Análise:
The Babadook (The Babadook / 2014 / Austrália) dir. Jennifer Kent
por Lucas Wagner
Sou amante confesso do
Cinema de horror, desde obras lapidadas como O Iluminado, passando pelo grotesco de um O Massacre da Serra Elétrica e até algo deliciosamente porco como Fome Animal. Mas são tempos difíceis
para pessoas como eu, e por mais que obras como Invocação do Mal e O Espelho representem
ótimos esforços, ainda estão longe de serem filmes grandiosos. O que nos trás a
esse The Babadook, onde encontro a
oportunidade de dizer, depois de tantos anos, que me deparei com uma obra-prima
do terror, onde fiquei não apenas intelectualmente fascinado, mas tão aterrorizado
que cheguei a um estado de pura Graça.
Baseado no excelente
curta de 2005 também escrito e dirigido por Jennifer Kent, o filme conta a
dolorosa história envolvendo Amelia (Essie Davis), para quem sete anos de
distância da morte do marido não foram minimamente eficazes para aplacar sua
dor. Vive com seu filho, Samuel (Noah Wiseman), cuja fixação por destruir “monstros”
em sua casa apresenta um potencial de vida problemática, até que se depara,
junto com sua mãe, com a tal figura do título que parece não querer ficar limitado
pelo livro infantil que leva seu nome...
Sendo seu filme de
estréia como diretora de longa metragens, é fascinante perceber a segurança que
Jennifer Kent apresenta no comando da narrativa, criando uma estrutura que
prima pelo aspecto enxuto, com uma hora e meia perfeitamente aproveitada com
informações importantes transmitidas de forma sutil. Assim, os dez minutos
iniciais são usados apenas para o estabelecimento da atmosfera que permeia a
vida daquelas tão frágeis figuras, e a fotografia pautada no cinza azulado de
Radek Ladczuk não falha em transmitir a constante sensação de melancolia, assim
como os ambientes externos predominantemente vazios e ricos em terrenos baldios
dizem muito com pouco, algo que não muda muito, por exemplo, na casa de Amelia,
grande demais para duas pessoas, com móveis demasiado afastados um do outro. A
própria arquitetura da casa parece ganhar um sentido simbólico, e não demora
para que o porão, enterrado no subsolo, adquira uma função narrativa demasiado
freudiana.
Kent demonstra domínio
na construção do horror, e não se desespera para amedrontar o espectador, fazendo
um uso parcimonioso da excelente trilha sonora de Jed Kurzel, e preenchendo os
espaços vazios com um silêncio angustiante, além de jamais recorrer a sustos
fáceis com animais de estimação ou algo do tipo. O próprio modo como organiza
as tomadas também é devidamente pensado, e em certo momento é quase impossível
evitar um leve ataque cardíaco apenas com o posicionamento de um cabide no
quarto, colocado em tal ponto do quadro que o espectador logo lhe dirige a
atenção sem que a diretora lance mão de algum recurso como close ou trilha. Interessante também como usa regras básicas, mas geralmente
muito mal utilizadas, quanto a contar visualmente uma história, e aproveita o
simples uso de uma porta aberta como possibilidade de criar tensão, pelo fato
de que o espectador, como dita a própria Psicologia, ficar esperando que algo
apareça através daquela abertura.
O que causa maior
horror, no entanto, é o desconhecido, e Kent compreende isso também. A figura
do monstro, o Babadook, é mostrada apenas o suficiente para despertar a
imaginação, e os momentos em que a amplitude de sua estrutura demoníaca se faz
ver são cuidadosos ao mais sugerir o
mal do que evidenciá-lo. Aqui, Kent
obedece ao mestre do terror H.P Lovecraft, e remete a ele explicitamente
quando, num momento de contato direto entre Babadook e os personagens, opta pela
câmera subjetiva no monstro, nos forçando a ver no rosto de Amelia o horror por
algo que, se víssemos por nós mesmos, seria com certeza menos interessante do
que as imagens que a ignorância pode, inefavelmente, formar.
Para além disso, Kent
prima na sua capacidade de nos colocar na perspectiva psicológica de Amelia. O design de som se torna, então, uma
ferramenta importante para a diretora, que o altera em graus significativos
para sugerir momentos em que a protagonista se encontra mais ou menos
introspectiva, o que, a partir de certo momento da projeção, coaduna com a
imersão na loucura que a cineasta busca. Para esse mergulho, ela ainda faz um excepcional
uso de lentes que distorcem o campo, nos forçando a uma visão na perspectiva de
Amelia, desfocada e dilacerada, típica do campo visual de uma pessoa com
distúrbios psicológicos, ainda alterada quimicamente pelo uso de tranquilizantes,
num sinal de tato de Kent que reverbera no fato de que as alucinações (visuais
e auditivas) e aparições vem sempre em cenas quebradas por cortes secos, como
se aquele evento tivesse acontecido apenas por um breve e dúbio segundo, e mal
tivéssemos tido tempo de perceber que percebemos algo. A atmosfera
delirante/alucinatória é, de todo, digna de aplausos pela sua inteligência, e a
narrativa parece até mesmo se estender no tempo, como num estado de sonho (ou
pesadelo), que ganha conotações surrealistas com os filmes de Georges Meliés
que passam na Tv de Amelia, com um background
contendo... bem, vejam o filme.
The
Babadook não se acanha ao abraçar ambições ainda mais
elevadas do que “apenas” assustar, e ganha contornos de uma intensa jornada
existencial. Desde a primeira cena somos jogados no mundo particular da
protagonista, quando revive, em sonho, o momento da morte do marido, chamada de
volta à realidade pelos gritos do filho. Amelia é uma mulher obviamente
deprimida, basta olhar para seu rosto, seus cabelos desgrenhados e olhos
vazios, compostos de sentimentos complexos quanto a si e ao filho. Devastada
pela morte do marido, ocorrida no momento em que a levava ao hospital para dar
a luz a Samuel, Amelia é movida pela culpa, e não uma do tipo simples, mas que
engloba a morte do amado e as dificuldades psicológicas do filho, assim como
uma falsa noção de incompetência enquanto mãe.
Essie Davis (atriz até
agora muito fraca) revela-se à altura de tão complexa personagem, e representa
com maestria e intensidade assustadoras todas as camadas de Amelia. Optando, a
princípio, por uma voz que quase não deixa a boca, Davis já estabelece a
claustrofobia inerente à vida da protagonista, sempre presa a si mesma,
parecendo encontrar um estranho prazer apenas no seu trabalho, que muito diz
sobre ela: é enfermeira em um asilo para idosos, em particular na ala de
demência. Parece identificar-se com a figura de senhoras solitárias e entregues
ao oblívio, algo que Kent busca reforçar no plano onde a protagonista observa,
sorrindo, sua vizinha idosa. É como se Amelia enxergasse algo de seu futuro,
que acalenta com carinho, talvez por um desespero próprio de sua depressão, já
que mesmo a visão de um jovem casal apaixonado lhe causa visível aflição.
De uma mulher com todas
essas características não se espera um amor incondicional ao filho. Aliás, Kent
atenta para como a criança é um fator perturbador, logo no início do filme,
quando observa o incômodo que esta causa enquanto Amelia tenta dormir. Mais uma
vez o desempenho de Davis é fundamental, já que a atriz permite que, ao mesmo
tempo que notemos o desconforto provindo da existência de Samuel, possamos
perceber que a mãe o ama de verdade. Sem isso o filme afundaria, pois seu ponto
central é arco dramático vivido por Amelia, e se a víssemos apenas como uma
pessoa problemática, qualquer ligação emocional com a obra enfrentaria
problemas.
E assim, o resto desse
texto, temo eu, talvez deva ser lido apenas por quem já assistiu ao filme... e
aqui começo minha análise mais aprofundada:
What’s Underneath?
O que acontece em The Babadook é real? Ou é fruto de uma
severa psicopatologia de Amelia? Kent permite as duas leituras com igual
competência, pois, de qualquer forma, sua perspectiva subjetiva de Amelia casa
com a manipulação que o suposto monstro realiza na protagonista. Mas, se
buscarmos uma análise racional, o que o Babadook representaria,
psicologicamente, para Amelia, a ponto de servir como veículo para sua
alucinação assassina?
Ora, os elementos se
esbanjam em riqueza simbólica: notem primeiramente a natureza do monstro, uma
figura que vive em um livro infantil mas que é dotada de malignidade. É uma
condição ideal, que já desperta um medo primitivo em qualquer ser humano, dada
a ligação perversa entre o puro e o demoníaco, ligação esta que desperta em
igual medida pânico e fascínio. A partir daí, Kent tem o cuidado de estabelecer
os primeiros sinais de aparecimento do Babadook com momentos de excitação
sexual de Amelia, sendo que o sexo, com sua função de prazer e de reprodução, trás consigo um enorme
elemento de culpa, já que foi essa segunda função do sexo que, no fim das
contas, levou à morte de Oskar (o marido), pelo menos dentro da culpa da
protagonista, e não é por mero acaso que os insetos apareçam aos montes através de uma fenda na parede, já que
essas criaturas estão simbolicamente ligadas à sensação de excitação sexual (o
formigamento do desejo, como dizem). Essa condição que liga o Babadook a Oskar
não é em nenhum momento mistério para o espectador, já que o homem aparece como
encarnação da manifestação mais de uma vez durante o filme, e, a princípio, são
suas roupas que servem como os sinais primordiais da presença de Babadook. E é
no porão que essa ligação primeiramente é feita.
O porão... o lugar onde
Amelia guarda as dolorosas lembranças do falecido, e onde Samuel, garoto
carente de pai, realiza muitas de suas brincadeiras, para o desgosto da mãe. O
menino, por sinal, é um personagem extremamente complexo, desde sua patológica
busca de uma figura paterna através de monstros fantasiosos, dos quais procura proteger a mãe, com medo de que lhe
causem mal. É um caso de edípico peculiar em sua estrutura fragmentada e óbvio
atraso de desenvolvimento psicossexual. O garoto não é cego para perceber,
mesmo não conscientemente, a dor que a ausência do pai causa na mãe, e por mais
que ele mesmo sinta essa dor, não quer ver Amelia triste, e em seu aparente
mundo de fantasia, procura concertar a realidade. E é esse aparente mundo de
fantasia que acaba se chocando com o real, no momento em que sua mãe é levada
por essas mesmas fantasias, construindo seu próprio sobrenatural a partir do que
lhe é apresentado pelo filho, que, se a
priori nunca tivesse existido, permitiria que Amelia ainda estivesse com o
marido.
The
Babadook é, então, uma história profundamente emocional
envolvendo um complexo relacionamento entre uma mãe e seu filho, traumatizados
por eventos passados que lhes despertam culpa, mesmo que essa, objetivamente
falando, não deva existir. A batalha interna de Amelia que a leva a se tornar
uma espécie de Jack Torrance contra Samuel permite que, de alguma forma, entre
em contato com essa entidade assustadora que a leva a assumir desejos
demoníacos de destruição do filho e de si. Seria impossível que ela assumisse-os
por si mesma, por isso Babadook é um veículo perfeito para ela se encontrar, e
também para que o próprio Samuel possa assumir o tão desejado papel de herói e
salvar a mãe, salvando, talvez, a si mesmo.
E é por isso que quando
o sobrenatural toma conta e a explicação racional se complica, no fundo não
importa se conseguimos decifrar ou não. Afinal, o que começou como uma
narrativa de horror termina como uma metáfora psicológica: realidade ou
alucinação, o Babadook, assim como no curta de 2005, assume um significado como
o lado mal, podre, sujo, doente de Amelia (e de Samuel também), os impulsos
agressivos e perversos que devem ser tratados com carinho. Carinho? Sim, claro!
Em primeiro lugar por medidas de segurança contra sua revolta; e em segundo, e
mais importante, porque ele é uma parte daqueles personagens, uma parte que
ficará trancafiada no porão (o inconsciente), sendo cuidada para de lá não
sair. Deve ser acalentada em sua existência, reconhecida e cuidada, desde que
fique no porão. O mesmo porão onde fica o fantasma (literal e/ou metafórico) de
Oskar...
Portanto, The Babadook funciona como um horror
aterrorizante, um complexo estudo de personagens e um doloroso drama familiar,
além de deliciar com diversas homenagens a clássicos. Um filme que pode muito
bem se destinar ao hall dos mais
fascinantes exemplos do gênero.
Bela análise!
ResponderExcluirPerfeita sua analise! E depois de ler acho que passei despercebido por alguns detalhes. portanto, é um filme para rever!
ResponderExcluirPerfeita análise vou assistir de novo sob esse novo olhar.
ResponderExcluirTenho que bater paumas pra sua excelente análise. Parabéns.
ResponderExcluirExcelente!
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