarra banda liderada pelo personagem título, que insiste em usar uma enorme
cabeça de papel machê 24 horas por dia.
Desde a primeira cena,
Abrahamson propõe de forma eficaz o equilíbrio entre o drama e o humor, ao
apresentar Jon dentro de uma atmosfera melancólica, fria, ao mesmo tempo em que
encontra a comédia intrínseca à sua incessante busca forçada por inspiração no
cotidiano, situação que se torna mais trágica na medida em que o design de produção ressalta como a vida
de Jon é impregnada pela música. Assim o filme se encontra, nesse espaço
bastante equilibrado entre um humor melancólico e uma melancolia cômica, algo
que persiste durante toda a projeção.
Mais do que fazer rir
ou simplesmente comover, no entanto, o roteiro de Jon Ronson e Peter Straughn
parece dedicado à exploração quase antropológica da vida dos membros da banda
por parte do protagonista, que vai parar naquele ambiente quase que por acaso. Todos
parecem possuir algum histórico de internação em hospitais psiquiátricos, e
quando não possuem, a surpresa do espectador (e do protagonista) é palpável, já
que a bizarrice daqueles sujeitos lhes parece inerente, ao mesmo tempo em que
os roteiristas tem a delicadeza de, aqui e ali, dizer sobre as cicatrizes
emocionais que compôem aquelas figuras, alcançando novamente a proeza de
equilibrar-se entre o drama e a comédia, por exemplo, na figura de Don (Scott
McNeary), com suas constantes tentativas de suicídios marcadas, provavelmente,
por seu passado envolvendo sexo com manequins. Assim, é uma pena que Nana
(Carla Azar) e Baraque (François Civil) sejam figuras unidimensionais cuja
única característica é a estranheza, diferente dos outros membros da banda.
Como não poderia deixar
de ser, no entanto, o foco do filme é o seu personagem título, que aqui ganha
na decisão dos realizadores de tratá-lo como coadjuvante, permitindo que o
vejamos a partir da ótica de outra pessoa (Jon), tornando-o assim ainda mais
interessante, já que lhe conserva a aura de mistério. Pois Frank se torna uma figura
magnética: imediatamente chamando a atenção devido à sua cabeçona falsa, o
personagem vai aos poucos deixando tanto espectador quanto protagonista
curiosos, ao mesmo tempo que cativados, já que Frank parece capaz de encontrar inspiração
e poesia em qualquer elemento ao seu redor, sabendo descrevê-la de forma
tocante e emocionada. No entanto, e o que é um dos elementos mais fascinantes
sobre o personagem, é praticamente impossível dizer até onde vai sua
genialidade e onde começa uma severa psicopatologia, e a posição de espectador
imposta tanto a nós quanto ao protagonista torna essa ambiguidade ainda mais
inquietante.
Pois, mesmo sendo uma
criatura quase mágica, capaz de injetar vida em seus tristes companheiros, Frank
é, em si, uma figura trágica, e é sintomático que, diante da óbvia pergunta
envolvendo a razão de usar a cabeça falsa, responda algo sobre como o rosto
humano é essencialmente grotesco, esquisito, sendo que ele mesmo parece
enxergar com tanta doçura a natureza e o mundo ao seu redor; ou seja: ele
romantiza o exterior, enquanto seu interior precisa ser coberto. Apesar da entonação
calma, há insegurança naquela pessoa, algo que fica evidente no desejo que
parece ter de ser reconhecido, sendo justamente no combate entre ser
amado/querido e simultaneamente usar a Arte como meio de expressão de suas
profundezas o que causa uma espécie de ruptura psíquica que corrói Frank, o
leva a uma luta interna que o aliena mais de si mesmo. E assim, o excepcional Michael
Fassbender merece aplausos pela que é, provavelmente, a mais delicada de suas
performances, já que, mesmo sem poder usar o rosto durante a maior parte do
tempo, o ator expressa ambiguidade a partir da própria postura de Frank,
variando de uma posição robótica a ataques de animação quase maníacos que só
podem revelar o grau de desajuste daquele sujeito, ao mesmo tempo em que sua
voz sempre se concentra no tom calmo que, se por vezes representa sabedoria,
outras acaba por revelar uma carência e insegurança tocantes.
É notável que ao longo
da projeção o abismo entre Frank e Joe se torne mais claro, e para isso, o arco
dramático vivido pelo protagonista é multidimensional o suficiente para que nós
mesmos (espectadores) acabemos por nos afastar daquele sujeito que, a
princípio, era nosso elo de ligação com a realidade para acompanharmos aquele “universo
paralelo”. Pode ser que Joe aspire à carreira musical, tenha construído toda
sua vida em torno dessa única perspectiva; porém, como vamos descobrimos, a
Arte como meio de expressão não é seu objetivo. O que ele quer é ser alguém
famoso, ter seu nome escrito nos livros de História, e assim, misturado com uma
boa dose de imaturidade, podemos perceber o mal que Joe acaba por fazer àquele
grupo em que entra, justamente por fazer todas as perguntas erradas, e ser
corroído por um profundo sentimento de inveja. Basta observar, por exemplo,
quando revela-se agressivo diante de uma bela canção composta por Don, ao invés
de parabenizar o colega, ou ainda, de forma mais intensa, diante de um ato
musical quase no fim do filme. Sua inspiração, diferente da de Frank, vem
forçada, vem do simples desejo de ser visto, desejo refletido no constante uso
de redes sociais, buscando alguma espécie de visibilidade em uma vida invisível.
Mas é nesse ponto que o
longa se torna uma melancolicamente madura reflexão sobre o fazer e o apreciar
artístico. Para isso, novamente Fassbender se mostra ponto-chave do projeto,
usando os poucos momentos sem a cabeçona para criar uma figura que foge de
qualquer espetáculo, que, na expressão vazia, nos olhos caídos fitando o chão,
nas pálpebras baixas que acompanham o movimento de um corpo que parece lutar
para não sucumbir à gravidade, se transforma numa carcaça parcamente sustentada
por ossos. Sim, Frank é fascinante, tocante e intrigante. Mas esse é o artista, que usa de seus abismos de dor
para colocar algo na realidade, e a nós (assim como a Jon) é dado o presente de
poder confortavelmente regozijar em suas melodias.
Jon faz as perguntas
erradas, como já foi apontado, pois na verdade é a partir de uma profunda
ignorância artística e humana que ele tem essa obsessão em saber o que há por
baixo da cabeçona. O que há por baixo não poderia ser outra coisa senão um
mosaico de feridas mal cicatrizadas, e é aqui que Clara (Maggie Gylenhaal) se
transforma em uma personagem tão humana, e podemos enfim compreender a ligação entre
ela e Frank: Clara não tenta tirar a máscara... ela sussurra cuidado, carinho e
conforto por baixo dela, e talvez isso seja mais importante do que uma
curiosidade mórbida em escavar alguém. Pois essa dor romantizada do artista é
nada mais, nada menos, que um embuste, apreciável apenas por aqueles que a veem
de fora, pois, para o artista em si, são como mãos a lhe agarrar a garganta,
sendo a expressão através da Arte talvez a única chance de respirar, e ainda
assim é um respiro doloroso na medida em que seu efeito anestésico está intrinsecamente
ligado à exploração da própria dor.
Assim, nos conectamos e
desconectamos de Jon ao longo de sua jornada, o que é admirável na medida em
que nós, mesmo enquanto espectadores, podemos fazer parte do que estamos
assistindo. E se nos desconectamos dele, é justamente porque, como ele mesmo
percebe um pouco mais tarde, passamos a compreender que aquela banda liderada
por Frank é uma família, e, bem, talvez não devêssemos meter o bedelho por lá.
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